A 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) manteve a sentença que concedeu a uma pessoa com Mielofibrose e Telangiectasia o direito ao benefício de passe livre no sistema de transporte público interestadual.
Na apelação, a União alegou que, “em que pese a parte autora ser portadora de doença grave, esta não foi qualificada como deficiente, pois a doença mieloproliferativa crônica, por si só, não autoriza o benefício de Passe Livre”.
Ao analisar o caso, o relator, desembargador federal Jamil Rosa de Jesus Oliveira, entendeu que o benefício havia sido requerido pela pessoa com Mielofibrose e Telangiectasia sob o argumento de que essas patologias a incapacitavam definitivamente para a realização de atividade laboral. “Todavia, o pedido fora indeferido ao argumento de que o atestado médico apresentado não comprova deficiência apta a ensejar a concessão do benefício”, destacou.
Ainda de acordo com o desembargador federal, “o laudo médico, produzido pela Unidade de Hematologia e Hemoterapia do Hospital de Base do Distrito Federal, indica que o autor, além de portador das patologias descritas, sofre limitações físicas que, se não o incapacitam, restringem e prejudicam a sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
O magistrado ressaltou ainda a jurisprudência deste Tribunal que assegura o direito ao passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual às pessoas com necessidades especiais comprovadamente carentes, em sintonia com o escopo da Lei 8.899/1994. E concluiu a decisão ressaltando que, “quanto à comprovação de hipossuficiência, verifica-se que a parte autora está representada nos autos pela Defensoria Pública da União, é morador de região predominantemente carente do Distrito Federal/DF e exercia, quando ainda possível, a profissão de Pedreiro.”.
O recurso ficou assim ementado:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. PASSE LIVRE EM TRANSPORTE PÚBLICO INTERESTADUAL. LEI N. 8.899/1994, DECRETOS NS. 3.691/2000 E 3.298/99, PORTARIA MINISTERIAL N. 3/2001 E DECRETO LEGISLATIVO N. 186/2008. STATUS DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO. PORTADOR DE MIELOFIBROSE E TELANGIETACSIA HEREDITÁRIA. COMPROMETIMENTO DA EFETIVA PARTICIPAÇÃO NA SOCIEDADE EM IGUALDADE DE CONDIÇÕES. HIPOSSUFICIÊNCIA. COMPROVAÇÃO. DIREITO AO BENEFÍCIO.
1. Apelação interposta pela União em face de sentença pela qual se julgou procedente o pedido de concessão do benefício do “Passe Livre” previsto no art. 1º da Lei n. 8.899/1994.
2. A Lei n. 8.899/1994 instituiu o benefício do Passe Livre às pessoas com deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual, condicionando a habilitação no programa à comprovação das condições de pessoa com deficiência e de carência de recursos financeiros.
3. A Portaria Interministerial n. 03/2001 definiu que para efeito exclusivamente da concessão do benefício considera-se: “(…) II – Pessoa Portadora de Deficiência: aquela que apresenta em caráter permanente, perda ou anormalidade de sua função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano. III – Pessoa Portadora de Deficiência comprovadamente carente: aquela que comprove renda familiar mensal ” per capita” igual ou inferior a um salário mínimo estipulado pelo Governo Federal”.
4. Por sua vez, o art. 2° da Lei n. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) dispôs: “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
5. Tal norma reproduz os dispositivos previstos no Decreto n. 186/2008, aprovado nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, que introduziu no ordenamento jurídico a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cujo propósito é o de “(…) promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”.
6. O citado Decreto, compondo o bloco de institucionalidade, preceitua em seu art. 1º o conceito de pessoa com deficiência como sendo “(…) aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
7. Como se observa, tal dispositivo não condiciona o conceito de deficiência ao conceito de incapacidade, referindo-se apenas a impedimentos que comprometem a participação plena e efetiva dos portadores de deficiência no exercício de seus direitos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com as demais pessoas.
8. Enfatizou, ainda, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, ao decidir o REsp 1568331/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, julgado em 18/10/2016, DJe 19/12/2018, que “em caso de dúvida ou lacuna, a legislação de proteção de sujeitos vulneráveis deve ser interpretada ou integrada da forma que lhes seja mais favorável, vedado ao administrador e ao juiz acrescentar, acentuar ou inferir limitações ao exercício pleno dos direitos individuais e sociais previstos na Constituição e nas leis. Exatamente em decorrência da particular condição física, mental ou sensorial a exigir atenção elevada e prioritária para que se viabilize por completo sua inalienável dignidade humana, as pessoas com deficiência precisam de mais direitos – e também de direitos mais eficazes -, predicado não só inseparável do Estado Social de Direito, constitucionalizado em 1988, como também indicador do grau de civilização dos brasileiros”.
9. No caso, o autor, portador de Mielofibrose (CID D47.1) e Telangiectasia Hereditária (CID I 78.0), comprova por meio dos laudos médicos juntados aos autos que está incapacitado para realizar atividades laborativas e que sofre limitações físicas que, se não o incapacitam, restringem e prejudicam a sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
10. Revela o relatório médico (ID 71672208) que as patologias sofridas tiveram piora após acidente de trânsito, ocorrido em 1987, quando “passou a apresentar epistaxes frequentes e intercorrências clínicas, sobretudo anemia, dependente de transfusões de hemácias, decorrentes do somatório das duas patologias”.
11. Tais constatações, aliás, não se mostram incompatíveis com o que consignado pela União em seu recurso de apelação no sentido de que, se a Mielofibrose não autoriza, por si só, o benefício do passe livre, eventuais sequelas que comprometam a condição do indivíduo o autorizam, de modo que, devidamente demonstradas em juízo, devem ser consideradas.
12. Assim, afigura-se razoável o reconhecimento de sua condição de pessoa com deficiência, com vistas à concessão do referido benefício, medida esta que, para além dos preceitos que estabelecem especial proteção às pessoas com deficiência, também se encontra em sintonia com um dos objetivos fundamentais inseridos na Constituição Federal da República Federativa do Brasil, qual seja, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I, da Constituição Federal).
13. Ademais, imprimir interpretação restritiva à hipótese dos autos não se compatibiliza com a disciplina preceituada no sentido de conferir máxima proteção à pessoa com deficiência.
14. Quanto à comprovação de hipossuficiência, verifica-se que o autor está representado nos autos pela Defensoria Pública da União, é morador de região predominantemente carente do Distrito Federal/DF e exercia, quando ainda possível, a profissão de Pedreiro.
15. Apelação da União desprovida.
Processo 1007640-27.2018.4.01.3400