Primeira turma do TRF3 anula decisões sobre reintegração de posse na região de DOURADOS (MS)

Indígenas alegam que área integra reserva já demarcada e registrada

A Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) anulou duas sentenças da 2ª Vara Federal de Dourados (MS) que haviam determinado reintegração de posse de imóveis rurais localizados na região das terras da Comunidade Yvo Vera. Indígenas e União afirmaram que a área em disputa integra reserva já demarcada e registrada.

De acordo com o colegiado, os espaços discutidos nos autos não tratam de terras indígenas em processo de demarcação, mas, sim, de reserva criada pelo Decreto Estadual nº 401/1917 e devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis de Dourados/MS (CRI).

“A alegação da legitimidade da posse indígena sobre a área não se baseia na tradicionalidade da ocupação. E, por essa razão, os critérios estabelecidos pelo STF no julgamento da Pet. nº 3.388 não se aplicam ao presente caso”, pontuou o desembargador federal relator Valdeci dos Santos.

Nas ações de reintegração de posse propostas na Justiça Federal em Mato Grosso do Sul, os autores defenderam que os imóveis foram invadidos pelo grupo da Comunidade Yvo Vera. Já os indígenas e a União argumentaram que a área faz parte da Reserva Indígena de Dourados.

Em primeira instância, as sentenças determinaram a reintegração de posse. Contra as determinações, a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Comunidade Indígena Yvu Vera e o Ministério Público Federal (MPF) ingressaram com recursos no TRF3.

Ao analisar os pedidos, o relator do processo no TRF3 destacou que o Relatório Parcial sobre Demarcação de Terras Indígenas no Mato Grosso do Sul, elaborado pela Comissão Temporária Externa do Senado Federal sobre Questões Fundiárias e aprovado em junho de 2004, apurou que a Reserva de Dourados foi criada com o intuito de liberar áreas para a colonização e contava, originalmente, com 3.600 hectares.

No entanto, segundo informações do processo, apontamentos do Relatório sobre a situação da Reserva de Dourados, produzido em 23/04/1976 por antropólogo, ressalta que as terras foram registradas em 14/12/1965, com uma área de 3.539 hectares, ou seja, da doação original, 61 hectares foram perdidos e incorporados às fazendas vizinhas.

“Claro está que somente poderão ser apurados os reais limites da área indígena e, por conseguinte, a legitimidade da posse das partes envolvidas, com a realização da perícia topográfica, sob o crivo do contraditório”, concluiu o magistrado.

Com esse entendimento, o colegiado anulou as sentenças e determinou o retorno do processo à 2ª Vara Federal de Dourados, para que seja realizada perícia topográfica, com base na área delimitada no Decreto n° 401/1917.

O recurso ficou assim ementado:

APELAÇÕES CÍVEIS. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS. REJEITADA A PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DA FUNAI. DELIMITAÇÃO NÃO SE FUNDAMENTA NA TRADICIONALIDADE DA OCUPAÇÃO. INAPLICABILIDADE DO MARCO TEMPORAL E DO RENITENTE ESBULHO. NECESSIDADE DE REDEFINIÇÃO DAS ÁREAS DELIMITADAS PELO DECRETO N. 401/1917. IMPRESCINDIBILIDADE DE PROVA PERICIAL SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO. CERCEAMENTO DE DEFESA DEMONSTRADO. ANULAÇÃO DA SENTENÇA. RECURSOS PROVIDOS.

1. A demanda foi ajuizada por Rosangela Cristina dos Santos Ricci e Ademir Ricci em face da União, da Fundação Nacional do Índio – FUNAI e da Comunidade Indígena Yvu Vera, visando à reintegração de posse da área de 7 ha 6.147,77 m², denominada Sítio Bom Futuro, objeto da matrícula n. 66.484, do CRI de Dourados/MS, a qual alegaram ter sido invadida pelo grupo indígena da referida Comunidade. Requereram, ainda, a condenação das rés ao pagamento de indenização por perdas e danos.

2. A sentença julgou parcialmente procedente o pedido, nos termos do artigo 487, I do CPC, para determinar a reintegração de posse da área objeto dos autos, em favor da parte autora. As partes foram condenadas ao pagamento de honorários advocatícios, fixados em R$ 2.000,00, nos termos do artigo 85, §8º, do CPC, cabendo às rés o pagamento de 50% do valor e à autora dos outros 50%, cuja exigibilidade ficará suspensa, por força da justiça gratuita concedida.

3. Em suas razões recursais, alega a União que, no caso, se trata de reserva indígena, com título definitivo de propriedade, e não de terra indígena tradicional, cujo reconhecimento depende da  comprovação da tradicionalidade da ocupação. Sustenta, assim, que há dois títulos aparentemente legítimos nos autos, sendo necessária a prova pericial para averiguar eventual sobreposição entre eles e a legitimidade do direito de posse invocado pelas partes. Pleiteia, portanto, a anulação da r. sentença, por cerceamento de defesa. Subsidiariamente, requer o reconhecimento de sua ilegitimidade passiva.

