Segundo jurisprudência da Corte, promoção de arquivamento de investigações pelo Ministério Público é irrecusável
O procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentou recurso com pedido de reconsideração da decisão que indeferiu o arquivamento promovido pelo Ministério Público Federal (MPF) do Inquérito 4.875, aberto para apurar suposto crime de prevaricação pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, nas negociações para a compra da vacina Covaxin, pelo Ministério da Saúde. No mesmo recurso, o PGR pede que, caso não haja mudança de entendimento da ministra relatora, Rosa Weber, que o pedido seja levado à apreciação do Plenário da Corte.
Aberto em junho do ano passado, o inquérito teve como objetivo verificar se o mandatário teria cometido crime por não ter tomado providências após ser informado de supostas ilicitudes. No entanto, a Polícia Federal concluiu pela atipicidade da conduta de Bolsonaro, o que levou o MPF a promover o arquivamento do procedimento investigatório. Segundo o órgão, “ausente o dever funcional do presidente da República de comunicar eventuais irregularidades de que tinha conhecimento – e das quais não faça parte como coautor ou partícipe – aos órgãos de investigação ou de fiscalização, não está presente o ato de ofício, elemento constitutivo objetivo imprescindível para caracterizar o tipo penal incriminador do artigo 319, do Código Penal [prevaricação]”.
Ao promover o arquivamento, Augusto Aras manifestou-se no sentido de que, mesmo que o presidente tivesse o dever funcional de comunicar as referidas irregularidades que lhe foram reportadas, as informações obtidas por meio dos depoimentos e demais documentos produzidos nos autos demonstram que houve fiscalização do contrato de aquisição da Covaxin pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU).
Irrecusabilidade do arquivamento – No agravo regimental encaminhado nessa segunda-feira (4), Aras enfatiza que, segundo jurisprudência reiterada do STF, o arquivamento na fase investigativa pelo Ministério Público é irrecusável pelo Poder Judiciário. Isso se dá porque, no Brasil, há o primado do sistema processual acusatório (previsto no artigo 129, inciso I, da Constituição Federal), em contraponto ao sistema inquisitorial.
O sistema acusatório tem entre os seus objetivos o propósito de limitar o poder jurisdicional punitivo, outorgando ao Ministério Público a decisão quanto às condutas investigadas. Dessa forma, evita-se a intromissão indevida do magistrado na fase pré-processual, o que pode comprometer a imparcialidade e equidistância do julgador. Aras adverte, no entanto, que o juízo feito pelo MP nessa etapa restringe-se à viabilidade ou não da persecução penal, sendo diferente daquele feito pelo Judiciário, após a deflagração da ação penal.
Ainda de acordo com o PGR, sem que haja indiciamento pela autoridade policial e sem a formulação da denúncia do representante do Ministério Público – caso do Inquérito 4.875 – “descabe decisão meritória em relação ao apurado no âmbito de um inquérito”. Aras lembra que a existência da denúncia é condição para a emissão do juízo de valor – pelo Judiciário – quanto a eventuais fatos penalmente relevantes.
Caso concreto – No recurso, Augusto Aras indica serem inaplicáveis ao caso concreto os precedentes citados pela relatora Rosa Weber (MS 20.882/DF; MS 23299; MS 23219 e RMS 32811 AgR). Na decisão, a ministra usou como fundamento a existência de competência disciplinar vinculada a ser exercida pelo presidente da República, a quem caberia fiscalizar, alterar, revogar, anular e avocar quaisquer atribuições de seus subordinados, bem como a função disciplinar para punir integrantes da administração direta.
O PGR explica que tais decisões se referem especificamente à aplicação de penas disciplinares (previstas no artigo 141, inciso I, da Lei 8.112/1990), impostas somente depois da regular tramitação de processo administrativo disciplinar. Também aponta não ser possível o controle, por parte do presidente da República, de todos os servidores. “Conforme consta no Portal da Transparência do governo federal, a União possui atualmente 1.119.902 servidores ativos, de modo que não é razoável exigir do presidente da República que aja e atue pessoalmente em todas as irregularidades comunicadas a ele, sobretudo, informalmente, como no caso em apreço”, argumenta Augusto Aras, lembrando que o então diretor de logística do Ministério da Saúde Roberto Dias, apontado como responsável pelo ato ilícito, era subordinado ao ministro da Saúde.
Outro ponto ressaltado pelo PGR diz respeito ao fato de o crime de responsabilidade apresentar natureza jurídica de infração político-administrativa, que não pode ser confundido e misturado com conduta penalmente típica de prevaricação, e cuja tipicidade e deflagração do seu processo político estão sujeitas ao exame e aos requisitos distintos.
Atipicidade – Ao sustentar que não é possível, nesse caso, denunciar Jair Bolsonaro por prevaricação, Aras lembra que a comunicação de crime não consta do rol de competências do presidente da República, previstas no artigo 84 da Constituição. Segundo o PGR, admitir a possibilidade, nos casos em que inexiste a obrigação legal (ato de ofício) poderia gerar insegurança jurídica na atuação da autoridade. “A conclusão pela existência desse dever geral e difuso desaguaria na inescapável responsabilização de todos os agentes públicos que obtiveram ciência das supostas irregularidades ocorridas no Ministério da Saúde, incluindo-se, a título de exemplo, o deputado federal Luis Miranda”, afirma Aras no agravo regimental.
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