Com base no poder geral de cautela e na possibilidade de reapreciação de pedidos cautelares em razão de novos fatos, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve acórdão do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) que permitiu à vítima de um acidente automobilístico levantar o valor de R$ 300 mil, depositado judicialmente, para garantir a continuidade de seu tratamento de saúde.
Em decisão anterior, o TJBA havia condicionado o saque do dinheiro pela vítima à demonstração de fatos novos que o justificassem e à apresentação de caução, mas o próprio tribunal reviu essa posição diante de documentos médicos juntados ao processo.
Após acidente envolvendo veículo de uma empresa de combustíveis, a vítima, que sofreu diversas sequelas, ajuizou ações indenizatória e cautelar. Em decisão liminar, o juiz autorizou que ela levantasse o valor de aproximadamente R$ 300 mil para cobrir as despesas médicas.
Contra a decisão, a empresa interpôs agravo de instrumento no TJBA, mas a corte rejeitou o recurso por considerar que houve comprovação das despesas e que a situação era urgente, não podendo a vítima ser prejudicada com a paralisação de seu tratamento.
No acórdão, o TJBA também considerou que o longo trâmite processual poderia trazer danos graves à vítima, que há aproximadamente dez anos está em estado de saúde precário e depende de tratamento especializado para sobreviver.
Demora processual
Por meio de recurso especial, a empresa de combustíveis alegou ao STJ que o tribunal baiano havia proferido decisão anterior em que condicionava a avaliação sobre levantamento do dinheiro depositado à apresentação de caução, mas mudou de posição sem que houvesse fatos supervenientes.
O relator do recurso, ministro Marco Aurélio Bellizze, afirmou que o poder geral de cautela é atribuído ao Judiciário com o objetivo de instrumentalizar a prestação jurisdicional com ferramentas capazes de eliminar – ou pelo menos mitigar – os efeitos decorrentes da demora natural da tramitação processual.
Entretanto, o ministro lembrou que o exercício desse poder não é ilimitado, devendo observar os requisitos para o deferimento de medidas excepcionais, como a existência de perigo de dano e ameaça de lesão a direito evidente.
Por outro lado, disse o relator, o instituto da preclusão decorre da necessidade de impulsionamento do processo e tem relação com o princípio da celeridade processual e com os fundamentos éticos da boa-fé e da lealdade processual.
“Em virtude dessa ética erigida em torno da boa-fé e da lealdade, a qual deve ser observada com mais razão pelo Estado-juiz imparcial, o instituto da preclusão consumativa não se incompatibiliza com o poder geral de cautela. Ao contrário, ambos devem se harmonizar para possibilitar que a demanda siga o devido processo legal, alcançando o resultado final e definitivo o mais breve possível”, ponderou.
Requisitos atendidos
Segundo Bellizze, é necessário verificar no caso dos autos se, em virtude da decisão anterior do TJBA que fixou condições futuras para requerimentos de levantamento – entre as quais a caução –, o novo pedido de liberação de valores poderia ser deferido sem consideração daquelas condições ou se, ao contrário, essa nova apreciação esbarraria na preclusão consumativa.
O ministro destacou que o acórdão do TJBA foi expresso ao reconhecer que o novo pedido de levantamento atendia aos requisitos da decisão transitada em julgado, na medida em que foi acompanhado de documentos que comprovavam os gastos médicos e farmacêuticos. De igual forma, o tribunal entendeu que a necessidade de prestação de caução poderia ser dispensada, já que estava em questão a proteção da saúde e da vida da vítima.
De acordo com o relator, a análise da liberação da caução pelo TJBA envolveria reexame de fatos e provas – o que não é possível em recurso especial em razão da Súmula 7 do STJ.
“Assim sendo, a despeito de todo o louvável esforço argumentativo da recorrente, não se afigura viável a alteração das conclusões do acórdão recorrido sem que se reapreciasse com profundidade toda a dilação probatória envolvida no caso concreto, inclusive questões relativas ao longo lapso temporal de tramitação da presente demanda”, concluiu o ministro.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. 1. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. PODER GERAL DE CAUTELA. COMPATIBILIZAÇÃO. REVISÃO DAS DECISÕES CAUTELARES. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE FATO NÃO EXAMINADO. 2. ACÓRDÃO RECORRIDO FUNDAMENTADO EM QUESTÕES DE FATO E PROVAS. ALTERAÇÃO DA CONCLUSÃO. IMPOSSIBILIDADE. ENUNCIADO N. 7⁄STJ. 3. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO.1. O poder geral de cautela tem por finalidade instrumentalizar a prestação jurisdicional com ferramentas aptas a mitigar os efeitos da demora natural da tramitação processual.2. As medidas adotadas em razão do poder geral de cautela vinculam-se a situações fáticas e circunstanciais que, em regra, perduram tão somente ao longo da tramitação processual, por isso, são medidas temporárias, cuja manutenção depende da situação fática tomada em consideração no momento de seu deferimento.3. A preclusão tem por finalidade favorecer a duração razoável do processo, assegurando que o processo siga uma marcha processual que atenda também os fundamentos éticos da boa-fé e da lealdade processual, vedando a todos os sujeitos processuais a prática de atos extemporâneos, contraditórios ou repetitivos4. O instituto da preclusão consumativa não se incompatibiliza com o poder geral de cautela, ao contrário, ambos devem se harmonizar para possibilitar que a demanda siga o devido processo legal e alcance o resultado final e definitivo o mais breve possível.5. Questões e circunstâncias já apreciadas pelo juiz competente, portanto, ainda que decididas no bojo de demandas cautelares, somente devem ser reapreciadas quando envolver novo contexto fático ou jurídico.6. No caso dos autos, o acórdão recorrido entendeu atendidos os requisitos para deferimento de novos pedidos de levantamento de valores, inclusive mediante a dispensa de caução, a partir da análise de contexto fático-probatório que escapa ao reexame por esta Corte Superior.7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta extensão, desprovido.
Leia o acórdão.