A denunciação da lide e as regras de proteção do consumidor

A denunciação da lide – chamamento de outra pessoa para responder à ação – é uma possibilidade existente no ordenamento jurídico para dar celeridade processual, quando é evidente a responsabilização de terceiro no caso de derrota na ação principal.

Atualmente, a denunciação da lide não é mais uma obrigatoriedade, como constava no Código de Processo Civil de 1973. A redação do novo código, que entrou em vigor em 2016, expressamente menciona o instituto como uma possibilidade (artigo 125 do CPC 2015).

Mesmo antes do novo CPC, a doutrina e a jurisprudência já proibiam a denunciação em certas situações – por exemplo, nas relações de consumo, entre os demandados na cadeia de fornecimento, como forma de acelerar a solução do processo e a reparação dos danos causados ao consumidor. A proibição foi positivada no Código de Defesa do Consumidor (CDC), no artigo 88.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que a denunciação da lide em processos de consumo é vedada porque poderia implicar maior dilação probatória, gerando a produção de provas talvez inúteis para o deslinde da questão principal, de interesse do consumidor.

No entanto, conforme a interpretação do STJ, essa vedação foi pensada pelo legislador para beneficiar o consumidor, ou seja, deve ser invocada por ele em seu interesse, e não pelo denunciado para eximir-se de suas responsabilidades perante o denunciante.

Responsabilidade objetiva

Em outubro de 2016, ao analisar o REsp 913.687, a Quarta Turma firmou entendimento de que esse direito não pode ser invocado pelo denunciado. Na ocasião, o relator da matéria, ministro Raul Araújo, resumiu a posição do colegiado:

“Assim, se, de um lado, a denunciação da lide (CPC/1973, artigo 70) é modalidade de intervenção de terceiros que favorece apenas o réu denunciante (fornecedor, no caso), na medida em que este objetiva a responsabilização regressiva do denunciado, de outro lado, a norma do artigo 88 do CDC consubstancia-se em regra insculpida totalmente em benefício do consumidor, atuando em prol do ressarcimento de seus prejuízos o mais rapidamente possível, em face da responsabilidade objetiva do fornecedor.”

O caso analisado foi uma ação de reparação de danos materiais e morais contra hospital e operadora de plano de saúde, devido a negligência durante internação e erro médico. No meio do processo, o hospital denunciou a lide à médica responsável pelo atendimento, que seria a responsável pelos danos causados ao paciente/consumidor.

A denunciação foi realizada com base no artigo 70 do CPC/73, segundo o qual ela é cabível em relação “àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”.

Tal fato não foi contestado pelo consumidor, e, em recurso especial, a médica buscou aplicar a regra do artigo 88 em seu favor, alegando em síntese que não seria caso de denunciação da lide.

“Trata-se de direito subjetivo público assegurado ao consumidor para a facilitação de sua defesa. Não pode, portanto, ser arrebatado por corréu litisdenunciado para eximir-se de suas responsabilidades perante o denunciante, desvirtuando regra concebida em favor do consumidor em juízo”, justificou o ministro Raul Araújo.

A paciente alegou danos após o esquecimento de uma compressa cirúrgica no abdome e subsequentes equívocos nos exames que deveriam ter constatado a falha.

A aplicação do artigo 88, segundo a Quarta Turma, deve ser sempre invocada pelo consumidor interessado na demanda, e não pelo fornecedor ou terceiro:

“Deve, por esse motivo, ser arguida pelo próprio consumidor, em seu próprio benefício, de modo a não se admitir a produção de provas que não interessem ao consumidor em juízo, sendo a sua proteção o objetivo almejado pelo Código de Defesa do Consumidor quando proíbe, no artigo 88, a denunciação da lide.”

Ou seja, se o consumidor aceita a denunciação, o denunciado não pode invocar o artigo 88 a seu favor.

“Na situação dos autos, excluir a médica da lide neste estágio do processo, além de não trazer vantagem alguma ao consumidor, irá postergar o ressarcimento que a denunciada poderá ter de efetuar ao hospital denunciante, que, como se viu, também está protegido pelo princípio da celeridade e economia processual”, disse o relator.

Maior alcance

Em 2012, a Terceira Turma do STJ alterou a orientação vigente na interpretação do artigo 88 do CDC. Até então, a vedação era restrita às hipóteses do artigo 13 do código, ou seja, às relações do fato do produto.

