A ação foi ajuizada mais de dois anos após o trânsito em julgado da decisão que se pretendia anula
O Município de Teresópolis (RJ) não conseguiu que a Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho julgasse uma ação rescisória ajuizada a fim de anular a decisão definitiva que o condenara a se abster de terceirizar mão-de-obra e a realizar concurso público para o preenchimento dos cargos da prefeitura. A SDI-2 extinguiu o processo por entender que o município perdera o direito de ajuizar ação com esse propósito, uma vez que ela havia sido apresentada mais de dois anos após o trânsito em julgado (esgotamento das possibilidades de recurso) da decisão que se queria anular.
Ação civil pública
O caso teve início quando o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou ação civil pública, em maio de 1999, com pedido para que o município deixasse de contratar mão-de-obra por meio de empresas e preenchesse seu quadro de pessoal por meio de concurso. A decisão que acolheu o pedido do MPT se tornou definitiva em 8/4/2005.
Ação rescisória
Em 30/1/2018, o município ajuizou a ação rescisória com o objetivo de anular essa decisão. A pretensão fundamentou-se no artigo 975 do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, que estabelece que o direito de pleitear a anulação se extingue em dois anos contados a partir da última decisão proferida no processo – no caso, o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1923, em que se reconhecera a validade da contratação de mão de obra pelo poder público, por meio de organizações sociais, para realização de serviços não especializados, com decisão definitiva datada de 4/2/2016.
Assim, o município invocou o artigo 535, parágrafos 5º e 8º, do novo CPC, que estabelece que o prazo para a ação rescisória será contado do trânsito em julgado de decisão proferida pelo STF, nos casos de inexigibilidade de obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pela Corte ou em aplicação ou interpretação de lei ou ato normativo julgado incompatível com a Constituição Federal.
Decadência da ação
O Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ), no entanto, avaliou que a município havia perdido o prazo para propor a ação rescisória, considerando que a decisão que se pretendia anular transitara em julgado em 2005, ainda sob a vigência do CPC de 1973. De acordo com o TRT, essa decisão se tornara definitiva nos dois anos que se seguiram, bem antes, portanto, do julgamento da ADI pelo STF e da entrada em vigor do CPC de 2015.
Ainda segundo o Tribunal Regional, o artigo 1.057 do CPC de 2015 é expresso ao estabelecer que a regra do artigo 535, relativa às decisões do STF, só se aplica à coisa julgada formada na vigência do novo código.
Teoria da derrotabilidade
Para afastar a aplicação do CPC de 1973 ao processo, o município invocou, junto à SDI-2 do TST, a teoria da derrotabilidade, segundo a qual há a possibilidade de afastamento da incidência de determinada norma jurídica sobre um caso concreto, diante de premissas específicas capazes de excepcionar sua aplicação. O argumento foi o de que, a partir da decisão do STF, era evidente a hipótese de “coisa julgada injusta inconstitucional”.
CPC de 1973
O relator do recurso, ministro Dezena da Silva, explicou que a teoria da derrotabilidade se aplica somente quando o mesmo texto legal oferece a coexistência válida de diversas normas jurídicas. Nessa circunstância, uma determinada norma poderia ser derrotada, em razão das peculiaridades do caso concreto, para dar lugar à incidência de outra norma jurídica distinta.
Para o ministro, contudo, a situação não se enquadra nessa hipótese, pois o artigo 1.057 do CPC de 2015 não oferece múltiplas normas jurídicas para serem aplicadas, mas estabelece as diretrizes em que deve incidir a regra de um código e de outro, em cada caso. Nesse sentido, o dispositivo dispõe que o previsto no seu artigo 535, parágrafo 8º, acerca das decisões do STF, só se aplica à coisa julgada formada na vigência do novo código.
O ministro observou, também, que a aplicação da teoria da derrotabilidade não levaria à superação de uma norma jurídica por outra proveniente do mesmo texto, e sim à própria revogação de um texto legal.
Desse modo, como a decisão que a parte pretendia rescindir fez coisa julgada na vigência do CPC de 1973, Dezena considerou que o município havia perdido o direito de ingressar com ação para anulá-la, na medida em que a pretensão não encontra possibilidade jurídica no código revogado. O processo, então, foi extinto, sem resolução de mérito.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA AJUIZADA APÓS A ENTRADA EM VIGOR DO CPC/2015. TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO RESCINDENDA OCORRIDO NA VIGÊNCIA DO CPC/1973. CAUSA DE RESCINDIBILIDADE E PRESSUPOSTOS DE CONSTITUIÇÃO E VALIDADE DO PROCESSO APRECIADOS NO ENFOQUE DO CPC/1973
1. Conforme o entendimento firmado por esta Subseção, ocorrendo o trânsito em julgado da decisão rescindenda na vigência do CPC/1973, como no caso dos autos, as causas de rescisão, bem como os pressupostos de constituição e validade regular do processo, continuam por ele regidos, não obstante a ação rescisória tenha sido proposta já na vigência do CPC de 2015. PLEITO RESCISÓRIO CALCADO NO ART. 535, § 8.º, DO CPC DE 2015. PREVISÃO LEGAL INAPLICÁVEL À COISA JULGADA FORMADA SOB A VIGÊNCIA DO CPC DE 1973. ART. 1 . 057 DO CPC/2015. CARÊNCIA DA AÇÃO DECLARADA DE OFÍCIO. 1. Cuida-se de Ação Rescisória ajuizada para rescindir o acórdão prolatado em Recurso Ordinário na Ação Civil Pública n.º 0062100-35.1999.5.01.05361, com fundamento no art. 535, § 8.º, do CPC de 2015.
