Para a 3ª Turma, o custeio, previsto em norma coletiva, não caracteriza interferência nas atividades do sindicato
A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou o exame do recurso da Empresa Brasileira de Distribuição (EBD) Ltda., de Macapá (AP), contra condenação a repassar valores ao sindicato dos trabalhadores para a manutenção de convênios médicos aos integrantes da categoria. Para a Terceira Turma, a medida não viola o princípio da autonomia e da liberdade sindical.
Custeio
Segundo as convenções coletivas de 2018 a 2022 firmadas entre o Sindicato dos Empregados no Comércio Varejista e Atacadista de Gêneros Alimentícios de Macapá e Santana do Estado do Amapá (SEC Alimento) e a entidade patronal do setor, as empresas teriam de repassar R$ 3,50 por empregado ao sindicato, a fim de cobrir os convênios médicos dos associados. Contudo, de acordo com o SEC Alimento, a EBD parou de fazer os repasses em dezembro de 2019. Na ação de cumprimento, o sindicato pretendia receber, além dos valores devidos, a multa prevista em caso de descumprimento.
Ingerência
O juízo da 1ª Vara do Trabalho de Macapá (AP) considerou improcedentes os pedidos com base na Convenção 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da ingerência indevida de empregadores sobre as atividades sindicais. Segundo a sentença, o fato de as contribuições se destinarem à assistência médica e odontológica dos sindicalizados é insuficiente para afastar a nocividade do financiamento pelos empregadores.
Viabilidade
O Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (PA/AP), porém, reformou a sentença, por entender que a lei não proíbe a criação de outras fontes de custeio para viabilizar atividades sindicais favoráveis à categoria. Outro aspecto considerado foi que, no caso, o repasse foi convencionado por meio de negociação coletiva de trabalho regular.
Liberdade e autonomia sindical
Para o relator do recurso de revista EBD, ministro Mauricio Godinho Delgado, a cláusula não viola os princípios da liberdade e da autonomia sindicais. Ele observou que, de acordo com a Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC) do TST, cláusulas desse tipo são nulas, porque representam uma forma de ingerência do segmento patronal no sindicato dos trabalhadores. Contudo, destacou que as decisões da SDC não vinculam os outros órgãos julgadores do TST, o que lhe permite apresentar entendimento diverso.
Conquista
Segundo o relator, a cláusula revela, na verdade, uma conquista da categoria profissional na negociação coletiva, que traz benefícios para todos. A seu ver, o interesse no atendimento médico prestado aos trabalhadores é comum à categoria econômica e à profissional.
Distinção
De acordo com o ministro, é necessário distinguir a cláusula em exame daquelas em que se criam contribuições patronais genéricas, sem vinculação à prestação de serviços ou à concessão de benefícios. “Aí, sim, desponta-se, visivelmente, a possibilidade de interferência e controle financeiro pelo ente empresarial, que configura sério risco à autonomia e à liberdade sindical”, concluiu.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DAS LEIS 13.015/2014 E 13.467/2017. RITO SUMARÍSSIMO . AÇÃO DE CUMPRIMENTO. OBRIGAÇÃO PATRONAL PREVISTA EM NORMA COLETIVA. REPASSE DE VERBAS PARA O SINDICATO LABORAL COM O FIM DE CUSTEAR A ASSISTÊNCIA MÉDICA. O Tribunal Regional, reformando a sentença, julgou procedente a ação de cumprimento de norma coletiva autônoma que previu o repasse para o Sindicato Autor, pela Empresa Ré, de valores referentes ao custeio de convênio médico oferecido aos trabalhadores. Discute-se, nos autos, a legalidade dessa cláusula, sob a ótica da possível violação à autonomia sindical. Sobre o tema, não se olvida que a Seção Especializada em Dissídios Coletivos desta Corte vem se posicionando nos últimos anos no sentido de que cláusulas dessa espécie são nulas, porque representariam uma forma de ingerência do segmento patronal no sindicato dos trabalhadores, a comprometer a sua atuação em prol dos interesses laborais (ilustrativamente: RO-1690-63.2018.5.09.0000, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 17/10/2019). O atual posicionamento da SDC revisou anterior compreensão da questão, de que tais cláusulas seriam válidas (ilustrativamente: RO-36500-57.2009.5.17.0000, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, DEJT 15/06/2012). Nada obstante, a s decisões da SDC não vinculam os demais Órgãos deste Tribunal, razão pela qual este Ministro Relator, com a devida vênia, e em face da relevância da matéria, manifesta entendimento diverso, no âmbito desta Terceira Turma. Assim, a cláusula que cria contribuição patronal ao sindicato obreiro para custear prestação de assistência à saúde em prol da categoria profissional não é necessariamente inválida, nem contraposta aos princípios da autonomia e liberdade sindicais (art. 8º, caput e III, da CF). Em verdade, norma dessa natureza revela uma conquista da categoria profissional no âmbito da negociação coletiva, que traz benefícios para todos, considerando que o interesse na existência de um serviço de atendimento