A 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) reformou a sentença que negou o pedido de matrícula de uma estudante no curso de Farmácia, da Universidade Federal da Bahia, em uma das vagas destinadas a pessoas que se declararem pretas ou pardas.
Na hipótese, a aluna teve seu pedido de matrícula indeferido pela Comissão de Heteroidentificação da instituição sob o argumento de que a impetrante não apresentava características fenótipas condizentes com a autodeclaração por ela apresentada. A requerente apelou pedindo a nulidade da sentença.
Ao analisar o caso, o relator, desembargador federal Daniel Paes Ribeiro, afirmou que a questão relacionada a ações afirmativas mediante reserva de vagas a pessoas que se declararem negras já foi objeto de análise no Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou a constitucionalidade da Lei 12.990/2014.
O normativo dispôs sobre a reserva de vagas para negros em concurso público, bem como de mecanismos para se evitar fraude pelos candidatos, legitimando, assim, a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
Ausência de fundamentação para excluir candidata – No caso, segundo o magistrado, não se trata exatamente da identificação racial da impetrante, mas, sim, de ausência de fundamentação da decisão da comissão que decidiu pela exclusão da candidata do certame, que se limitou a apontar, de maneira genérica, “que a candidata não apresentava traços fenotípicos que a identificassem com o tipo nego (preto/pardo) na sociedade brasileira”.
Por outro lado, afirmou, “o edital que veiculou o processo seletivo, bem como aquele de convocação para aferição da veracidade da autodeclaração como pessoa parda ou negra não estabeleceram quaisquer critérios objetivos para eventual aferição de fraude na autodeclaração”.
O recurso ficou assim ementado:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPERIOR. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA). COTAS RACIAIS. IMPETRANTE QUE SE AUTODECLAROU DE COR PARDA. INDEFERIMENTO DA. MATRÍCULA. PRINCÍPIOS QUE REGEM OS ATOS ADMINISTRATIVOS. SENTENÇA DENEGATÓRIA DA SEGURANÇA, REFORMADA. 1. Conforme disposto no art. 3º da Lei n. 12.711/2012, em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016). 2. A questão relacionada a ações afirmativas, mediante reserva de vagas a pessoas que se declararem negras, já foi objeto de análise no Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, o qual declarou a constitucionalidade da Lei n. 12.990/2014, que dispôs sobre a reserva de vagas para negros em concurso público, bem como de mecanismos para evitar fraudes pelos candidatos, legitimando, assim, a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação (e.g., a exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso), desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa (ADC 41, Relator Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, Processo Eletrônico DJe-180, divulg em 16.08.2017, publicação em 17.08.2017). 3. Este Tribunal, por sua vez, em recentes julgamentos, vem entendendo que, apesar da legitimidade da adoção da heteroidentificação como critério supletivo à autodeclaração racial do candidato (ADC 41), devem ser observados outros critérios objetivos antecedentes à avaliação realizada, considerando os princípios norteadores das relações mantidas pela Administração, dentre eles, o da vinculação ao edital e da segurança jurídica. Precedentes. 4. A jurisprudência desta Corte Regional vem admitindo a possibilidade de afastamento das conclusões das comissões de heteroidentificação de processos seletivos públicos, quando, dos documentos juntados aos autos, é possível verificar que as características e aspectos fenotípicos da candidata são evidentes, de acordo com o conceito de negro (que inclui pretos e pardos) utilizado pelo legislador, baseado nas definições do IBGE (AMS 1002715-69.2020.4.01.3803, Relator Desembargador Federal Souza Prudente, PJe 06.05.2022). 5. Hipótese em que a Comissão de Verificação da Autodeclaração, constituída pela UFBA se limitou a apontar, de forma genérica, que a Candidata não apresenta traços fenotípicos que o identifiquem com o tipo negro (preto/pardo) na sociedade brasileira, quando há documento nos autos que descreve a impetrante como sendo de cor parda. Não foi especificada qual seria a característica fenotípica da impetrante de modo que esta não pudesse ser enquadrada na condição declarada. Sobretudo, não foram apresentados critérios objetivos para a análise do fenótipo do candidato, o que afronta o ordenamento jurídico. 6. Oportuno destacar que a questão em discussão não se refere, exatamente, à identificação racial do impetrante, mas, sim, à ausência de fundamentação idônea da decisão da comissão que decidiu pela exclusão do candidato do certame em razão de constatação de irregularidade meramente formal, sendo certo que o art. 50, incisos I e III, da Lei n. 9.784/1999 estabelece que os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: III – decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; ou V – decidam recursos administrativos. 7. Não implica em quebra da autonomia universitária a intervenção do Poder Judiciário, quando desrespeitados os princípios da legalidade e da razoabilidade, não se tratando de substituição da Administração, no que se refere ao critério por ela adotado, mas, sim, no quanto à sua observância. 8. Sentença denegatória da segurança, que se reforma, para anular o ato administrativo que indeferiu a homologação da autodeclaração étnico-racial, determinando a matrícula da impetrante no Curso de Farmácia. 9. Apelação da impetrante provida.
Assim, nos termos do voto do relator, o Colegiado deu provimento à apelação da candidata para, reformando a sentença, anular o ato administrativo que indeferiu a homologação da autodeclaração étnico-racial, determinando a matrícula da impetrante no curso de Farmácia.
Processo: 1002760-43.2019.4.01.3307