Ao julgar o REsp 1.165.279, a Terceira Turma decidiu que a vedação à denunciação da lide prevista no artigo 88 do CDC não se restringe à responsabilidade de comerciante por fato do produto (artigo 13), sendo aplicável também nas demais hipóteses de responsabilidade civil por acidentes de consumo (artigos 12, 14 e 17 do CDC).

O entendimento da turma na ocasião prestigiou a celeridade processual que deve reger as ações de indenização movidas por consumidores, evitando a multiplicação de teses e argumentos de defesa que dificultem a identificação da responsabilidade do fornecedor de serviço.

Segundo o colegiado, a orientação foi revista já que todos os fornecedores são responsáveis solidariamente pelos danos, podendo ser demandados coletiva ou individualmente, segundo opção do consumidor.

O direito de regresso fica assegurado ao fornecedor contra os demais responsáveis. No caso analisado, a Brasil Telecom passou a integrar o polo passivo da ação, e a Embratel, também denunciada, ficou com o direito de ajuizar ação de regresso em demanda autônoma. Segundo o relator do processo, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, há uma razão técnica para a proibição.

“Basta observar que a denunciação da lide foi proibida pelo artigo 88 do CDC não apenas para evitar a natural procrastinação ensejada por essa modalidade de intervenção de terceiros, mas também para evitar a dedução no processo de uma nova causa de pedir, inclusive com fundamento distinto da formulada pelo consumidor (discussão da responsabilidade subjetiva)”, disse o ministro.

Sanseverino analisou as razões para modificar o posicionamento do colegiado, ampliando as situações nas quais a denunciação da lide deve ser evitada.

“A motivação dessas regras é o sistema moderno de fabricação e de distribuição massificada de produtos, fazendo com que fossem equiparados os diferentes agentes que atuam nas diversas etapas do ciclo produtivo, sendo essa a razão da solidariedade que os vincula. Apenas em relação ao comerciante abriu-se uma exceção, no artigo 13 do CDC, estabelecendo-se uma responsabilidade subsidiária restrita às hipóteses de impossibilidade de identificação do fabricante do produto, ou de má conservação de produtos perecíveis”, argumentou, citando o jurista Gustavo Tepedino e o ministro Herman Benjamin.

Embratel e Brasil Telecom foram condenadas solidariamente a indenizar um cliente por danos morais decorrentes de uma instalação de telefone realizada sem solicitação, gerando faturas. Em apelação, a Brasil Telecom foi excluída da demanda, com base na regra do artigo 88.

Com a decisão, o STJ passou a considerar que a vedação à denunciação não se restringe à responsabilidade do comerciante por fato do produto, sendo aplicável também nos casos de defeito na prestação do serviço (artigo 14 do CDC).

Gasoduto

Outro exemplo da interpretação do STJ sobre a denunciação da lide nas relações de consumo é dado pelo Ag 1.333.671. A Petrobras buscou denunciar a lide a uma empresa que, realizando obras em uma rodovia, atingiu gasoduto e provocou vazamento de gás, obrigando os moradores da área a deixar suas residências.

O ministro relator na Terceira Turma, Paulo de Tarso Sanseverino, destacou que as vítimas de um acidente são equiparadas a consumidores por incidência da norma prevista no artigo 17 do CDC, e “a denunciação da lide deve ser vedada em  todas  as hipóteses de ação de regresso contempladas pelo CDC referentes à responsabilidade por acidentes de consumo, conforme o artigo 88 desse código”.

Na demanda, a construtora contratada pelo governo estadual afirmou que o acidente não ocorreu por culpa sua. A sentença considerou que houve culpa da Petrobras por não informar onde passava o gasoduto. A denunciação da lide ao governo ou à construtora foi vedada, com o argumento de que a Petrobras poderia alegar tais teses em ação de regresso contra os supostos responsáveis.

“A denunciação da lide foi proibida pelo artigo 88 do CDC não apenas para evitar a natural procrastinação ensejada por essa modalidade de intervenção de terceiros, mas também para evitar a dedução no processo de uma nova causa de pedir, inclusive com fundamento distinto da formulada pelo consumidor”, justificou o relator, ao manter a condenação imposta à Petrobras.

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