médico prestado aos trabalhadores é comum a ambas as categorias (econômica e profissional). Dessa maneira, há de se distinguir a cláusula em exame daquelas em que se criam obrigações genéricas de contribuições patronais, sem qualquer vinculação à prestação de serviços ou à concessão de benefícios aos membros da categoria profissional individualmente considerados – aí, sim, onde desponta visivelmente a possibilidade de interferência e controle financeiro pelo ente empresarial, que configuraria sério risco à autonomia e liberdade sindical. E m face da vinculação das receitas a um serviço de altíssima relevância pública, não se confirma a possibilidade de ingerência empresarial, tampouco a prática antissindical passível de censura. Muito pelo contrário. A propósito, qualquer situação que envolva efetivas considerações e medidas de saúde pública permite tratamento normativo diferenciado, à luz de critério jurídico valorizado pela própria Constituição da República. Note-se, ilustrativamente, a esse respeito, o art. 196, que afirma ser a saúde ” direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos… “; ou o art. 197, que qualifica como de ” relevância pública as ações e serviços de saúde.. .”, além de outros dispositivos, como os artigos 194 e 200, I, CF/88. Em consonância com o Texto Constitucional, a Lei nº 8.080/1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, enuncia que a ” saúde é um direito fundamental humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício ” (art. 2º). E, muito embora o Texto Constitucional e a Lei nº 8.080/1990 enfatizem o dever do Estado de garantir a saúde, esse dever essencial ” não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade ” (art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.080/1990), dada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Sob a perspectiva do nosso ordenamento jurídico, portanto, a tutela do direito fundamental à saúde da pessoa humana, individual e coletivamente considerada, é tida como de alta relevância e urgência, dada sua imprescindibilidade para a manutenção da existência da vida humana com dignidade e qualidade preservadas, de modo que a responsabilidade por sua efetivação pode e deve ser atribuída a todos os atores sociais partícipes na busca dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º da CF) – incluindo as empresas e os sindicatos. Desse modo, há, na Constituição, uma clara indução à criação normativa no sentido da melhoria das condições de trabalho, nos aspectos da segurança, saúde e higiene, e, relativamente ao campo da normatividade autônoma dos sujeitos coletivos do trabalho (7º, XXVI, da CF), esse estímulo é reforçado pelos arts. 3º, 6º e 7º, XXII, da CF . É bem verdade, por outra vista, que a falta de assistência à saúde é um dos principais problemas sociais existentes hoje no Brasil, razão pela qual a cooperação entre os atores coletivos do mundo do trabalho, em prol da concretização desse direito, é elogiável e muito bem-vinda. E, registre-se, a crise sanitária que levou o Estado, em todos os seus níveis, a reconhecer o estado de calamidade pública decorrente da Covid-19 descortinou a necessidade urgente de se pensar formas de cooperação entre os atores sociais, entre eles os sujeitos coletivos do trabalho, com vistas à efetivação concreta da proteção da saúde e a melhoria das condições de atendimento da população. Também por essa razão (precariedade e insuficiência do serviço público de saúde), portanto, a criação de ferramentas no âmbito das relações coletivas e individuais de trabalho para a concretização do direito fundamental é elogiável e muito bem-vinda – seja ela decorrente de iniciativa direta das Empresas, seja da negociação coletiva . De par com isso, a negociação coletiva, ao criar uma contribuição patronal vinculada à prestação de um serviço de relevância pública, constitui importante benefício para a categoria profissional, sem representar a ideia de ingerência empresarial nas ações sindicais. Na verdade, a cláusula traduz o mero repasse de valores pela entidade patronal para o custeio de serviços médicos a ser realizado diretamente pelo Sindicato, que organiza e proporciona aos trabalhadores, por meio de conquistas no âmbito da negociação coletiva, assistência no campo da saúde. A imposição de obrigação dessa ordem não representa, no plano prático, a possibilidade de controle empresarial sobre a estrutura e atuação do Sindicato. Supostos desvios na utilização dos recursos podem ser objeto de averiguação, por iniciativa dos interessados (trabalhadores, empresa ou MPT), não se excluindo a possibilidade de responsabilização civil e/ou criminal decorrente de eventual conduta ilícita. Não há se falar, porém, em presunção de ato ilícito ou de ingerência empresarial pelo simples fato de existir a contribuição vinculada. No caso concreto , portanto, não se vislumbra a indigitada violação aos princípios da liberdade e da autonomia sindicais, devendo ser mantida a decisão do Tribunal Regional do Trabalho. Recurso de revista não conhecido .
A decisão foi unânime.
Processo: RR-559-54.2021.5.08.0201