A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a morte do inventariante no curso da ação de prestação de contas de inventário não é motivo para a extinção do processo sem resolução de mérito.
O colegiado deu provimento ao recurso de dois herdeiros que ajuizaram ação de prestação de contas contra o pai de um deles – inventariante do patrimônio deixado pela mãe – alegando que deveriam ter recebido de herança o valor correspondente a R$ 196.680,12.
Em primeiro grau, o pedido foi julgado procedente. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), porém, decretou de ofício a extinção do processo, sem resolução de mérito, devido à morte do inventariante. Para o tribunal, a ação de prestar contas é personalíssima, somente podendo prestar esclarecimentos aquele que assumiu a administração do patrimônio.
Procedimento bifásico
A relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, explicou que a ação foi desnecessária e inadequada, pois, em se tratando de prestação de contas de inventário, deveria ter sido aplicada a regra do artigo 919, primeira parte, do Código de Processo Civil de 1973 (atual artigo 553, caput, do CPC de 2015), segundo a qual “as contas do inventariante, do tutor, do curador, do depositário e de outro qualquer administrador serão prestadas em apenso aos autos do processo em que tiver sido nomeado”.
Para a ministra, a prestação de contas em decorrência de relação jurídica de inventariança não deve obedecer ao procedimento especial bifásico exigível para as ações autônomas de prestação de contas, nas quais a primeira fase discute a existência ou não do direito de exigir ou de prestar contas; e a segunda fase busca a efetiva prestação das contas, levando-se em consideração as receitas, as despesas e o saldo.
“Na prestação de contas decorrente da inventariança, todavia, é absolutamente despicienda a definição, que ocorre na primeira fase da ação autônoma, acerca da existência ou não do dever de prestar contas, que, na hipótese do inventário, é previamente definido pela lei”, disse.
Segundo a relatora, a atividade realizada na ação de prestação de contas antes do falecimento do inventariante não tratou de acertar a legitimidade das partes, mas sim da própria prestação de contas, mediante extensa produção de prova documental a partir da qual se concluiu que o inventariante devia aos herdeiros, na época, o valor de R$ 196.680,12.
Aspecto patrimonial
“Essas considerações iniciais são relevantes para afastar o fundamento do acórdão recorrido, no sentido de ser intransmissível a ação e de ser necessária a extinção do processo sem resolução de mérito, na medida em que a ratio desse entendimento está no fato de que os sucessores do falecido eventualmente poderiam não ter ciência dos atos praticados por ele na qualidade de gestor de bens e de direitos alheios”, afirmou a ministra.
De acordo com Nancy Andrighi, em situações análogas, o STJ já admitiu a possibilidade de sucessão dos herdeiros na ação autônoma de prestação de contas quando o falecimento do gestor de negócios alheios ocorre após o encerramento da atividade instrutória, momento em que a ação assume aspecto essencialmente patrimonial e não mais personalíssimo.
“Assim, há que se distinguir a relação jurídica de direito material consubstanciada na inventariança, que evidentemente se extinguiu com o falecimento do recorrido, da relação jurídica de direito processual em que se pleiteia aferir se o inventariante exerceu adequadamente seu encargo, passível de sucessão processual pelos herdeiros”, observou.
A ministra ainda destacou que o fato de a filha, recorrente, ter sido nomeada inventariante dos bens deixados pelo pai, não acarreta confusão processual entre autor e réu – como entendeu o TJSP –, na medida em que existe autonomia entre a parte recorrente e a inventariante – representante processual e administradora – do espólio do pai.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. INVENTÁRIO. FALECIMENTO DO INVENTARIANTE. DESNECESSIDADE DE PROPOSITURA DE AÇÃO AUTÔNOMA. PRESTAÇÃO DE CONTAS EM APENSO AO INVENTÁRIO. DIREITO DE EXIGIR CONTAS E DEVER DE PRESTAR CONTAS QUE DECORREM DA LEI. TRANSMISSIBILIDADE DA AÇÃO EM VIRTUDE DO FALECIMENTO DO INVENTARIANTE. POSSIBILIDADE. ATIVIDADE COGNITIVA E INSTRUTÓRIA NA AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS ANTES DO FALECIMENTO. APURAÇÃO DE CRÉDITO, DÉBITO OU SALDO QUE MODIFICAM O CARÁTER DA AÇÃO, DE PERSONALÍSSIMA PARA ESSENCIALMENTE PATRIMONIAL. SUCESSÃO PELOS HERDEIROS. POSSIBILIDADE.1- Ação distribuída em 18⁄03⁄2010. Recurso especial interposto em 20⁄04⁄2017 e atribuídos à Relatora em 12⁄04⁄2018.2- O propósito recursal é definir se a ação de prestação de contas deve ser extinta sem resolução de mérito em virtude do falecimento, durante a tramitação da ação, do sujeito passivo legitimado a prestá-las.3- A prestação de contas decorrente de relação jurídica de inventariança não deve observar o procedimento especial bifásico previsto para a ação autônoma de prestação de contas, na medida em que se dispensa a primeira fase – acertamento da legitimação processual consubstanciada na existência do direito de exigir ou prestar contas – porque, no inventário, o dever de prestar contas decorre de expressa previsão legal (art. 991, VII, do CPC⁄73; art. 618, VII, do CPC⁄15) e deve ser prestado em apenso ao inventário (art. 919, 1ª parte, do CPC⁄73; art. 553, caput, do CPC⁄15).4- Tendo sido realizada, na ação autônoma de prestação de contas, atividade cognitiva e instrutória suficiente para a verificação acerca da existência de crédito, débito ou saldo, revela-se irrelevante, para fins de transmissibilidade da ação, que tenha havido o posterior falecimento do inventariante, pois, a partir do referido momento, a ação de prestação de contas modifica a sua natureza personalíssima para um caráter marcadamente patrimonial passível de sucessão processual pelos herdeiros. Precedentes.5- Na hipótese, foi ajuizada ação autônoma de prestação de contas em face de inventariante que, citado, reconheceu o dever de prestar contas e limitou a sua defesa ao fato de que os títulos da dívida agrária que deveriam ser objeto de partilha não mais existiriam, circunstância fática não corroborada pela prova documental produzida antes do falecimento do inventariante, não se devendo confundir a relação jurídica de direito material consubstanciada na inventariança, que evidentemente se extinguiu com o falecimento da parte, com a relação jurídica de direito processual em que se pleiteia aferir se o inventariante exerceu adequadamente seu encargo, passível de sucessão processual pelos herdeiros.6- Recurso especial conhecido e provido.
Leia o acórdão.