Ministério Público deve ter acesso a dados bancários não sigilosos de pessoas investigadas

Independentemente de autorização judicial, é garantido ao Ministério Público o acesso a dados cadastrais bancários não protegidos pelo sigilo, desde que os dados sejam relativos a pessoas investigadas pelo órgão e haja a necessidade de instrução de procedimentos de natureza penal ou civil, como ações judiciais e inquéritos policiais.

O entendimento foi fixado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao reformar acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) que concluiu que a ação civil pública – meio processual utilizado pelo MP para assegurar o direito às informações – não poderia ser proposta pelo Ministério Público Federal para defesa de seus próprios interesses, mas apenas nos casos da defesa de interesses de terceiros.

De acordo com o relator do recurso especial do Ministério Público, ministro Herman Benjamin, o acesso a esses bancos de dados é essencial para que haja sucesso na identificação de pessoas envolvidas nas mais diversas infrações penais, “seja na posição de autores, partícipes ou até mesmo como testemunhas de crimes”.

Com a fixação da legitimidade do MP para acessar os dados não sigilosos por solicitação direta às instituições financeiras, o TRF3 deverá agora analisar os demais pontos discutidos na ação civil pública, como a obrigatoriedade de fornecimento de informações por requisição direta da Polícia Federal.

Segurança social

Após o reconhecimento da inadequação da via processual, o Ministério Público apresentou recurso ao STJ sob o argumento de que a condenação das instituições financeiras ao fornecimento de dados cadastrais tem por objetivo salvaguardar o direito à segurança de toda a sociedade. Para o MP, quando atua para instruir processo judicial, inquérito policial ou qualquer outra investigação criminal ou civil, o órgão ministerial o faz em nome próprio e na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

O ministro Herman Benjamin destacou que, de fato, a ação civil do MP buscou a tutela da segurança pública, que é tida como interesse difuso de natureza indisponível. Por isso, o ministro considerou válida a legitimação do MPF na ação, conforme prevê o artigo 25 da Lei 8.625/93.

O ministro também lembrou que o Ministério Público, em suas atividades principais, constantemente tem a necessidade de buscar dados e informações de pessoas investigadas a fim de instruir processo judicial, inquérito policial ou qualquer outra investigação criminal ou civil.

Dados e dados cadastrais

Para solução do caso, o relator também diferenciou o conceito de dados e o de dados cadastrais. Segundo o ministro, enquanto os dados se relacionam a aspectos da vida privada do indivíduo e possuem proteção constitucional, os dados cadastrais se referem a informações de caráter objetivo, que não possuem a garantia de inviolabilidade da comunicação de dados.

São exemplos de dados cadastrais bancários o número da conta-corrente, o nome do titular e os registros de documentos pessoais. No caso dos dados protegidos por sigilo bancário, estão incluídos os serviços típicos de conta, como aplicações financeiras, transferências e depósitos.

“Ao Ministério Público deve ser assegurado o acesso a informações não acobertadas por sigilo bancário, mas apenas o acesso aos dados cadastrais de pessoas investigadas, para o fim de instruir os procedimentos investigatórios de natureza penal e civil”, concluiu o ministro ao acolher o recurso do MPF e determinar novo julgamento da ação pelo TRF3.

