Após precedente do STF, juiz pode proferir nova decisão em inventário não concluído para ajustar questão sucessória

Ao negar o pedido de reconhecimento do direito à meação para a ex-companheira de um homem falecido que iniciou a união estável após ter completado 70 anos de idade, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou que, em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 809 – a qual declarou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil –, o juiz pode proferir nova decisão em inventário não concluído para ajustar a questão sucessória.

O entendimento foi aplicado no julgamento de recurso especial em que a ex-companheira alegou que a questão da meação estaria preclusa no inventário, porque o magistrado, em decisão anterior, teria reconhecido a ela esse direito. Após o julgamento do STF no Tema 809, contudo, o juiz proferiu nova decisão para negar à ex-companheira o direito de meação dos bens adquiridos durante a união estável e de concorrer com as filhas do falecido na partilha dos bens particulares deixados por ele.

A segunda decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Além de considerar aplicável ao caso o regime da separação obrigatória de bens, o TJSP concluiu que não houve demonstração de que a ex-companheira tenha contribuído para a aquisição do patrimônio sobre o qual pretendia que incidisse a meação.

Por meio de recurso especial, a ex-companheira alegou que o artigo 1.641, inciso II, do Código Civil não se aplicaria à união estável, motivo pelo qual deveria ser considerado o artigo 1.725, em razão da ausência de contrato escrito de união estável. Ela também apontou violação dos artigos 505 e 507 do Código de Processo Civil, sob o fundamento de que estaria preclusa a decisão que reconheceu o direito à meação.

STF modulou efeitos do Tema 809 para aplicá-lo a inventários ainda não finalizados

A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, destacou que, ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, o STF modulou a aplicação da tese para abarcar apenas os processos judiciais em que ainda não tivesse havido o trânsito em julgado da sentença de partilha.

Em razão desse novo cenário normativo, a relatora lembrou que, no julgamento do REsp 1.904.374, a Terceira Turma entendeu ser lícito ao juiz proferir nova decisão para ajustar questão sucessória em inventário ainda não concluído, com base na decisão vinculante do STF no Tema 809.

“Ainda que se considere que a decisão interlocutória alegadamente preclusa teria estabelecido determinado regime patrimonial e teria concedido os reclamados direitos sucessórios à recorrente, à luz do artigo 1.790 do CC/2002 (o que, aliás, é fato controvertido), poderia o juiz proferir nova decisão interlocutória, de modo a amoldar a resolução da questão ao artigo 1.829, inciso I, do CC/2002, após o julgamento do tema 809/STF, desde que o inventário estivesse pendente, como de fato ainda está”, apontou.

Para TJSP, ex-companheira não provou contribuição para aquisição dos bens inventariados

A relatora também citou precedentes do STJ no sentido de estender à união estável dispositivos do Código Civil previstos para o casamento, entre eles a imposição do regime da separação obrigatória para pessoas maiores de 70 anos (artigo 1.641, inciso II, do Código Civil). Os precedentes, inclusive, deram origem à Súmula 655 do STJ.

No caso dos autos, Nancy Andrighi lembrou que, segundo o TJSP, não houve a produção de qualquer prova, nem mesmo na fase recursal, a respeito da contribuição da ex-companheira para a aquisição dos bens indicados no inventário.

“Sublinhe-se que a ação de inventário é um ambiente naturalmente árido à ampla instrução probatória, sobretudo por força das restrições cognitivas estabelecidas em relação à matéria fática e da necessidade de seu exame nas vias ordinárias (artigo 984 do CPC/1973 e artigo 612 do CPC/2015), de modo que as conclusões do acórdão recorrido, a respeito da inexistência de prova sequer indiciária do esforço comum, devem ser consideradas à luz desse contexto”, concluiu a ministra ao negar o recurso.