4. Por sua vez, a Comunidade Indígena Yvu Vera argui, preliminarmente, a nulidade da r. sentença, por cerceamento de defesa, ante o indeferimento da perícia topográfica, indispensável para se averiguar eventual sobreposição de terras na área oficialmente reservada aos indígenas pelo Decreto n. 401/1917. Subsidiariamente, requer a reforma da r. sentença, para que a posse indígena seja reconhecida como a melhor posse.

5. Da mesma forma, a FUNAI requer, preliminarmente, o reconhecimento de sua ilegitimidade passiva e a declaração da nulidade da r. sentença, por ausência da prova pericial necessária à comprovação do direito das partes. No mérito, pleiteia o provimento do recurso, julgando-se improcedentes os pedidos da inicial.

6. Por fim, o Ministério Público Federal sustenta a nulidade da r. sentença por error in procedendo, em razão: a) do indeferimento da prova pericial topográfica, imprescindível ao deslinde do caso; b) da ausência de prova pericial documental nos registros de matrículas de imóveis apresentados pela parte autora; e c) da impertinência da fundamentação, por se valer de fundamentos aplicáveis apenas a discussões de tradicionalidade da posse indígena, o que não é o caso dos autos. Pleiteia, assim, a anulação da r sentença, determinando-se o retorno dos autos à primeira instância, para a realização da prova pericial topográfica e documental. Subsidiariamente, pugna pela reforma da r. sentença, em razão da não comprovação da posse dos autores, tanto pela ausência da perícia topográfica quanto pela sobreposição de títulos privados na Reserva Indígena de Dourados.

7. Os artigos 35, 36 e 37 da Lei nº 6.001/73 dispõem sobre a participação da FUNAI em demandas envolvendo interesses indígenas. No caso dos autos, a discussão se refere a uma área que os indígenas alegam integrar a Reserva de Dourados, já demarcada e registrada. Assim, havendo interesse coletivo da Comunidade Indígena e fundada dúvida quanto à legitimidade da posse privada sobre a área, não há que se falar em exclusão da FUNAI do polo passivo. Precedentes. Preliminar rejeitada.

8. A controvérsia neste feito se dá em relação à legitimidade da posse sobre a área ocupada pelos indígenas, a qual a parte autora, ora apelada, alega fazer parte de seu imóvel rural e os apelantes afirmam integrar a Reserva Indígena de Dourados, de 3.600 ha, criada pelo Decreto Estadual n. 401, de 03 de setembro de 1917.

9. O D. Juízo a quo indeferiu o pedido de realização de perícia topográfica, sob o fundamento de que, em se tratando de demanda possessória, “é impertinente a produção de provas para comprovar que se trata de área de ocupação tradicional indígena”.

10. Constou, ainda, na r. sentença que: O objeto da presente ação é apenas a questão da ameaça à posse, na qual deve ser resolvida apenas a questão possessória, sendo impertinente a produção de provas para comprovar que se trata de área de ocupação tradicional indígena. Assim, reputo desnecessária a produção de laudo topográfico, vez que esse estudo deverá ser feito na via administrativa ou em ação própria e não é imprescindível para o deslinde deste feito, que tem natureza de ação possessória. (…) Com efeito, não se pode dar transito à invasão da área de que é possuidor (sic) a autora ao simples argumento de que entendem os réus que se trata de terra de ocupação tradicional indígena. (…) É de conhecimento deste juízo a situação de vulnerabilidade social dos indígenas no Mato Grosso do Sul, entretanto não é cabível ao judiciário na presente ação demarcar terras, ou atestar a propriedade dos indígenas, sendo responsabilidade do órgão competente para tanto“.  

11. A Constituição Federal, em seu artigo 231, reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo definidas como tais “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (§1º do mesmo artigo), atribuindo à União o dever de efetuar a demarcação destas terras.

12. Em relação ao procedimento de demarcação, o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973) estabelece em seu artigo 19 que “as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo“. Nesse cenário, em janeiro de 1996, foram editados o Decreto nº 1.775/96, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, e a Portaria do Ministério da Justiça nº 14/96, que estabelece regras sobre a elaboração do Relatório Circunstanciado de de identificação e delimitação de Terras Indígenas.

13. No julgamento do caso Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Pet. n. 3.388), o C. STF estabeleceu novos requisitos para o reconhecimento de terras indígenas, quais sejam, o marco temporal da ocupação indígena em 05 de outubro de 1988 e o renitente esbulho. Desta feita, para a terra ser reconhecida como indígena, além da tradicionalidade da ocupação, deve ser comprovada a presença dos índios na área em 05 de outubro de 1988, ou, ao menos, que a reocupação não foi possível em razão de renitente esbulho por parte de não índios.