O recurso ficou assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. FORNECIMENTO DE DADOS CADASTRAIS DE CLIENTES DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS MEDIANTE REQUISIÇÃO DIRETA DO PARQUET OU DA POLÍCIA FEDERAL. DIREITOS DIFUSOS E COLETIVOS CARACTERIZADOS. SEGURANÇA PÚBLICA. ACESSO A DADOS CADASTRAIS. POSSIBILIDADE.
HISTÓRICO DA DEMANDA
1. Tratam os presentes autos de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal buscando, em síntese, “assegurar o fornecimento de informações constantes dos cadastros de clientes em instituições financeiras (nome completo, endereço, telefone, e-mail, número de documentos, etc.), quando requisitadas por seus membros para instruir processo judicial, inquérito policial ou qualquer outro procedimento de investigação criminal ou civil, e por Delegados de Polícia Federal, para instruir inquérito policial devidamente formalizado” (fl. 1.106, e-STJ).
2. O Tribunal regional consignou (fl. 1.108-1.109, e-STJ): “Não se desconhece a existência de decisões judiciais favoráveis à tese defendida pelo autor da ação, decisões que aceitam o uso da ação civil pública como meio para facilitar ou aprimorar a atuação do próprio Ministério Público Federal  (…). Entendo, porém, que a questão passa pela natureza da legitimação do Ministério Público para a ação civil pública. Na defesa dos interesses tuteláveis pela ação civil pública, o Ministério Público atua em nome próprio na defesa de interesses de terceiros amparado, neste aspecto, expressamente pela ordem jurídica. A defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis é, até, uma de suas funções institucionais (artigo 127, CF), razão pela qual, na ação civil pública, sua legitimação é extraordinária. (…) Alega-se a defesa de interesse difuso, mas como restou bem delineado acima, de interesse difuso não se trata, mas de interesse do próprio Parquet”.
LEGITIMIDADE ATIVA
DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
3. A pretensão deduzida na presente Ação Civil Pública busca a tutela da segurança pública, interesse difuso de natureza indisponível. Assim, a legitimação ativa do Parquet Federal mostra-se evidente, nos termos do art. 25, IV, da Lei 8.625⁄1993. O caráter difuso do direito à segurança pública foi considerado pelo STF ao reconhecer a legitimidade do Ministério Público Federal para ajuizamento de Ação Civil Pública, ainda que analisada sob enfoque distinto, in verbis: STF, AgR no RE 367.432⁄PR, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe 13.5.2010, publicado em 14.5.2010.
MÉRITO DA CONTROVÉRSIA
4. O Ministério Público, em suas atividades precípuas, depara-se constantemente com a necessidade de buscar dados e informações de usuários investigados para instruir processo judicial, inquérito policial ou qualquer outra investigação criminal ou civil, constantes em bancos de dados de pessoas jurídicas de direito público ou privado. O acesso a tais bancos é essencial para que haja sucesso na tarefa de individualização e identificação de agentes praticantes das mais diversas infrações penais, seja na posição de autores, partícipes ou até mesmo como testemunhas de crimes.
5. Outro ponto imprescindível ao deslinde da presente controvérsia é a distinção de dados e dados cadastrais. Enquanto os “dados” revelam aspectos da vida privada ou da intimidade do indivíduo e possuem proteção constitucional esculpida no art. 5º, X e XII, da Constituição Federal, os “dados cadastrais” se referem a informações de caráter objetivo que todos possuem, não permitindo a criação de qualquer juízo de valor sobre o indivíduo a partir de sua divulgação. São essencialmente um conjunto de informações objetivas fornecidas pelos consumidores⁄clientes⁄usuários sistematizadas em forma de registro de fácil acesso por meio de seu armazenamento em banco de dados de pessoas jurídicas de direito público ou privado, contendo informações como nome completo, CPF, RG, endereço, número de telefone etc.
6. O Supremo Tribunal Federal consolidou jurisprudência de que o conceito de “dados” previsto na Constituição é diferente do de “dados cadastrais”. Somente aquele tem assegurada a inviolabilidade da comunicação de dados. A propósito: STF, RE 418.416⁄SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 19.12.2006; STF, HC 91.867⁄PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 19.9.2012, publicado em 20.9.2012.
7. Os dados cadastrais bancários (informações de seus correntistas tais como número da conta-corrente, nome completo, RG, CPF, número de telefone e endereço) estão incluídos na definição de dados cadastrais e não estão, portanto, protegidos por sigilo bancário, que abriga apenas os serviços da conta (aplicações, transferências, depósitos e etc) e não os dados cadastrais de seus usuários.
