A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, consolidou o entendimento de que é admissível, em ação de inventário, a partilha de direitos possessórios sobre bens imóveis alegadamente pertencentes à pessoa falecida e que não se encontram devidamente escriturados.
Para o colegiado, o acervo partilhável em razão do falecimento do autor da herança não é composto somente de propriedades formalmente constituídas. Os ministros afirmaram que existem bens e direitos com indiscutível expressão econômica que, por vícios de diferentes naturezas, não se encontram legalmente regularizados ou formalmente constituídos sob a titularidade do falecido.
Com base nesse entendimento, a turma reformou acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que negou o pedido de uma viúva e de suas filhas para incluir, no inventário, uma motocicleta e os direitos possessórios sobre 92 hectares de terras no município de Teófilo Otoni (MG) – alegadamente herdados dos ascendentes do falecido.
Segundo o TJMG, a prévia regularização dos bens por vias ordinárias seria imprescindível para que eles fossem inventariados e, por isso, não seria admitida a partilha de direitos possessórios.
Existe autonomia entre o direito de posse e o direito de propriedade
A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, ressaltou que a questão em debate no caso não diz respeito à partilha dos direitos de propriedade dos bens do falecido, mas à possibilidade de serem partilhados apenas os direitos possessórios que supostamente eram de titularidade do autor da herança.
A magistrada afirmou que o rol de bens adquiridos pelo autor da herança em vida era composto por propriedades formalmente constituídas e por bens que não estavam devidamente regularizados.
Para a relatora, se a ausência de escrituração e de regularização do imóvel que se pretende partilhar não decorre de má-fé dos possuidores – como sonegação de tributos e ocultação de bens –, mas, sim, de causas distintas – como a hipossuficiência econômica ou jurídica das partes para dar continuidade aos trâmites legais –, os titulares dos direitos possessórios devem receber a tutela jurisdicional.
Segundo a ministra, “reconhece-se, pois, a autonomia existente entre o direito de propriedade e o direito de posse, bem como a expressão econômica do direito possessório como objeto lícito de possível partilha pelos herdeiros, sem que haja reflexo direto nas eventuais discussões relacionadas à propriedade formal do bem”.
TJMG não examinou legalidade do direito possessório e qualidade da posse
De acordo com Nancy Andrighi, ao admitir apenas a partilha de bens escriturados, e não de direitos possessórios sobre imóveis, o acórdão do TJMG violou o artigo 1.206 do Código Civil e o artigo 620, inciso IV, alínea “g”, do Código de Processo Civil – dispositivos que reconhecem a existência de direitos possessórios e, consequentemente, a possibilidade de eles serem objeto de partilha no inventário.
A relatora apontou que o tribunal de origem não examinou aspectos como a existência efetiva dos direitos possessórios e a qualidade da posse alegadamente exercida pelo autor da herança, indispensáveis para a configuração de um direito possessório suscetível de partilha.
Além disso, a ministra afirmou que deve ser resolvida, em caráter particular e imediato, a questão que diz respeito somente à sucessão, adiando a um segundo e oportuno momento as eventuais discussões acerca da regularidade e da formalização da propriedade sobre o imóvel.
Ao dar provimento ao recurso especial, Nancy Andrighi determinou que fosse dado regular prosseguimento à ação de inventário e que fosse apurada a existência dos requisitos configuradores do alegado direito possessório suscetível de partilha entre os herdeiros.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. PARTILHA DE DIREITOS POSSESSÓRIOS SOBRE ÁREAS RURAIS NÃO ESCRITURADAS. AUTONOMIA ENTRE O DIREITO DE PROPRIEDADE E O DIREITO POSSESSÓRIO SOBRE BENS IMÓVEIS. EXPRESSÃO ECONÔMICA DO DIREITO POSSESSÓRIO QUE PODE SER OBJETO DE TUTELA. PARTILHA DO DIREITO POSSESSÓRIO. RESOLUÇÃO PARTICULAR DA QUESTÃO EM RELAÇÃO AOS HERDEIROS COM POSTERIOR RESOLUÇÃO DA QUESTÃO FUNDIÁRIA. POSSIBILIDADE.1- Ação proposta em 13⁄12⁄2018. Recurso especial interposto em 13⁄09⁄2021 e atribuído à Relatora em 14⁄03⁄2022.2- O propósito recursal é definir se é admissível, em ação de inventário, a partilha de direitos possessórios sobre bens imóveis alegadamente pertencentes ao falecido e que não se encontram devidamente escriturados.3- Não apenas de propriedades formalmente constituídas é composto o acervo partilhável em razão do falecimento do autor da herança, na medida em que existem bens e direitos com indiscutível expressão econômica que, por vícios de diferentes naturezas, não se encontram legalmente regularizados ou formalmente constituídos sob a titularidade do falecido.4- Diante da autonomia existente entre o direito de propriedade e o direito possessório, a existência de expressão econômica do direito possessório como objeto de partilha e a existência de parcela significativa de bens que se encontram em situação de irregularidade por motivo distinto da má-fé dos possuidores, é possível a partilha de direitos possessórios sobre bens imóveis não escriturados.5- A partilha imediata dos direitos possessórios permite resolver, em caráter particular, a questão que decorre da sucessão hereditária, relegando-se a um segundo momento a discussão acerca da regularidade e da formalização da propriedade sobre os bens inventariados. Precedente.6- Na hipótese, dado que a exclusão da partilha dos direitos sobre as terras se deu apenas ao fundamento de que seria impossível a partilha de áreas não escrituradas, impõe-se que, afastado esse óbice, seja determinado o regular prosseguimento da ação de inventário a fim de que seja apurada a existência dos direitos possessórios e a qualidade da posse alegadamente exercida, dentre outras questões relevantes para o reconhecimento do eventual direito a ser partilhado.7- Recurso especial conhecido e provido, a fim de, afastado o óbice à partilha apontado no acórdão recorrido, determinar seja dado regular prosseguimento à ação de inventário.
Leia o acórdão no REsp 1.984.847.