14. Ocorre que, no caso, não se trata de terra indígena em processo de demarcação, com base nos dispositivos acima mencionados, mas, sim, de reserva indígena, com 3.600 ha, criada pelo Decreto Estadual n. 401, de 03 de setembro de 1917, devidamente registrada no CRI de Dourados/MS.

15. Da leitura dos artigos 26 e 27 do Estatuto do Índio, extrai-se que a delimitação de reserva indígena é ato unilateral do ente público, que não se fundamenta na tradicionalidade da ocupação. Dessa forma, ao contrário do que constou na r. sentença, a alegação da legitimidade da posse indígena sobre a área não se baseia na tradicionalidade da ocupação. E, por essa razão, os critérios estabelecidos pelo C. STF no julgamento da Pet. n. 3.388 não se aplicam ao presente caso.

16. Noutro giro, o Relatório Parcial sobre Demarcação de Terras Indígenas no Mato Grosso do Sul, elaborado pela Comissão Temporária Externa do Senado Federal sobre Questões Fundiárias e aprovado em junho de 2004, apurou que a Reserva de Dourados, criada com o intuito de liberar áreas para a colonização, contava, originalmente, com 3.600 ha.

17. No tocante ao fato de que o Título Definitivo de Propriedade da Reserva de Dourados foi registrado, em 14/12/1965, com área de 3.539 ha, observa-se que, em agosto de 1965, o Serviço de Proteção aos Índios – SPI requereu a expedição do título definitivo de propriedade da referida reserva, “confirmando decreto nº 401 de 03 de Setembro de 1.917 (cópia anexa) de uma área de terras com 3.600 has. situada no Município de Dourados“. Posteriormente, foi proferido despacho, denotando que havia sido constatada uma redução da área originariamente reservada: “Volte à D.E.T.C. em Campo Grande para informar se houve superposição de terceiro nas terras. Em 12.10.65“.

18. Outrossim, os documentos acostados aos autos demonstram que, à época, o então Secretário da Agricultura do Estado de Mato Grosso autorizou a expedição do título definitivo da Reserva, após parecer da seção técnica. Ocorre que o auxiliar técnico informou que não pode organizar o croqui da região, “por não ter encontrado os processos dos lindeiros constantes das plantas”, razão pela qual o processo ficou paralisado. Por fim, o SPI requereu a expedição do título definitivo, sem cadastro, e informou que estava requerendo ações demarcatórias em todas as suas propriedades, por ser o “único meio de sanar tôdas as possíveis falhas de limites com seus confrontantes“.

19. Alie-se a isso, os apontamentos do Relatório sobre a situação da Reserva de Dourados, produzido em 23/04/1976, por profissional antropólogo, no sentido de que: “(…) As terras que compõem o atual PI Dourados, tiveram seu Titulo Definitivo de Propriedade, expedido em 26/10/1965 e foram registradas em 14/12/1965, com uma área de 3.539 ha, ou seja, da doação original, 61 ha foram incorporados às fazendas vizinhas. (…) já no início da década de 40, um governador de Mato Grosso vendeu terras de diversas reservas indígenas a seus correligionários entre as quais, as do antigo PI Francisco Horta, hoje PI Dourados (…)” .

20. Assim, resta evidenciado que, desde o início, a intenção do órgão público era a titulação dos 3.600 ha, que só não ocorreu em razão de dificuldades técnicas para localizar toda a área. Nessa senda, manifestou-se o i. representante do Ministério Público Federal, em seu parecer, pela imprescindibilidade da realização de perícia topográfica, para rever os limites originais da Reserva Indígena.

21. Ressalte-se que a necessidade de redefinição das áreas demarcadas pelo Decreto n. 401/1917 foi, inclusive, reconhecida pela E. Segunda Turma deste Tribunal, no v. acórdão proferido no AI n. 2012.03.00.032889-3/MS (TRF 3ª Região – Segunda Turma – AI n. 2012.03.00.033891-6/MS, Rel. Des. Fed. Cecilia Mello, v.u., D.E. 07/04/2015), em caso análogo.

22. Sendo assim, claro está que somente com a realização da perícia topográfica, sob o crivo do contraditório, poderão ser apurados os reais limites da área indígena e, por conseguinte, a legitimidade da posse das partes envolvidas. Desta feita, o indeferimento da prova pericial ocasionou evidente cerceamento de defesa.

23. Diante disso, mister se faz a anulação da r. sentença, com o retorno dos autos à primeira instância, para que seja realizada a perícia topográfica, com base na área delimitada no Decreto n. 401/1917, restando prejudicados os demais pedidos.

24. Recursos de apelação providos.

Apelação Cível 0001135-05.2016.4.03.6002

Apelação Cível 0005175-30.2016.4.03.6002

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