Quarta Turma reforma decisão que obrigou seguradora a revelar procedimentos de regulação de sinistro

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entendeu que obrigar uma única seguradora a fornecer cópias de todo o procedimento elaborado na apuração do sinistro, para justificar aos seus clientes eventual negativa de indenização, ocasionaria desequilíbrio concorrencial e custos administrativos exclusivos para a companhia.

Com esse entendimento, o colegiado reformou decisão da Justiça de São Paulo que, em ação civil pública, condenou uma companhia de seguros a inserir em seu contrato padrão cláusula que a obrigue, em caso de negativa total ou parcial de indenização, a entregar cópias dos documentos relativos à apuração do sinistro.

A ação foi movida pelo Ministério Público (MP) estadual contra uma única seguradora, alegando que ela investiga as circunstâncias dos sinistros e, quando encontra algum motivo para não pagar a indenização, deixa de apresentar suas provas e impede o cliente de se contrapor a elas. Assim, segundo o MP, o cliente que quiser questionar a decisão da seguradora terá de entrar na Justiça, para só então tomar conhecimento do que pesa contra ele.

As instâncias ordinárias entenderam que a seguradora se valia de seu poder no mercado para, em certos casos, descumprir os contratos de forma unilateral, negando as indenizações sem se preocupar em justificar a decisão adequadamente ao segurado. No recurso ao STJ, a seguradora contestou essa afirmação.

Segurado deve ser comunicado formalmente quando a indenização não é devida

O relator, ministro Luis Felipe Salomão, observou que o artigo 46 da Circular 621/2021 da Superintendência de Seguros Privados (Susep) estabelece que, caso o processo de regulação de sinistros conclua que a indenização não é devida, o segurado deverá ser comunicado formalmente, com a justificativa para o não pagamento, dentro de 30 dias.

A regulação de sinistro, de acordo com o magistrado, é um conjunto de procedimentos para verificar a existência, a causa e as circunstâncias do sinistro – bem como a extensão dos danos – e o seu enquadramento no contrato de seguro.

Segundo Salomão, foi demonstrado no processo que a seguradora, ao final da regulação, informa aos segurados expressamente, por carta, o motivo da negativa, inclusive com indicação da cláusula contratual em que se baseia.

Mostrar todos os documentos da regulação representaria extensa exposição ao mercado

Além disso, o ministro destacou que, como reconhece o próprio MP, nenhuma seguradora fornece a documentação que foi exigida da empresa ré na ação civil pública, o que a colocaria em desvantagem no mercado em relação às concorrentes.

O relator também ressaltou que as seguradoras usualmente se valem de empresas terceirizadas especializadas para a realização do procedimento. Para o magistrado, é evidente que uma condenação envolvendo apenas a ré lhe ocasionaria sérias restrições, pois a entrega de toda a documentação exporia o modo de atuação da reguladora terceirizada, que é, por natureza, elemento de propriedade industrial sigiloso.

“Expor todos os documentos obtidos no procedimento de regulação, a toda evidência, representaria extensa exposição ao mercado do modo de apurar da seguradora e de sua parceira reguladora (know-how de ambas), trazendo desequilíbrio concorrencial, riscos de ocasionar dissabores, danos morais e materiais a segurados e terceiros beneficiários de seguro, e também dificultando sobremaneira a eficiência da regulação de seus contratos de seguros (facilitação de fraudes) “, afirmou o ministro.

Ao dar parcial provimento ao recurso especial para julgar improcedentes os pedidos da ação, Salomão lembrou que, conforme entendimento recentemente firmado pela Terceira Turma do STJ no julgamento do REsp 1.846.502, não só o consumidor merece proteção, mas também a livre iniciativa e o livre exercício da atividade econômica (artigo 1º, inciso IV; artigo 170, inciso IV e parágrafo único; e artigo 174 da Constituição Federal).

