Correção monetária abusiva não é suficiente para afastar mora do comprador de imóvel

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a cobrança abusiva de correção monetária sobre o saldo devedor não é suficiente para descaracterizar a mora do comprador de imóvel. Com esse entendimento, o colegiado afastou a condenação em danos morais e lucros cessantes imposta a uma incorporadora que inscreveu os compradores em cadastro de inadimplentes após eles pagarem parcela em valor menor do que o montante previsto no contrato.

A venda foi fechada em abril de 2010, com previsão de entrega do imóvel em março de 2013 – já computado o prazo de tolerância. Contudo, o “habite-se” foi expedido somente em maio, dois meses depois do prazo de tolerância.

Após a expedição do “habite-se”, os compradores fizeram dois pagamentos, porém em valor menor do que o contrato previa para a entrega das chaves. Por isso, a empresa providenciou a inscrição em cadastro de proteção ao crédito.

Os compradores quitaram o saldo devedor e receberam as chaves em outubro de 2013. Posteriormente, ajuizaram ação de indenização por danos morais e materiais, além de pedido para a outorga da escritura, cuja lavratura estava pendente.

As instâncias ordinárias condenaram a incorporadora a outorgar a escritura em 15 dias, sob pena de multa. A empresa também foi condenada a pagar lucros cessantes equivalentes a dois meses de aluguel, por causa do atraso do “habite-se”, e indenização por danos morais de R$ 8 mil, além de restituir os valores pagos a mais pelos adquirentes em razão da aplicação do Índice Nacional de Construção Civil (INCC) após o prazo contratualmente previsto para a entrega da obra.

Temas repet​itivos

Ao analisar o recurso da incorporadora, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino considerou que, para a jurisprudência do STJ – firmada em relação aos contratos bancários –, a cobrança abusiva que descaracteriza a mora é aquela verificada nos juros remuneratórios ou na capitalização (Tema 28).

Além disso, o relator ressaltou que, no julgamento do Tema 972, que trata da tarifa de gravame eletrônico, o tribunal entendeu que o abuso de encargos acessórios (como a correção monetária) não descaracteriza a mora.

“Transportando as razões de decidir desse entendimento, dos contratos bancários para o caso dos autos, impõe-se concluir que a abusividade da correção monetária não é suficiente para descaracterizar a mora do consumidor, ao qual caberia pagar, ao menos, o valor nominal do saldo devedor”, disse o ministro.

Inscrição legítim​​a

Sanseverino observou que, como os compradores optaram por efetuar um pagamento parcial que não alcançava o valor nominal do saldo devedor, foi legítima a conduta da incorporadora ao inscrevê-los em cadastro de inadimplentes, pois a mora na quitação do saldo estava configurada.

Pelo mesmo motivo – acrescentou o relator –, não houve ilicitude na recusa de entrega das chaves do imóvel, pois havia cláusula contratual expressa que condicionava esse ato à quitação do saldo devedor.

“As únicas ilicitudes que se vislumbra no proceder da incorporadora foram o atraso de dois meses na obtenção do ‘habite-se’, a atualização monetária pelo INCC durante esse período e a demora na outorga da escritura. Essas condutas, embora ilícitas, têm sido compreendidas pela atual jurisprudência desta Corte Superior como inaptas a produzir dano moral, pois seus efeitos não extrapolam o âmbito contratual”, ressaltou.

O ministro entendeu que, mesmo tendo havido atraso da incorporadora na obtenção do “habite-se”, o comportamento posterior dos compradores – que pagaram aquém do valor nominal do saldo devedor – entra em contradição com a pretensão de lucros cessantes, pois, ainda que a obra tivesse sido concluída no prazo, o pagamento parcial, por si só, seria suficiente para justificar a recusa da incorporadora em entregar as chaves.

