Por entender que a regra da solidariedade comum não é aplicável quando um dos devedores deu causa exclusiva à dívida, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou um homem a pagar cerca de R$ 2,9 milhões ao banco Santander, em ação regressiva, por ter subtraído dinheiro e joias de sua ex-esposa, que estavam depositados em cofre sob a guarda da instituição financeira.
Segundo o colegiado, o ato ilícito praticado pelo ex-marido foi a causa determinante dos danos sofridos pela vítima, de forma que a divisão do ressarcimento representaria enriquecimento injustificável do infrator à custa do banco – situação que o direito de regresso busca impedir.
Na origem do caso, o Santander ressarciu integralmente a vítima em ação indenizatória, mas entrou com ação de regresso contra o ex-marido, alegando que também foi prejudicado pelo ato ilícito e que a dívida só interessava ao autor da infração. O pedido foi julgado procedente, mas apenas para condenar o ex-marido da vítima a pagar metade do valor restituído pelo banco, o que motivou ambas as partes a apelarem ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
A corte estadual, por sua vez, avaliou que a divisão do valor deveria ser mantida, pois a sentença reconheceu a falha na prestação dos serviços pelo banco, fato que justificaria a condenação solidária e a não aplicação do artigo 285 do Código Civil, o qual permite a responsabilização integral de um dos devedores solidários quando a dívida interessar exclusivamente a ele.
Ao interpor recurso especial, o banco reiterou que a dívida só interessava ao ex-marido da vítima, não sendo cabível a aplicação direta da regra da solidariedade comum.
Obrigações dos codevedores devem ser analisadas no caso concreto
De acordo com o relator no STJ, ministro Moura Ribeiro, o caso deve ser analisado sob a ótica da fase interna da relação obrigacional solidária, inaugurada a partir do cumprimento da prestação originária, e não da fase externa, representada pela relação entre codevedor e credor, na qual se baseou o acórdão do TJSP.
Citando diversos doutrinadores, o magistrado explicou que a ação de regresso estabelece uma nova relação jurídica, baseada, exclusivamente, no vínculo interno entre os codevedores e fundada na responsabilidade pessoal pelos atos culposos, e não na solidariedade passiva.
“É preciso analisar a relação entre os codevedores no caso concreto, isto é, os atos e os fatos respeitantes a eles, não cabendo apenas a conclusão simplista de que cada um responde de maneira igual pela obrigação principal, até porque, como visto, a divisão proporcional prevista no artigo 283 do Código Civil constitui uma presunção meramente relativa”, observou.
Falha na segurança do banco não justifica dividir o ressarcimento
Moura Ribeiro entendeu que o ex-marido deve responder sozinho pela dívida, pois o ato ilícito praticado por ele foi a causa determinante dos danos sofridos, justificando o dever de indenizar.
Mesmo diante da indiscutível falha no sistema de segurança bancária – reforçou o ministro –, o único beneficiado com a fraude foi quem subtraiu os pertences do cofre.
Para o relator, fracionar o ressarcimento, como fez o TJSP, implicaria enriquecimento injustificável do ex-marido da vítima à custa do banco – justamente a situação que o direito de regresso procura evitar.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REGRESSO. DÍVIDA SOLIDÁRIA ORIUNDA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA. SUBTRAÇÃO DE BENS MANTIDOS EM COFRE ALUGADO PELO ANTIGO BANESPA. PAGAMENTO INTEGRAL DA CONDENAÇÃO PELO BANCO. PRETENSÃO PELO RESSARCIMENTO DO PREJUÍZO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO A COISA JULGADA. TESE AFASTADA. SOLIDARIEDADE PASSIVA DESCONSTITUÍDA NA RELAÇÃO INTERNA DOS CODEVEDORES. DÍVIDA SOLIDÁRIA QUE INTERESSAVA SOMENTE AO CODEVEDOR QUE PRATICOU O ATO ILÍCITO. APLICAÇÃO DO ART. 285 DO CC. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. Não procede a alegação de violação aos dispositivos legais consubstanciados nos arts. 489 e 1.022 do CPC. A argumentação da parte recorrente é a de que o acórdão não teria enfrentado a tese de violação a coisa julgada. Porém, a hipótese não se amolda ao conceito de omissão, tampouco de ausência de fundamentação, pois a Corte paulista, expressamente, indicou a razão pela qual considerou que o recorrente tem o direito de exigir apenas a cota-parte que cabia ao codevedor solidário, nos termos do art. 283 do CC. O mero inconformismo da parte, com o julgamento contrário a sua pretensão, não caracteriza vício do julgado.
2. Não há que se falar em violação a coisa julgada, no caso, pois a questão relativa ao direito de regresso não restou decidida no pronunciamento judicial feito nos autos da ação indenizatória, mas apenas referida na fundamentação do v. acórdão, a título de obiter dictum.
2.1. “A qualidade de imutabilidade e indiscutibilidade da coisa julgada somente se agrega à parte dispositiva do julgado, não alcançando os motivos e os fundamentos da decisão judicial.
Precedentes.” (AgInt nos EDcl no REsp 1593243/SC, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Terceira Turma, j. 22/08/2017).
3. A questão trazida a debate consiste em definir se é o caso de aplicação direta da regra de solidariedade comum (art. 283 do CC), ou se a instituição financeira tem o direito de ser indenizada pela integralidade da dívida pela qual foi condenada a pagar, em ação indenizatória.
3.1. No caso em concreto, as partes foram condenadas, solidariamente, a indenizar a vítima pelos danos sofridos em decorrência do ato ilícito praticado pelo recorrido, que dela subtraiu dinheiro e joias, que estavam mantidos em um cofre, por ela alugado, no antigo Banco Banespa que, por sua vez, falhou no dever de vigilância e proteção do conteúdo depositado sob a sua guarda.
4. A controvérsia deve ser analisada sob a perspectiva da fase interna da relação obrigacional solidária, inaugurada a partir do cumprimento da prestação originária, e não da fase externa (relação entre codevedor e credor).
4.1. Na ação de regresso por sub-rogação, nasce uma nova relação jurídica, baseada, exclusivamente, no vínculo interno entre os codevedores e fundada na responsabilidade.
5. Sob a perspectiva dessa relação interna, é inequívoco que o ato ilícito praticado pelo recorrido foi a causa determinante dos danos sofridos pela vítima e pelo dever de indenizar, em razão da subtração ilícita dos objetos por ela depositados no cofre da então instituição bancária.
6. Fracionar o ressarcimento, como fez o Tribunal estadual, implicaria um enriquecimento injustificável do recorrido à custa do recorrente, que é, justamente, o que o direito de regresso busca vedar.
7. Nesse caso, portanto, é imperioso concluir que a solidariedade passiva estabelecida na ação indenizatória interessou, unicamente ao recorrido, devendo ele arcar integralmente com a dívida, nos termos do art. 285 do Código Civil.
8. Recurso especial provido.
Leia o acórdão no REsp 2.069.446.