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL, DIREITO SECURITÁRIO E DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO CIVIL PÚBLICA MANEJADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. CAUSA DE PEDIR APONTANDO VÍCIO, À LUZ DO CDC, DE REDAÇÃO DE CLÁUSULAS DE CONTRATOS DE ADESÃO DA RÉ, ALÉM DE QUE HÁ DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO DO FORNECEDOR. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. EXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA SENTENÇA À COMPETÊNCIA TERRITORIAL DO ÓRGÃO JUDICANTE. INVIABILIDADE. REGULAÇÃO DE SINISTRO. VOLTADA À REVELAÇÃO, QUANTIFICAÇÃO E CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO INDENIZATÓRIA. ATIVIDADE ESSENCIAL AO SETOR. REGULAÇÃO PELA SUSEP ABRANGENDO O TEMA LITIGIOSO. COMUNICAÇÃO FORMAL, EM CASO DE RECUSA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA, DO MOTIVO. LIVRE INICIATIVA E LIVRE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL. CLÁUSULAS CONTRATUAIS PREVENDO EXCLUDENTES DE COBERTURA. UTILIZAÇÃO DE GRIFOS. CARACTERIZAÇÃO DO DEVIDO DESTAQUE.
1. Há legitimidade para o Ministério Público ajuizar ação civil pública vindicando o reconhecimento de abusividade de cláusula de contratos de seguro atuais e futuros, por alegada ausência de destaque acerca de hipóteses que impliquem perdas de direitos, com alegado descumprimento do adequado dever de informação por ocasião da recusa de coberturas securitárias. Isso porque: (a) há direitos individuais homogêneos referentes aos eventuais danos experimentados por aqueles que firmaram contrato alegadamente com cláusulas sem o devido destaque; (b) há direitos coletivos resultantes da suposta ilegalidade em abstrato da conduta da ré, a qual atinge igualmente e de forma indivisível o grupo de contratantes atuais da ré; (c) há direitos difusos relacionados aos consumidores futuros, coletividade essa formada por pessoas indeterminadas e indetermináveis.
2. A Corte Especial, por ocasião do julgamento do REsp n. 1.243.887/PR, ao analisar a regra prevista no art. 16 da Lei n. 7.347/1985, primeira parte, perfilhou o entendimento de ser indevido limitar, aprioristicamente, a eficácia de decisões proferidas em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão judicante.
3. A regulação de sinistro é uma atividade voltada à revelação (existência e conteúdo), quantificação e cumprimento da obrigação indenizatória que exsurge da obrigação de garantia a cargo do segurador. A operação pode ser assim sintetizada: a) uma vez ocorrido e avisado o sinistro, cabe ao segurador apurar os fatos para o cumprimento da obrigação de garantia, o que se desenvolve pela regulação do sinistro; b) constitui procedimento conduzido pelo segurador para determinar a existência de sinistro coberto e a extensão da cobertura, com a mensuração da extensão dos danos e o cálculo da quantia a ser paga ao segurado; c) consiste numa atividade complexa, na qual o fato comunicado como sinistro será confrontado com a realidade e com as coberturas contratadas; d) a comparação entre o dano e o interesse segurado permitirá conhecer o prejuízo, relevando o prejuízo indenizável; e) apura-se o valor a indenizar em conformidade com a extensão dos danos, o interesse e o capital segurado; f) todas as etapas formam um processo único e contínuo e nem sempre podem ser totalmente distinguidas, sobrepondo-se eventualmente, sem prejuízo da precisa definição das finalidades de cada uma delas.
4. A atividade é essencial para o setor, uma vez que, a par de constituir obrigação acessória de fazer do segurador, por vezes necessária até mesmo para salvamentos para redução das consequências danosas do sinistro, é fundamental para prevenir e reprimir fraudes que oneram o custo dos prêmios.
5. Por um lado, o Decreto-Lei n. 73/1966, que criou a Superintendência de Seguros Privados, estabelece, no art. 36, que compete à Susep: a) baixar instruções e expedir circulares relativas à regulamentação das operações de seguro, de acordo com as diretrizes do CNSP; b) fixar condições de apólices, planos de operações e tarifas a serem utilizadas obrigatoriamente pelo mercado segurador nacional; c) fiscalizar as operações das Sociedades Seguradoras, inclusive o exato cumprimento deste Decreto-lei, de outras leis pertinentes, disposições regulamentares em geral, resoluções do CNSP e aplicar as penalidades cabíveis. Por outro lado, no julgamento da ADI n. 4.923, relator Ministro Luiz Fux, o Plenário do STF entendeu que não há um modelo de Estado único imposto pela Constituição e que a moderna concepção do princípio da legalidade, em sua acepção principiológica ou formal axiológica, chancela a atribuição de poderes normativos ao Poder Executivo, desde que pautada por princípios inteligíveis (intelligible principles) [isto é, oriundos da própria lei de criação da Autarquia, como é o caso, ou de lei posterior], capazes de permitir o controle legislativo e judicial sobre os atos da Administração;