O recurso REsp REsp 1061530, base para o Tema 28/STJ, ficou assim ementado:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E BANCÁRIO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL DE CLÁUSULAS DE CONTRATO BANCÁRIO. INCIDENTE DE PROCESSO REPETITIVO. JUROS REMUNERATÓRIOS. CONFIGURAÇÃO DA MORA. JUROS MORATÓRIOS. INSCRIÇÃO⁄MANUTENÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. DISPOSIÇÕES DE OFÍCIO.
DELIMITAÇÃO DO JULGAMENTO
Constatada a multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, foi instaurado o incidente de processo repetitivo referente aos contratos bancários subordinados ao Código de Defesa do Consumidor, nos termos da ADI n.º 2.591-1. Exceto: cédulas de crédito rural, industrial, bancária e comercial; contratos celebrados por cooperativas de crédito; contratos regidos pelo Sistema Financeiro de Habitação, bem como os de crédito consignado.
Para os efeitos do § 7º do art. 543-C do CPC, a questão de direito idêntica, além de estar selecionada na decisão que instaurou o incidente de processo repetitivo, deve ter sido expressamente debatida no acórdão recorrido e nas razões do recurso especial, preenchendo todos os requisitos de admissibilidade.
Neste julgamento, os requisitos específicos do incidente foram verificados quanto às seguintes questões: i) juros remuneratórios; ii) configuração da mora; iii) juros moratórios; iv) inscrição⁄manutenção em cadastro de inadimplentes e v) disposições de ofício.
PRELIMINAR
O Parecer do MPF opinou pela suspensão do recurso até o julgamento definitivo da ADI 2.316⁄DF. Preliminar rejeitada ante a presunção de constitucionalidade do art. 5º da MP n.º 1.963-17⁄00, reeditada sob o n.º 2.170-36⁄01.
I – JULGAMENTO DAS QUESTÕES IDÊNTICAS QUE CARACTERIZAM A MULTIPLICIDADE.
ORIENTAÇÃO 1 – JUROS REMUNERATÓRIOS
a) As instituições financeiras não se sujeitam à limitação dos juros remuneratórios estipulada na Lei de Usura (Decreto 22.626⁄33), Súmula 596⁄STF;
b) A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade;
c) São inaplicáveis aos juros remuneratórios dos contratos de mútuo bancário as disposições do art. 591 c⁄c o art. 406 do CC⁄02;
d) É admitida a revisão das taxas de juros remuneratórios em situações excepcionais, desde que caracterizada a relação de consumo e que a abusividade (capaz de colocar o consumidor em desvantagem exagerada – art. 51, §1º, do CDC) fique cabalmente demonstrada, ante às peculiaridades do julgamento em concreto.
ORIENTAÇÃO 2 – CONFIGURAÇÃO DA MORA
a) O reconhecimento da abusividade nos encargos exigidos no período da normalidade contratual (juros remuneratórios e capitalização) descarateriza a mora;
b) Não descaracteriza a mora o ajuizamento isolado de ação revisional, nem mesmo quando o reconhecimento de abusividade incidir sobre os encargos inerentes ao período de inadimplência contratual.
ORIENTAÇÃO 3 – JUROS MORATÓRIOS
Nos contratos bancários, não-regidos por legislação específica, os juros moratórios poderão ser convencionados até o limite de 1% ao mês.
ORIENTAÇÃO 4 – INSCRIÇÃO⁄MANUTENÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES
a) A abstenção da inscrição⁄manutenção em cadastro de inadimplentes, requerida em antecipação de tutela e⁄ou medida cautelar, somente será deferida se, cumulativamente: i) a ação for fundada em questionamento integral ou parcial do débito; ii) houver demonstração de que a cobrança indevida se funda na aparência do bom direito e em jurisprudência consolidada do STF ou STJ; iii) houver depósito da parcela incontroversa ou for prestada a caução fixada conforme o prudente arbítrio do juiz;
b) A inscrição⁄manutenção do nome do devedor em cadastro de inadimplentes decidida na sentença ou no acórdão observará o que for decidido no mérito do processo. Caracterizada a mora, correta a inscrição⁄manutenção.
ORIENTAÇÃO 5 – DISPOSIÇÕES DE OFÍCIO
É vedado aos juízes de primeiro e segundo graus de jurisdição julgar, com fundamento no art. 51 do CDC, sem pedido expresso, a abusividade de cláusulas nos contratos bancários. Vencidos quanto a esta matéria a Min. Relatora  e o Min. Luis Felipe Salomão.
II- JULGAMENTO DO RECURSO REPRESENTATIVO (REsp 1.061.530⁄RS)
A menção a artigo de lei, sem a demonstração das razões de inconformidade, impõe o não-conhecimento do recurso especial, em razão da sua deficiente fundamentação. Incidência da Súmula 284⁄STF.
O recurso especial não constitui via adequada para o exame de temas constitucionais, sob pena de usurpação da competência do STF.
Devem ser decotadas as disposições de ofício realizadas pelo acórdão recorrido.
Os juros remuneratórios contratados encontram-se no limite que esta Corte tem considerado razoável e, sob a ótica do Direito do Consumidor, não merecem ser revistos, porquanto não demonstrada a onerosidade excessiva na hipótese.
Verificada a cobrança de encargo abusivo no período da normalidade contratual, resta descaracterizada a mora do devedor.
Afastada a mora: i) é ilegal o envio de dados do consumidor para quaisquer cadastros de inadimplência; ii) deve o consumidor permanecer na posse do bem alienado fiduciariamente e iii) não se admite o protesto do título representativo da dívida.
Não há qualquer vedação legal à efetivação de depósitos parciais, segundo o que a parte entende devido.
Não se conhece do recurso quanto à comissão de permanência, pois  deficiente o fundamento no tocante à alínea “a” do permissivo constitucional e também pelo fato de o dissídio jurisprudencial não ter sido comprovado, mediante a realização do cotejo entre os julgados tidos como divergentes. Vencidos quanto ao conhecimento do recurso a Min. Relatora e o Min. Carlos Fernando Mathias.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido, para declarar a legalidade da cobrança dos juros remuneratórios, como pactuados, e ainda decotar do julgamento as disposições de ofício.
Ônus sucumbenciais redistribuídos.

