Contradição em resposta aos quesitos no Tribunal do Júri pode gerar nulidade e necessidade de novo julgamento

Um novo julgamento deverá ser realizado pelo Tribunal do Júri em uma ação envolvendo homicídio consumado e tentado contra dois policiais rodoviários federais, perseguidos em estrada, ameaçados por uma quadrilha armada em Rondônia. A decisão foi da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). O Colegiado constatou contradições nas repostas dadas pelos jurados aos quesitos formulados pelo presidente do Tribunal do Júri e reconheceu a nulidade parcial do júri no caso.

A ação chegou à análise da 3ª Turma por meio de apelação da União que questionou o fato de um dos réus do processo ter sido condenado por homicídio consumado, com dolo, em relação ao policial assassinado, porém absolvido do crime de homicídio tentado contra o outro policial, o que teria acontecido no mesmo contexto fático.

Segundo consta nos autos, os policiais rodoviários federais enquanto mapeavam a BR 421, a190km do Distrito de Jacinópolis, Buritis/RO, foram vítimas de uma quadrilha armada que cobrava pedágio de caminhoneiros na região. Os integrantes dessa quadrilha abordaram os policiais com o intuito de revistá-los.

No entanto, os agentes, resistindo à revista, conseguiram desarmar um dos integrantes da quadrilha que, tendo perdido a arma, fugiu com os outros, mas voltou minutos depois com os cúmplices em nova perseguição aos policiais pela estrada. Dessa vez, estando todos armados, atiraram em direção aos policiais, que responderam aos disparos e acabaram sendo atingidos, sendo que um deles não resistiu aos ferimentos e faleceu um mês depois.

Três homens foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) à Justiça. Os réus foram pronunciados e submetidos a julgamento em plenário pelo Tribunal do Júri.

Contradição – Elaborados os quesitos para serem submetidos ao corpo de jurados em relação a um dos acusados, a resposta dos jurados acabou por prejudicar a validade do júri.

A relatora, acompanhada por unanimidade pela 3ª Turma do TRF1, juíza federal Olívia Mérlin Silva (em regime de auxílio de julgamento a distância), esclareceu que o primeiro ponto problemático no procedimento residiu no fato de o Conselho de Sentença, embora tendo reconhecido que o acusado concorreu para o crime de homicídio tentado, entendeu que o referido denunciado não deu início à execução de um crime de homicídio que somente não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade.

Essa resposta afastava a ocorrência do dolo e a própria competência do Tribunal do Júri para processo e julgamento do tema. “A hipótese demandaria, então, o julgamento do crime pelo presidente do Tribunal do Júri, na forma do art. 492, § 2° do CPC, o que não ocorreu”, salientou a magistrada.

A magistrada afirmou que embora esse equívoco por si só fosse possível de ser reparado por meio da emendatio libeli, sem a necessidade de novo julgamento, ela constatou que havia séria contradição nas respostas. Isso porque cuidando-se de ações ocorridas de modo idêntico e simultaneamente – disparo de arma de fogo em face das duas vítimas na mesma ocasião –, não haveria suporte racional para entender que, comprovada a materialidade delitiva de ambos os ilícitos, houve desígnios diferentes do autor com relação a cada uma das vítimas.

“Não há como sustentar que havia animus necandi com relação a uma vítima e não com relação à outra. Nada há nos autos a corroborar tal assertiva, sendo idênticos o contexto e momento da violência empregada contra as duas vítimas”, afirmou ainda a relatora, destacando que, no caso, o mais correto seria a renovação da quesitação para que ou o acusado fosse condenado em ambos os crimes (homicídio consumo e tentado) ou que fosse absolvido em ambos.

Tribunal do Júri – A instituição do júri é reconhecida no art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal e regulada pelo Decreto-Lei n. 167/1938. Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (como assassinato, aborto, infanticídio, entre outros).

O recurso ficou assim ementado:

PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO CONSUMADO E TENTADO. ART. 483, III DO CPP. QUESITO GENÉRICO OBRIGATÓRIO SOBRE ABSOLVIÇÃO. EXCLUSÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO DOLO PELO CONSELHO DE SENTENÇA. OFENSA AO ART. 490, PARÁGRAFO ÚNICO. DESCLASSIFICAÇÃO. NULIDADE SANÁVEL. CONTRADIÇÃO ENTRE AS RESPOSTAS AOS QUESITOS. HOMICÍDIO TENTADO E CONSUMADO. MESMO CONTEXTO FÁTICO. IMPOSSIBILIDADE DE DIVERGÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO. ART. 564, PARÁGRAFO ÚNICO, CPP. NULIDADE ABSOLUTA. OFENSA AO ART. 490, CAPUT, CPP. ABSOLVIÇÃO DE CORRÉU POR NEGATIVA DE AUTORIA. MANIFESTA CONTRARIEDADE AO CONJUNTO PROBATÓRIO. INOCORRÊNCIA. ANULAÇÃO PARCIAL DO JULGAMENTO. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. 1. O Ministério Público Federal denunciou os acusados como incursos nas penas do art. 121, § 2°, II, c/c art. 14, II e art. 121, § 2°, II, todos do Código Penal, imputando-lhes a prática de homicídio consumado e homicídio tentado. Fixado o entendimento do Conselho de Sentença, o Juiz-Presidente prolatou sentença declarando parcialmente procedente a pretensão punitiva estatal para condenar um dos réus como incurso nas sanções do art. 121, caput, CP com relação ao homicídio consumado, absolvendo-o das demais imputações e absolver o outro acusado na forma do art. 386, IV do CPP. Recurso do Ministério Público Federal argumentando a existência de nulidade do julgamento em razão da apresentação do quesito genérico de absolvição quando a única tese defensiva foi a da negativa de autoria, destacando a existência de error in procedendo do Juiz-Presidente que, diante da resposta afirmativa quanto à materialidade e autoria, e negativa de participação do acusado OSMAR no homicídio tentado, deveria ter considerado prejudicado o quesito seguinte (absolvição por clemência), promovendo a desclassificação do delito e condenando o acusado pelos crimes de porte ilegal e disparo de arma de fogo. Defende também que a decisão do Conselho de Sentença é manifestamente contrária à prova dos autos no tocante à absolvição, ao motivo fútil e à tentativa, exaltando a contradição interna entre as respostas aos quesitos do homicídio tentado e o consumado quanto a um dos réus. 2. A formulação do quesito genérico referente à absolvição previsto no art. 483, III do CPP é obrigatório e deve ser realizado mesmo quando a tese defensiva se restringir à negativa de autoria. Entendimento do STJ e STF. 3. O exame atento da 2° Série (crime de homicídio tentado contra a vítima José Lopes) conduz à conclusão de que o quesito referente à absolvição do acusado (art. 483, III, CPP) encontrava-se prejudicado a partir das respostas aos quesitos imediatamente anteriores. É que o Conselho de Sentença embora tenha reconhecido que o acusado concorreu para o crime, disparando contra a vítima (quesito 2), entendeu que referido réu não deu início à execução de um crime de homicídio que somente não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade (quesito 3), afastando, portanto, a ocorrência do dolo e, com isso, a própria competência do Tribunal do Júri para processo e julgamento do tema. A hipótese demandaria, então, o julgamento do crime pelo Presidente do Tribunal do Júri, na forma do art. 492, § 2° do CPC, o que não ocorreu, eivando de nulidade o procedimento. Precedente do STJ. Malgrado tal equívoco, em princípio, pudesse ser corrigido, por meio da emendatio libeli, há outro vício insanável a fulminar de nulidade o julgamento realizado com relação ao réu OSMAR. 4. Há flagrante contradição entre as respostas aos quesitos da 1° e 2° séries com relação ao acusado OSMAR. Isso porque, cuidando-se de ações ocorridas no mesmo contexto fático, quer dizer, de modo idêntico e simultaneamente disparo de arma de fogo em face das duas vítimas na mesma ocasião não há suporte racional para entender que, comprovada a materialidade delitiva de ambos os ilícitos, houve desígnios diferentes do autor com relação a cada uma das vítimas. Nada há nos autos a corroborar tal assertiva, sendo idênticos o contexto e momento da violência empregada contra as duas vítimas. Verificada a ocorrência de ilegalidade no julgamento que condenou o acusado OSMAR por um delito (homicídio consumado) e absolveu pelo outro (homicídio tentado), de fato o mais correto seria a renovação da quesitação para que fosse condenado em ambos ou absolvido em ambos. Reconhecida a existência de contradição, o vício deveria ter sido suprido pelo Juiz Presidente do Tribunal do Júri, na forma do art. 490, CPP, sob pena de nulidade absoluta e insanável, na forma do art. 564, parágrafo único, CPP. Precedentes do STJ. 5. O artigo 5°, inciso XXXVIII da Constituição Federal estabelece a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri fundado no princípio do livre convencimento, de modo que não cabe ao Órgão Revisor de suas decisões proceder ao exame da correção, ou não, do veredicto popular. O que autoriza o comando do art. 593, III, d do CPP é apenas que se verifique a conformidade do julgamento realizado pelo Conselho de Sentença com conjunto probatório, de modo que, apenas nas hipóteses em que a solução engendrada pelo Júri Popular não encontrar lastro probatório mínimo nos elementos de prova, é que se admite a anulação do julgamento com determinação de sua renovação. 6. A revisão atenta do acervo probatório não permite a conclusão de que a absolvição do acusado CARLOS ANTÔNIO esteja manifestamente divorciada do conjunto probatório. É que a tese da negativa de autoria, amparada pelo Júri Popular, encontra ressonância na existência de elementos que, ainda que não infirmem diretamente a autoria, trazem dúvidas sérias e robustas acerca da efetiva participação do acusado nos delitos. 7. O reconhecimento da existência de nulidade absoluta quanto ao julgamento de OSMAR em razão da contradição interna entre as respostas às séries referentes a cada um dos delitos (homicídio consumado e tentado), sem que tenha havido interferência oportuna do Juiz Presidente do Tribunal do Júri enseja a determinação de renovação do julgamento quanto aos crimes que lhe são imputados (homicídio qualificado consumado e tentado). Todavia, a nulidade ora reconhecida é apenas parcial, na exata medida em que não alcança o julgamento realizado pelo Corpo de Jurados com relação aos crimes em face do outro acusado, CARLOS ANTÔNIO. Isto porque, embora se cuide de dois delitos de homicídio, um tentado e outro consumado, realizados em concurso formal, mediante uma só ação ou omissão, o certo é que há autonomia probatória em relação à autoria delitiva de cada um dos réus. 8. Apelação do Ministério Público Federal parcialmente provida para reconhecer a existência de contradição entre as respostas às 1ª e 2ª séries do acusado OSMAR quanto ao homicídio qualificado consumado e tentado, em ofensa ao art. 490 do CPP e, assim, reconhecer a nulidade parcial do julgamento, sujeitando o réu a novo julgamento.

A 3ª Turma, à unanimidade, deu parcial provimento à apelação do MPF e reconheceu a nulidade parcial do júri do caso em análise.

 

Processo: 0001569-64.2012.4.01.4102

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