A SDI-2 anulou sentença que havia considerado válida a jornada alegada por ele
A Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho anulou a sentença em que foi reconhecida a jornada de trabalho de 20 horas diárias alegada por um chefe de cozinha da Casa Fasano Eventos, de São Paulo (SP). Para o colegiado, essa carga horária é humanamente impossível de ser praticada, pois o empregado teria menos de quatro horas de sono por dia.
Diferenças salariais
Na reclamação trabalhista, o profissional disse que havia trabalhado para a Fasano de maio de 2006 a agosto de 2009, quando conseguiu novo emprego. Segundo ele, o contrato não tinha sido registrado na carteira de trabalho, e sua jornada começava às 6h da manhã e terminava por volta das 2 ou 3h da manhã seguinte, com uma folga semanal. Requereu, entre outras parcelas, o pagamento de horas extras e adicional noturno.
Revelia
Diante da não apresentação de defesa pela Fasano (revelia), o juízo da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo considerou verdadeira a jornada declarada pelo chef e acolheu seus pedidos.
Jornada impraticável
Após o esgotamento das possibilidades de recurso, a Casa Fasano ajuizou ação rescisória no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) com pedido de perícia para demonstrar que a jornada de 20 horas por dia, seis dias por semana, é humanamente impossível de ser praticada.
O TRT, no entanto, rejeitou a pretensão, por entender que esse tipo de ação não se destina ao reexame de provas. Observou, ainda, que a empresa havia faltado à audiência para se defender e prestar depoimento, embora tivesse sido regularmente citada.
Fato impossível
O relator do recurso ordinário, ministro Amaury Rodrigues, destacou que o tipo de serviço demandava esforço físico e estado de alerta, e a jornada de 20 horas exigiria que o trabalhador dormisse menos de quatro horas por dia. “Essa situação desafia a necessidade fisiológica básica do ser humano”, avaliou.
Para o relator, a presunção de que o horário alegado pelo empregado fosse verdadeiro, amparada apenas na revelia, e não na avaliação de provas, não autoriza o reconhecimento de fato impossível, como no caso. Assim, anulou a sentença no ponto referente às horas extras.
Definição da jornada
Ao redefinir as horas extras, o ministro analisou o depoimento do próprio chef na audiência inicial, quando ele admitira folgar uma vez por semana, além dos domingos, e examinou as provas existentes acerca dos tipos de eventos realizados pela Casa Fasano.
A conclusão foi de que a jornada de trabalho começava às 12h30min e terminava às 2 horas da manhã do dia seguinte, com 30 minutos de intervalo, em cinco dias por semana. Desse modo, o trabalhador receberá horas extras pelo serviço prestado depois da oitava hora diária, com o respectivo adicional noturno.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO RESCISÓRIA. TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO RESCINDENDA OCORRIDO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015.
I – ERRO DE FATO. PRODUÇÃO DE PROVAS. NÃO CABIMENTO.
1. O erro de fato a justificar o corte rescisório é aquele que se verifica pelo singelo exame dos autos, o que desde logo evidencia a incoerência da pretensão probatória: se há necessidade de produção de provas na ação rescisória, não se pode falar em “erro de fato”, pois o resultado do julgamento não teria decorrido de “erro de percepção” do julgador, mas por deficiência probatória a cargo da parte interessada. Precedentes da SDI-2.
II – NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. EFEITO DEVOLUTIVO EM PROFUNDIDADE DO RECURSO DE NATUREZA ORDINÁRIA. NÃO OCORRÊNCIA.
Ainda que o acórdão regional não tenha se manifestado a respeito de determinada prova ou tese defendida por uma das partes, não há que se falar em nulidade por negativa de prestação jurisdicional, pois o efeito devolutivo próprio dos recursos de natureza ordinária (art. 1.013, § 1º, do CPC e da Súmula nº 393, I, do TST), possibilita que eventuais omissões sejam sanadas diretamente pela instância revisional. Precedentes da SDI-2.
III – ERRO DE FATO. REVELIA. PRESUNÇÃO QUE DÁ ORIGEM AO RECONHECIMENTO DE FATO MATERIALMENTE IMPOSSÍVEL. JORNADA DE TRABALHO IMPRATICÁVEL. CARACTERIZAÇÃO.
1. Tendo como único fundamento a confissão ficta decorrente da revelia, a sentença rescindenda presumiu verdadeira uma jornada diária que teria início às 6 horas da manhã e findaria às 2 horas da manhã do dia seguinte, com dois intervalos de 30 minutos, durante aproximadamente três anos.
2. Perceba-se que o horário laborativo afirmado pelo demandante da ação trabalhista não era resultado do cumprimento de plantão ou sobreaviso, mas de efetiva prestação de serviço que exigia esforço físico e estado de alerta (auxiliar de cozinha e, depois, chefe de cozinha). Exatamente por isso, a jornada de trabalho reconhecida na ação matriz (vinte horas diárias por um período de três anos) exigiria que o trabalhador dormisse menos de quatro horas por dia, situação fática que desafia necessidade fisiológica básica do ser humano.
3. A presunção fática que resulta da revelia não autoriza o reconhecimento de fato impossível e, por mais que a coisa julgada mereça a proteção do ordenamento jurídico, não se pode conceber como irrescindível uma sentença judicial que está fundamentada em fato impossível, pois a técnica não deve sobrepor à ética, do que resultaria descrédito ao Poder Judiciário e ao valor intrínseco de suas decisões.
4. O fato essencial (possibilidade física de cumprimento de tão extensa jornada laboral) foi admitido como resultado da aplicação da técnica de presunção e não em decorrência de valoração das provas produzidas, o que afasta a vedação da parte final do art. 966, § 1º, do CPC e da Orientação Jurisprudencial nº 136 da SDI-II do c. TST.
5. Precedentes.
Recurso ordinário conhecido e parcialmente provido.
A decisão foi unânime.
Processo: RO-1001080-44.2016.5.02.0000