O recurso REsp 1639320, base para o Tema 972/STJ, ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. TEMA 972⁄STJ. DIREITO BANCÁRIO. DESPESA DE PRÉ-GRAVAME.  VALIDADE NOS CONTRATOS CELEBRADOS ATÉ 25⁄02⁄2011. SEGURO DE PROTEÇÃO FINANCEIRA. VENDA CASADA. RESTRIÇÃO À ESCOLHA DA SEGURADORA. ANALOGIA COM O ENTENDIMENTO DA SÚMULA 473⁄STJ. DESCARACTERIZAÇÃO DA MORA. NÃO OCORRÊNCIA. ENCARGOS ACESSÓRIOS.
1. DELIMITAÇÃO DA CONTROVÉRSIA: Contratos bancários celebrados a partir de 30⁄04⁄2008, com instituições financeiras ou equiparadas, seja diretamente, seja por intermédio de correspondente bancário, no âmbito das relações de consumo.
2. TESES FIXADAS PARA OS FINS DO ART. 1.040 DO CPC⁄2015:
2.1 – Abusividade da cláusula que prevê o ressarcimento pelo consumidor da despesa com o registro do pré-gravame, em contratos celebrados a partir de 25⁄02⁄2011, data de entrada em vigor da Res.-CMN 3.954⁄2011, sendo válida a cláusula pactuada no período anterior a essa resolução, ressalvado o controle da onerosidade excessiva .
2.2 – Nos contratos bancários em geral, o consumidor não pode ser compelido a contratar seguro com a instituição financeira ou com seguradora por ela indicada.
2.3 – A abusividade de encargos acessórios do contrato não descaracteriza a mora.
3. CASO CONCRETO.
3.1. Aplicação da tese 2.3 ao caso concreto, mantendo-se a procedência da ação de reintegração de posse do bem arrendado.
4. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CPC⁄2015. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. ATRASO NA ENTREGA DA OBRA E NA LAVRATURA DA ESCRITURA. AÇÃO INDENIZATÓRIA E COMINATÓRIA. SALDO DEVEDOR PREVISTO NOMINALMENTE NO CONTRATO. PAGAMENTO AQUÉM DO VALOR NOMINAL. INADIMPLEMENTO DO PROMITENTE COMPRADOR. DIREITO AO RECEBIMENTO DAS CHAVES. INOCORRÊNCIA. INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. CABIMENTO. DESCARACTERIZAÇÃO DA MORA. DESCABIMENTO. ABUSIVIDADE NA COBRANÇA DO INCC. ENCARGO ACESSÓRIO. TEMA 972⁄STJ. DANOS MORAIS. INOCORRÊNCIA. ALEGAÇÕES DISSOCIADAS DA RESPECTIVA QUESTÃO FEDERAL. ÓBICE DA SÚMULA 284⁄STF.
1. Controvérsia acerca dos danos morais e materiais decorrentes de inscrição em cadastro de inadimplentes e de atraso na entrega do imóvel e na lavratura da escritura.
2. Caso concreto em que a parte autora admitiu que o contrato previa o valor nominal do saldo devedor, montante que não foi adimplido, mesmo após a obtenção do “Habite-se”.
3. Nos termos de tese firmada no Tema 28⁄STJ, o  reconhecimento da abusividade nos encargos exigidos no período da normalidade contratual (juros remuneratórios e capitalização) descaracteriza a mora.
4. Por sua vez, no Tema 972⁄STJ, consolidou-se entendimento no sentido de que “a abusividade de encargos acessórios do contrato não descaracteriza a mora”.
5. Aplicação das razões de decidir dos referidos temas ao caso dos autos para se concluir que a abusividade da cobrança do INCC não é suficiente para descaracterizar a mora do promitente comprador que pagou menos do que o valor nominal do saldo devedor.
6. Inexistência de ilicitude na conduta da incorporadora de recusar a entrega das chaves, tendo em vista a cláusula contratual que condicionava essa entrega ao pagamento do saldo devedor.
7. Inexistência de ilicitude na inscrição dos promitentes compradores em cadastro de inadimplentes, tendo em vista a não descaracterização da mora.
8. Afastamento da indenização por danos morais, face à licitude da negativação.
9. Ocorrência de ato ilícito por parte da incorporadora no que tange ao atraso de dois meses na obtenção do “Habite-se”.
10. Nos termos do Tema 996⁄STJ, o atraso na entrega do imóvel gera para o adquirente indenização correspondente ao valor locativo.
11. Necessidade de se fazer distinção para o caso concreto, tendo em vista o comportamento contraditório dos promitentes compradores, que buscaram reprovação para o atraso da incorporadora, pleiteando lucros cessantes, mas também praticaram conduta reprovável contratualmente, ao deixarem de quitar o saldo devedor após a obtenção do “Habite-se”.
12. Aplicação do princípio da boa-fé objetiva ao caso, na concreção da fórmula jurídica “tu quoque”.
13. Afastamento da condenação da incorporadora ao pagamento de indenização por lucros cessantes.
14. Inviabilidade de se conhecer de questões suscitadas nas razões do apelo nobre sem a correspondente devolução a esta Corte da questão federal controvertida. Óbice da Súmula 284⁄STF.
15. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

Leia o acórdão.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1823341

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