além de que não se deve perder de mira que intervenções judiciais incisivas – ainda que inegavelmente bem intencionadas – sobre marcos regulatórios específicos de setores técnicos e especializados podem ter repercussões sistêmicas deletérias para valores constitucionais em jogo, repercussões essas imprevisíveis no interior do processo judicial, marcado por nítidas limitações de tempo e de informação (ADI n. 4.923, relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 8/11/2017, processo eletrônico DJe-064 divulg. em 4/4/2018, public.
em 5/4/2018).
6. O art. 41 da vigente Circular Susep n. 621/2021 estabelece que nos contratos deverão ser informados os procedimentos para comunicação, regulação e liquidação de sinistros, incluindo a listagem dos documentos básicos previstos a serem apresentados para cada cobertura. O art. 43 estabelece que deve constar o prazo máximo para liquidação de sinistros, limitado a trinta dias, contados a partir da entrega de todos os documentos básicos previstos no art. 41. Já o art. 46, na mesma linha das circulares revogadas, estabelece que, caso o processo de regulação de sinistros conclua que a indenização não é devida, o segurado deverá ser comunicado formalmente, com a justificativa para o não pagamento dentro do prazo previsto no art. 43 (30 dias).
7. A seguradora sustenta que, ao final da regulação, informa aos segurados expressamente, em carta, o motivo da negativa, dando conhecimento da hipótese que ensejou a recusa, inclusive com indicação da cláusula contratual em que se funda – o que é incontroverso nos autos, inclusive à luz das contrarrazões recursais. Como reconhece o próprio autor da ação na peça inicial, as seguradoras não fornecem documentação que ele pretende seja imposta tão somente à ré, ocasionando claro desequilíbrio concorrencial e custos administrativos exclusivos à demanda. Ainda, apresentar todos os documentos obtidos no procedimento de regulação, a toda evidência, representaria extensa exposição ao mercado do modo de apurar da seguradora e de sua parceira reguladora (know-how de ambas), arriscando ocasionar dissabores, danos morais a segurados e a terceiros beneficiários de seguro, como também dificultando sobremaneira a eficiência da regulação dos contratos de seguro (facilitação de fraudes), a par de, em muitos casos, gerar riscos pessoais a terceiros que prestaram informações ao regulador e a seus funcionários.
8. Conforme entendimento sufragado pela Terceira Turma, não só o consumidor merece proteção, como também a livre iniciativa e o livre exercício da atividade econômica (arts. 1º, IV; 170, IV, parágrafo único; e 174 da CF). (REsp n. 1.846.502/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 20/4/2021, DJe de 26/4/2021).
9. O autor da ação, malgrado tenha instaurado inquérito civil público com base em “delação anônima”, não colacionou aos autos um único contrato pactuado contendo cláusula contratual limitadora de direitos do consumidor sem destaque, nem mesmo requereu fosse determinado pelo Juízo, em distribuição dinâmica do ônus da prova, que a demandada trouxesse aos autos os seus contratos de adesão. O próprio Juízo de primeira instância, ainda mais que condenou a ré sem ter aferido a veracidade das afirmações, poderia, de ofício, ter determinado que ela juntasse contrato, uma vez que as decisões judiciais devem ser motivadas e a lei processual se preocupa em que se traga aos autos todos os elementos probatórios que possam permitir ao magistrado decidir do modo mais adequado possível.
10. É possível enfrentar o mérito do pedido exordial para julgamento de improcedência, pois, nas contrarrazões recursais oferecidas ao REsp, o próprio Ministério Público estadual admitiu que há a utilização de grifos no texto das excludentes de cobertura, isto é, o destaque. Isso porque pode ser dado de várias formas, como, por exemplo, com caracteres de cor diferente das demais cláusulas, tarja preta em volta da cláusula, redação em corpo gráfico maior que o das demais estipulações, tipo de letra diferente das outras cláusulas.
11. Recurso especial parcialmente provido.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1836910

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