A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que é cabível o acesso aos dados telemáticos de celular de advogado, quando a medida é autorizada em razão da existência de graves indícios de que o aparelho tenha sido usado para a prática de crime.
A decisão foi tomada na análise de recurso em habeas corpus interposto por dois advogados, presos em flagrante pela suposta prática dos crimes de participação em organização criminosa e coação de testemunhas. Eles teriam entrado em contato com duas testemunhas de acusação para coagi-las a prestar depoimentos falsos em ação penal deflagrada na Operação Regalia.
A investigação teve por finalidade apurar a existência de organização criminosa – composta por policiais civis, um agente penitenciário e um preso – que se dedicaria a acusar agricultores e empresários do Paraná de crime ambiental, para depois exigir dinheiro em troca da promessa de não aplicação de multa ou persecução criminal.
Ao lavrar o auto de prisão em flagrante, a polícia representou pela quebra do sigilo dos dados telemáticos dos celulares dos advogados, que foi deferida. Ao STJ, os réus alegaram constrangimento ilegal e violação de sigilo profissional, visto que a devassa nos celulares apreendidos resultaria em acesso indevido a dados relativos a seus clientes.
Inviolabilidade dos instrumentos de trabalho do advogado não acoberta crimes
Segundo o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, é pacífico no STJ o entendimento de que a inviolabilidade prevista no artigo 7º, II, da Lei n 8.906/1994 não se destina a afastar a punição de advogados pela prática de delitos pessoais – em concurso ou não com seus supostos clientes –, mas a garantir o exercício da advocacia e proteger o dever constitucional exercido por esses profissionais em relação a seus clientes.
O relator afirmou que, na busca em escritório de advocacia, autorizada diante da suspeita da prática de crime pelo advogado, não se pode exigir que os agentes executores do mandado filtrem imediatamente o que interessa ou não à investigação, mas aquilo que não tiver interesse deve ser prontamente restituído ao investigado após a perícia.
“Tal raciocínio pode perfeitamente ser aplicado no acesso aos dados telemáticos do aparelho celular, quando a medida é autorizada em razão da existência de sérios indícios da prática de crime por meio da utilização do aparelho pelo advogado”, disse o relator.
Execução da medida mediante acompanhamento pelo representante da OAB
Sebastião Reis Júnior observou ainda que, segundo o processo, tanto o juízo de primeiro grau quanto o departamento de polícia científica foram cautelosos ao acessar os dados, medida que foi deferida mediante o acompanhamento por representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“A garantia do sigilo profissional entre advogado e cliente, em que pese esteja sendo preterida em relação à necessidade da investigação da prática de crimes pelos investigados, seguirá preservada com a transferência do sigilo para quem quer que esteja na posse dos dados telemáticos extraídos dos celulares apreendidos”, declarou o ministro.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. INVESTIGAÇÃO QUE ATRIBUI AOS RECORRENTES, ADVOGADOS, O DELITO DE PARTICIPAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. COAÇÃO A TESTEMUNHAS DE DETERMINADA AÇÃO PENAL, POR MEIO DE APARELHO CELULAR. DECRETAÇÃO DA QUEBRA DO SIGILO TELEMÁTICO. ALEGAÇÃO DE QUE O TRIBUNAL NÃO DEBATEU SUFICIENTEMENTE A QUESTÃO. IMPROCEDÊNCIA. WRIT ORIGINÁRIO QUE, APESAR DE NÃO ADMITIDO, ENFRENTOU AS ALEGAÇÕES DEFENSIVAS. PRETENSÃO DE OBSTAR O ACESSO INTEGRAL AOS DADOS TELEMÁTICOS DOS RECORRENTES. RAZÕES TÉCNICAS QUE IMPEDEM A EXTRAÇÃO PARCIAL DOS DADOS QUE INTERESSAM À INVESTIGAÇÃO. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO SIGILO PROFISSIONAL DIANTE DA POSSIBILIDADE DE INVESTIGAÇÃO ESPECULATIVA OU SERENDIPIDADE. INOCORRÊNCIA. GARANTIA QUE DEVE SER PONDERADA DIANTE DA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DA PRÁTICA DE CRIME POR ADVOGADO. PRESERVAÇÃO, ADEMAIS, DIANTE DA TRANSFERÊNCIA DO SIGILO PARA QUEM DETIVER OS DADOS RELACIONADOS AOS EVENTUAIS CLIENTES REPRESENTADOS PELOS INVESTIGADOS. EXISTÊNCIA, AINDA, DA ADOÇÃO DE CAUTELAS NA EXECUÇÃO DA MEDIDA, MEDIANTE REPRESENTANTE DA OAB. CAUTELAS INERENTES À BUSCA E APREENSÃO EM ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA QUE PODEM SER DEVIDAMENTE APLICADAS QUANDO DO ACESSO AOS DADOS VIRTUAIS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA.
1. Em que pese o Tribunal não tenha admitido a impetração originária, discorreu sobre o mérito da insurgência, a fim de verificar se existiria constrangimento ilegal a ser sanado de ofício, razão pela qual improcede a alegação que a Corte originária não apreciou as alegações defensivas, não cabendo o retorno dos autos para eventual análise.
2. É cediço, neste Superior Tribunal, o entendimento de que a inviolabilidade prevista no art. 7º, II, da Lei n. 8.906/1994 não se presta para afastar da persecução penal a prática de delitos pessoais pelos advogados. Trata-se de garantia voltada ao exercício da advocacia e protege o munus constitucional exercido pelo profissional em relação a seus clientes, criminosos ou não, mas que não devem servir de blindagem para a prática de crimes pelo próprio advogado, em concurso ou não com seus supostos clientes (APn n. 940/DF, Rel. Ministro Og Fernandes, Corte Especial, DJe 13/5/2020).
3. Caso em que o cerne da investigação deflagrada contra os recorrentes, que inclusive foi a causa de sua prisão em flagrante, é o fato de ambos, em tese, utilizarem seus aparelhos celulares para coagir testemunhas a prestarem depoimentos falsos em juízo, em audiência da ação penal que decorre de investigação policial (Operação Regalia) que apurou a prática de diversos crimes (concussão, estelionato, falsidade ideológica, facilitação à fuga de preso, usurpação de função pública).
4. Improcede a alegação de investigação especulativa (fishing expedition) ou possibilidade da ocorrência do fenômeno da serendipidade em relação a eventuais clientes dos recorrentes, uma vez que a garantia do sigilo profissional entre advogado cliente, em que pese esteja sendo preterida em relação à necessidade da investigação da prática dos crimes pelos investigados, seguirá preservada com a transferência do sigilo para quem quer que esteja na posse dos dados telemáticos extraídos dos celulares apreendidos.
5. Essa é justamente a cautela que vem sendo providenciada tanto pelo Juízo de primeiro grau, que deferiu a realização da medida mediante acompanhamento pelo representante da OAB, quanto pelo próprio departamento de Polícia Científica, que expediu diversas recomendações para o bom andamento da medida.
6. Assim como ocorre na execução da medida de busca e apreensão em escritório de advocacia, quando a medida é autorizada mediante a suspeita da prática de crime por advogado, na qual não há como exigir da autoridade cumpridora do mandado que filtre imediatamente o que interessa ou não à investigação, devendo o que não interessa ser prontamente restituído ao investigado após a perícia, tal raciocínio pode perfeitamente ser aplicado, quando do acesso aos dados telemáticos do aparelho celular, quando a medida é autorizada em razão da existência de sérios indícios da prática de crime por meio da utilização do aparelho pelo advogado.
7. Recurso em habeas corpus improvido.
Leia o acórdão no RHC 157.143.