O recurso ficou assim ementado:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. OMISSÃO SOBRE QUESTÃO CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO SOBRE A INCIDÊNCIA DA SÚMULA 377⁄STF. INOCORRÊNCIA. QUESTÃO DECIDIDA DE FORMA EXPRESSA E CLARA. OMISSÃO SOBRE PRECLUSÃO. OCORRÊNCIA. NULIDADE DO JULGADO. DESNECESSIDADE. PRIMAZIA DA RESOLUÇÃO DO MÉRITO. EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE CONTRÁRIO À TESE RECURSAL. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA PROFERIDA COM BASE NO ART. 1.790 DO CC⁄2002. SUPERVENIÊNCIA DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA REGRA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADEQUAÇÃO À NOVA REALIDADE NORMATIVA. POSSIBILIDADE. MODULAÇÃO DE EFEITOS. APLICABILIDADE DA TESE ÀS AÇÕES DE INVENTÁRIO EM CURSO. REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS ENTRE OS SEPTUAGENÁRIOS. APLICABILIDADE À UNIÃO ESTÁVEL. COMUNICAÇÃO DE BENS ADMITIDA, DESDE QUE COMPROVADO O ESFORÇO COMUM. INOCORRÊNCIA NA HIPÓTESE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL PREJUDICADO. ACÓRDÃO RECORRIDO CONFORME JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA 83⁄STJ.
1- Ação de inventário proposta em 12⁄09⁄2007. Recurso especial interposto em 08⁄09⁄2020 e atribuído à Relatora em 10⁄02⁄2022.
2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se há omissões e contradição relevantes no acórdão recorrido; (ii) se o direito de meação da recorrente teria sido objeto de decisão anterior acobertada pela preclusão; (iii) se o art. 1.641, II, do CC⁄2002, que impõe o regime da separação de bens ao casamento do septuagenário, aplica-se à união estável; (iv) se, na hipótese, incide a Súmula 377⁄STF, de modo a ser cabível a partilha dos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável; (v) se o direito à meação seria fato incontroverso e dispensaria a produção de prova; e (vi) se houve dissídio jurisprudencial.
3- Cabe ao Supremo Tribunal Federal, e não ao Superior Tribunal de Justiça, examinar a suposta ocorrência de omissão sobre a alegada inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC⁄2002, uma vez que compete exclusivamente àquela Corte examinar a pertinência e a relevância da questão constitucional suscitada pela parte para o desfecho da controvérsia.
4- Não há omissão e contradição no acórdão recorrido que examina, de forma expressa e clara, a matéria relativa à incidência da Súmula 377⁄STF suscitada pela parte.
5- Conquanto existente a omissão sobre a alegada ocorrência de preclusão, supostamente ocorrida em virtude de anterior decisão interlocutória, proferida antes do julgamento do tema 809⁄STF, em que teria sido reconhecido o direito à meação pleiteado pela parte, a jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que, em homenagem ao princípio da primazia da resolução de mérito, não se deve decretar a nulidade do julgado e determinar o retorno do processo à Corte estadual para que supra omissão sobre uma questão que já foi objeto de posicionamento desta Corte em oportunidade anterior. Precedente.
6- Em ação de inventário, o juiz que proferiu decisão interlocutória fundada no art. 1.790 do CC⁄2002 estará autorizado a proferir uma nova decisão a respeito da matéria anteriormente decidida, de modo a ajustar a questão sucessória ao superveniente julgamento da tese firmada no tema 809⁄STF e à disciplina do art. 1.829 do CC⁄2002, uma vez que o Supremo Tribunal Federal modulou temporalmente a aplicação da tese de modo a atingir os processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha. Precedente.
7- A regra do art. 1.641, II, do CC⁄2002, que estabelece o regime da separação de bens para os septuagenários, embora expressamente prevista apenas para a hipótese de casamento, aplica-se também às uniões estáveis. Precedentes.
8- No regime da separação legal, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento ou da união estável, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. Precedentes.
9- Na hipótese, o acórdão recorrido, soberano no exame da matéria fático-probatória, concluiu que não houve prova, sequer indiciária, de que a recorrente tenha contribuído para a aquisição dos bens que pretende sejam partilhados e que pudesse revelar a existência de esforço comum, a despeito de à parte ter sido oportunizada a produção das referidas provas, ainda que em âmbito de cognição mais restritivo típico das ações de inventário.
10- Prejudicado o exame do alegado dissídio jurisprudencial, na medida em que a orientação do acórdão recorrido está em plena sintonia com a jurisprudência firmada nesta Corte. Aplicabilidade da Súmula 83⁄STJ.
11- Recurso especial conhecido e não-provido.

Leia também:

Inconstitucionalidade da distinção de regimes sucessórios alcança decisão anterior que prejudicou companheira

Leia o acórdão no REsp 2.017.064.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 2017064

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