2. O acórdão rescindendo, que manteve a condenação do recorrente a se abster de contratar mão de obra por meio de empresa interposta, ressalvados os casos de serviços verdadeiramente especializados, transitou em julgado em 8/4/2005 . Entretanto, a presente Ação Rescisória somente foi ajuizada em 30/1/2018 . O fundamento invocado pelo autor para sustentar a tempestividade da ação de corte está no julgamento da ADI n.º 1 . 923/DF pelo STF, em que se reconheceu a validade da contratação de mão de obra pelo Poder Público, junto a organizações sociais, para realização de serviços não especializados, em acórdão transitado em julgado em 4/2/2016. Diante disso, o pleito rescisório veio fundamentado no art. 535, § 8.º, do CPC de 2015.
3. O TRT da 1.ª Região concluiu inaplicável ao caso o disposto no art. 535, § 8.º , do CPC/2015 com amparo no art. 1 . 057 do CPC/2015, que determina que \” O disposto no art. 525, §§ 14 e 15, e no art. 535, §§ 7.º e 8.º, aplica-se às decisões transitadas em julgado após a entrada em vigor deste Código, e, às decisões transitadas em julgado anteriormente, aplica-se o disposto no art. 475-L, § 1.º, e no art. 741, parágrafo único, da Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973 \”, e pronunciou a decadência da Ação Rescisória. O Autor, em suas razões recursais, pugna pelo afastamento da incidência do art. 1 . 057 do CPC/2015 invocando a teoria da derrotabilidade, sustentando que, a partir do decidido pelo STF na ADI n.º 1 . 923, estaria evidenciada nos autos a hipótese de \”coisa julgada injusta inconstitucional\” .
4. A teoria da derrotabilidade ( defeasebility ), desenvolvida pelo jurista Herbert Lionel Adolphus Hart em seu artigo The Ascription of Responsabillity , de 1948, consiste na admissão da possibilidade de afastamento da incidência de determinada norma jurídica sobre o caso concreto diante da existência de premissas específicas capazes de excepcionar sua aplicação, sustentadas em circunstâncias extraordinárias não previstas na formulação normativa. Trata-se, entretanto, de ferramenta hermenêutica, que só tem aplicação quando o mesmo texto legal oferecer a coexistência válida de diversas normas jurídicas, circunstância em que uma determinada norma jurídica poderia ser derrotada, em face das peculiaridades do caso concreto, para dar lugar à incidência de outra norma jurídica distinta. Sua incidência se dá no âmbito da interpretação, não se prestando para revogar o texto da lei, cabendo, aqui, resgatar a distinção entre norma jurídica e texto legal.
5. A partir dessa perspectiva, pode-se concluir que a teoria da derrotabilidade não tem campo de aplicação neste caso, visto que o art. 1 . 057 do CPC de 2015, nos termos em que foi redigido, não oferece múltiplas normas jurídicas porque não dá azo a interpretações multifacetadas do julgador, dados os contornos expressamente definidos à sua moldura dispositiva – ao revés, é expresso em afirmar que o art. 535, § 8.º, do CPC de 2015 somente se aplica à coisa julgada formada sob a vigência do novo Código de Processo Civil, o que não é o caso dos autos, em que o trânsito em julgado da decisão rescindenda ocorreu sob o pálio do CPC de 1973. A aplicação da referida teoria, nos termos propostos pelo autor , no caso em exame, não levaria à superação de uma norma jurídica por outra promanada do mesmo texto legal, e sim à própria derrogação do texto legal, o que só encontra campo para ocorrer na hipótese de declaração de sua inconstitucionalidade, entendimento chancelado pelo STF em sua Súmula Vinculante n.º 10.
6. A partir dessas considerações, constata-se que o art. 535, § 8.º, do CPC de 2015 não dispõe de termo alternativo para contagem do prazo decadencial da Ação Rescisória, mas encerra, ele próprio, regra específica sobre a temática.
7. Por conseguinte, considerando que a coisa julgada que se busca rescindir nestes autos se formou sob o pálio do codex de 1973, e que , mesmo tendo sido a ação proposta em 2018 , as causas de rescindibilidade e os pressupostos de constituição e validade regular do processo devem ser pesquisados à luz do CPC revogado, a conclusão que emerge é a de que o pleito rescisório está fundado em hipótese inexistente na época da formação da coisa julgada, circunstância que desnuda, na espécie, a carência de ação do autor ante a impossibilidade jurídica da pretensão deduzida.
8. Recurso Ordinário conhecido e carência de ação declarada de ofício para extinguir o feito, sem resolução de mérito, na forma do art. 267, VI e § 3.º , do CPC/1973
A decisão foi unânime.
Processo: RO-100148-40.2018.5.01.0000