8. Ressalte-se que o STJ, ao apreciar controvérsia referente ao acesso a dados cadastrais telefônicos, adotou o mesmo entendimento aqui esposado, ao consignar que informações referentes ao proprietário de linha telefônica (nome completo, CPF, RG, número da linha e endereço) buscam somente a identificação de seus usuários e, portanto, não estão acobertadas pelo sigilo das comunicações telefônicas. Nesse sentido: RHC 82.868⁄MS, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 1º.8.2017; HC 131.836⁄RJ, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 6.4.2011.
ALEGAÇÃO DE PERDA SUPERVENIENTE
DO INTERESSE DE AGIR
9. Destaque-se que, na sustentação oral procedida pelo procurador da parte recorrida, Itaú Unibanco S.A., na sessão de julgamento realizada no dia 10.4.2018, bem como nos memoriais entregues, foi levantada a questão de possível perda superveniente do interesse de agir, ante a mudança no quadro normativo que rege a matéria a partir da edição de duas leis.
10. Inicialmente, ressalte-se que ambas as leis invocadas (Leis 12.683⁄2012 e 12.850⁄2013) já se encontravam em vigor quando do pronunciamento judicial do Tribunal a quo no acórdão que ensejou o presente Recurso Especial. Todavia, os mencionados dispositivos legais não foram analisados pela instância de origem. Ausente, portanto, o requisito do prequestionamento, o que atrai, por analogia, o óbice da Súmula 282⁄STF. O Superior Tribunal de Justiça entende que, em razão da falta de prequestionamento, a alegação de existência de fato superveniente é obstada na via especial.
11. Ademais, os enunciados normativos apontados versam sobre procedimentos específicos e mais restritos do que o objeto desta Ação Civil Pública: a Lei 9.613⁄1998 trata dos crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, ao passo que a Lei 12.850⁄2013 é referente a organização criminosa, meios de obtenção de prova, infrações correlatas e procedimento criminal. Assim, percebe-se que a legislação diz respeito a procedimentos específicos de atuação da legislação penal e processual penal, não se podendo falar em perda superveniente do interesse de agir do Parquet na presente Ação.
12. Além disso, ainda que se afastasse tal óbice, destaque-se que o art. 17-B da Lei 9.613⁄1998, incluído pela Lei 12.683⁄2012, e o art. 15 da Lei 12.850⁄2013, na verdade, reforçam a tese argumentativa do provimento do presente apelo recursal. Ambos indicam a possibilidade de a autoridade policial e de o Ministério Público terem acesso, independentemente de autorização judicial, de dados cadastrais do investigado para fins investigatórios, em total harmonia ao que se pleiteia no presente Recurso Especial.
NÃO INCIDÊNCIA DO PRECEDENTE
FIRMADO NO RESP 1.611.821⁄MT
13. Inaplicável o precedente invocado pela parte recorrida, Caixa Econômica Federal, em sua sustentação oral, firmado no julgamento do REsp 1.611.821⁄MT, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, realizado pela Terceira Turma do STJ em 13.6.2017, por se tratar de questão distinta da que está sendo debatida nos presentes autos. Naquela ocasião, a controvérsia abordava questões ligadas à “divulgação de operações passivas e ativas dos clientes, ainda que se dispense a indicação de valores financeiros”, em que se buscava “a relação nominal de clientes que contrataram determinadas operações num período temporal determinado, situação que se encaixa com perfeição no dever de sigilo definido na legislação complementar específica”, enquanto os presentes autos tratam unicamente do acesso a dados cadastrais não abrangidos pela proteção constitucional.
CONCLUSÃO
14. Finalmente, destaque-se que os precedentes firmados no Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859 e do Recurso Extraordinário 601.314, não se aplicam aos presentes autos, uma vez que tratava de controvérsia distinta – o sigilo bancário – e não de acesso a dados cadastrais, estes últimos não abarcados pela proteção constitucional, embora naquela ocasião tenha sido reconhecida a constitucionalidade da LC 105⁄2001, que permite à Receita Federal receber dados bancários de contribuintes fornecidos diretamente pelos bancos, sem prévia autorização judicial.
15. Ao Ministério Público deve ser assegurado o acesso a informações não agasalhadas por sigilo bancário (dados cadastrais de pessoas investigadas), para o fim de instruir os procedimentos investigatórios de natureza penal e civil.
16. Recurso Especial provido, devolvendo ao Tribunal de origem para que prossiga com a Ação.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1561191

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