É lícita a exigência de processo seletivo público para ingresso em cooperativa de trabalho médico

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou lícita a previsão, em estatuto social de cooperativa de trabalho médico, de processo seletivo público e impessoal como requisito de admissão de profissionais para os quadros da entidade.

O colegiado deu provimento, por unanimidade, ao recurso especial interposto por uma cooperativa de médicos para lhe assegurar o direito de aplicação do exame seletivo, conforme previsão de seu estatuto social.

Relator do recurso, o ministro Villas Bôas Cueva afirmou que o princípio cooperativista da porta aberta (livre adesão) não é absoluto, devendo a cooperativa de trabalho médico – que também é uma operadora de plano de saúde – velar pela qualidade de seu atendimento e pela situação financeira estrutural.

A cooperativa argumentou que o ingresso de cooperados é livre, desde que atenda aos propósitos sociais e às condições do estatuto, como a preservação técnica da prestação dos serviços, estando a aprovação no processo seletivo estabelecida como condição em seu estatuto social, conforme previsto nos artigos 4º, inciso I, 29 e 30 da Lei 5.764/1971.

Simples inconveniência não é impossibilidade técnica

No caso julgado, um médico oftalmologista, alegando que atendia os requisitos exigidos por lei, ajuizou ação contra a cooperativa para obter sua imediata inclusão no quadro de cooperados.

O juiz de primeiro grau entendeu que a exigência de processo seletivo contraria o princípio da livre adesão, e julgou o pedido procedente. A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), para o qual só poderia ser exigida, como requisito técnico, a capacitação do cooperado para o exercício da profissão.

O ministro Villas Bôas Cueva explicou, inicialmente, que é vedada a recusa de admissão de novos associados qualificados quando não atingida a capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa. Segundo ele, não podem existir restrições arbitrárias e discriminatórias à entrada de novo membro, e a eventual impossibilidade técnica que a impeça deve ser interpretada segundo a natureza da cooperativa e amparada em estudos técnicos de viabilidade.

“A simples inconveniência da entrada de novos membros, por causa de eventual diminuição no lucro dos já cooperados, não caracteriza a impossibilidade técnica prescrita pela lei, sob pena de se subverterem os ideais do sistema cooperativista”, declarou.

Admissão tem requisitos objetivos e de qualificação

Todavia – ressaltou o relator –, no caso dos autos, um dos requisitos previstos no próprio estatuto da cooperativa é a submissão do interessado a uma seleção pública que exige conteúdos de ética médica, cooperativismo e gestão em saúde – o que não se confunde com conhecimentos médicos gerais ou especializados, cuja fiscalização compete ao respectivo conselho de classe.

“Há, portanto, requisitos objetivos e de qualificação para fins de absorção do contingente de médicos, conforme a capacidade do ente, esta aferida por critérios técnicos, como a situação econômico-financeira da cooperativa, o comportamento do mercado local de prestação de serviços e a necessidade específica de aumento do número de cooperados de dada especialidade para atender a demanda de usuários”, afirmou.

Villas Bôas Cueva também destacou que, por força de lei, o interessado em ser cooperado deve aderir aos propósitos sociais do ente e preencher as condições estatutárias, e é preciso que o princípio da porta aberta seja compatibilizado com a possibilidade técnica de prestação de serviços, inclusive porque, diante da natureza de operadora de plano de saúde, há responsabilidade solidária entre os médicos cooperados e a cooperativa.

O ministro também citou precedentes que admitiram a exigência do processo seletivo para o ingresso de médicos nos quadros de cooperativa, desde que previsto em seu estatuto (AgInt no REsp 1.924.478 e AgInt no REsp 1.753.081).

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE. COOPERATIVA DE TRABALHO MÉDICO. NOVO ASSOCIADO. INGRESSO. RECUSA. REQUISITOS. PROCESSO SELETIVO PÚBLICO. ESTATUTO SOCIAL. PREVISÃO. CRITÉRIOS OBJETIVOS E IMPESSOAIS. NOVOS MEMBROS. VIABILIDADE. CAPACIDADE DE ABSORÇÃO. SITUAÇÃO FINANCEIRO-ESTRUTURAL. ESTUDOS TÉCNICOS. PRINCÍPIO DA PORTA ABERTA. RELATIVIZAÇÃO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. IMPOSSIBILIDADE TÉCNICA.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3⁄STJ).
2. Cinge-se a controvérsia a definir se a cooperativa de trabalho médico (UNIMED) pode limitar, por meio de processo seletivo público, o ingresso de novos associados ao fundamento de preservação da possibilidade técnica de prestação de serviços.
3. A cooperativa de trabalho, como a de médicos, coloca à disposição do mercado a força de trabalho, cujo produto da venda – após a dedução de despesas – é distribuído, por equidade, aos associados, ou seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado (número de consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).
4. O ingresso nas cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas no estatuto, sendo, em regra, ilimitado o número de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços (arts. 4º, I, e 29 da Lei nº 5.764⁄1971). Incidência do princípio da livre adesão voluntária.
5. Pelo princípio da porta aberta, consectário do princípio da livre adesão, não podem existir restrições arbitrárias e discriminatórias à livre entrada de novo membro na cooperativa, devendo a regra limitativa da impossibilidade técnica de prestação de serviços ser interpretada segundo a natureza da sociedade cooperativa, sobretudo porque a cooperativa não visa o lucro, além de ser um empreendimento que possibilita o acesso ao mercado de trabalhadores com pequena economia, promovendo, portanto, a inclusão social.
6. A negativa de ingresso de profissional na cooperativa de trabalho médico não pode se dar somente em razão de presunções acerca da suficiência numérica de associados na região exercendo a mesma especialidade, havendo necessidade de estudos técnicos de viabilidade. Por outro lado, atingida a capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa, aferível por critérios objetivos e verossímeis, impedindo-a de cumprir sua finalidade, é admissível a recusa de novos associados.
7. O princípio da porta aberta (livre adesão) não é absoluto, devendo a cooperativa de trabalho médico, que também é uma operadora de plano de saúde, velar por sua qualidade de atendimento e situação financeira estrutural, até porque pode ser condenada solidariamente por atos danosos de cooperados a usuários do sistema (a exemplo de erros médicos), o que impossibilitaria a sua viabilidade de prestação de serviços.
8. É lícita a previsão em estatuto social de cooperativa de trabalho médico de processo seletivo público e de caráter impessoal, exigindo-se conteúdos a respeito de ética médica, cooperativismo e gestão em saúde como requisitos de admissão de profissionais médicos para compor os quadros da entidade, mesmo porque, por força de lei, o interessado deve aderir aos propósitos sociais do ente e preencher as condições estatutárias estabelecidas, devendo o princípio da porta aberta ser compatibilizado com a possibilidade técnica de prestação de serviços e a viabilidade estrutural econômico-financeira da sociedade cooperativa. Precedentes.
9. O interessado que não lograr êxito no processo seletivo da cooperativa continuará a exercer sua especialidade médica em consultórios, hospitais e demais estabelecimentos de saúde, podendo, inclusive, ser prestador de serviço credenciado de outras operadoras de plano de assistência à saúde.
10. Recurso especial provido.

Leia o acórdão no REsp 1.901.911.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1901911

Deixe uma resposta

Iniciar conversa
Precisa de ajuda?
Olá, como posso ajudar