A ação civil pública que questiona a construção de casas de veraneio no loteamento Praia de Ibiraquera, situado nas margens da Lagoa de Ibiraquera, em Imbituba (SC), terá que ter o mérito julgado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), tendo o acordo de conciliação realizado entre os proprietários e o Ministério Público Federal (MPF) perdido a validade devido à oposição de órgãos de fiscalização ambiental com o que foi acordado.
No final de fevereiro (22/2), a 3ª Turma, por maioria, deu provimento aos recursos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e deixou de homologar o acordo, incluindo os recorrentes na condição de assistentes do processo, que irá a julgamento.
O caso envolve a licitude da construção dos imóveis do loteamento, que estariam localizados em Área de Preservação Permanente (APP). Nos recursos apresentados, o Ibama e o ICMBio sustentaram que o acordo seria prejudicial ao meio ambiente, pois representaria uma tentativa de legalizar um empreendimento construído de forma ilegal.
As autarquias argumentaram que, por serem órgãos independentes, possuindo interesse direto na proteção ambiental, teriam o direito de serem assistentes litisconsorciais, ou seja, integrantes ativos do processo, podendo interferir nele independentemente da posição do MPF.
A relatora do acórdão, desembargadora Vânia Hack de Almeida, destacou que “não é possível considerar que o objeto do acordo em análise é lícito, em sua completude, porque não provêm de um acordo multilateral suficiente (seja em número de participantes e em qualidade de fiscalização), bem como por ter abreviado o tempo e o fórum de discussão mais amplo possível, em termos de legitimidade (esta Turma pode, se entender cabível, expandir a coleta de opiniões à sociedade, através do amicus curiae) e em termos de máxima proteção ao meio ambiente (está se furtando do Poder Judiciário a possibilidade de analisar a existência de adequação e suficiência dos meios possíveis de reparação do dano ambiental)”.
Em seu voto, a magistrada concluiu: “o Judiciário não pode se omitir de fiscalizar os próprios entes fiscalizadores, mesmo que isso leve mais tempo ou prejudique interesses patrimoniais particulares. O acordo conduzido por partes legalmente legitimadas não pode ser aceito só pela sua fonte, mas deve se legitimar na coletividade envolvida e, principalmente, na suficiência real da proteção e/ou reparação ambiental. Destarte, entendo ser imperativo que esta Turma analise o mérito da lide originária. O citado acordo poderá ser levado em conta como ponto de partida à conclusão judicial mais adequada, mas não pode limitar a sua existência”.
O recurso ficou assim ementado:
AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. UNIÃO. IBAMA. ICMBIO. MPF. ACORDO. RECOMPOSIÇÃO DANOS AMBIENTAIS. DISCORDÂNCIA ENTRE OS ENTES PÚBLICOS. ANÁLISE JUDICIAL. PARÂMETROS.
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A ação civil pública foi ajuizada pelo MPF com o objetivo de combater a degradação ambiental e a utilização indevida do espaço público no loteamento Praia de Ibiraquera, situado nas margens da Lagoa de Ibiraquera, Município de Imbituba/SC. No âmbito do Sistema de Conciliação (SISTCON) deste Tribunal, restou homologado acordo parcial nos termos do protocolo de sustentabilidade com as alterações propostas pelo MPF. Manifestou-se o Ministério Público Federal pela devolução dos autos à Turma para a conclusão do julgamento do recurso exclusivamente no que diz respeito às empresas rés e às demais partes que não compuseram a lide. Posteriormente, foi proferida decisão (evento 358) ratificando a homologação do acordo parcial. A FATMA aderiu ao acordo. Contra a decisão, o IBAMA opôs embargos de declaração. Alega o embargante, primeiramente, a impossibilidade de exclusão do Município de Ibiraquera do polo passivo do feito, em razão de acordo com o Ministério Público Federal em audiência, sob a equivocada ideia de que o IBAMA atuaria como assistente simples, bastando a anuência do MPF. Sustenta que o IBAMA atua, na verdade, na condição de assistente litisconsorcial, tendo em vista que o STJ qualifica como litisconsorcial a atuação em juízo de mais de um titular autônomo do direito posto em causa, em interpretação conferida aos artigos 53/55 do CPC, assemelhando-se à figura do litisconsórcio unitário ulterior, hipótese em que o assistente litisconsorcial atua com as mesmas prerrogativas da parte principal. Sustenta que o assistente litisconsorcial pode recorrer inclusive contra a vontade do assistido, pois age em defesa de direito seu. Cita precedentes. Alega que, igualmente, o ICMBIO não fez qualquer acerto, tendo sido anexada aos autos mera pretensão dos réus de acerto jamais firmado. Afirma que, para a homologação de acordo extrajudicial, este precisa ser realizado entre as partes, descabendo pedido de homologação de acordo feito entre uma das partes e terceiros. Defende não haver fundamento para o argumento de destinação dos imóveis à moradia, pois se trata de investimento de alto padrão em região litorânea tipicamente destinado ao lazer e não à moradia, diferentemente do que alega o Município. Afirma que a tentativa de promover ligação de esgoto a ser despejado no mar, bem como de energia elétrica (já vedada nos autos) constitui tentativa de legalizar empreendimento feito na ilegalidade e vem de encontro ao já decidido nos autos. No mesmo sentido manifestou-se a União e o ICMBio.
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Há possibilidade de serem transacionados os meios e valores referentes à reparação/recomposição ambiental (uma vez que o direito difuso, em si, é irrenunciável e não comporta transação). Assim, consagrando os princípios da economia e da celeridade processuais, a transação poderá ser admitida quando se tratar de direitos e interesses difusos, devendo, entretanto ser preservada a integralidade da proteção inicialmente pleiteada.
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Embora seja possível a transação, nem sempre há consenso entre todas as partes sobre o objeto do acordo a ser homologado em juízo. Vale ressaltar que qualquer acordo pressupõe a voluntariedade. Assim, quando um TAC é levado a efeito na via extrajudicial ou quando ele é submetido à homologação em juízo, deve pressupor um acordo entre todas as partes. Ou seja, não há obrigação de as partes aderirem a um acordo múltiplo. Isso, todavia, não impede que o acordo seja, no caso, homologado em juízo com a exclusão de um ponto que não é consenso entre todas as partes ou que uma parte não faça parte do acordo homologado sobre um ponto.
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No caso, o atual quadro processual demonstra indubitável discordância da União, do IBAMA e do ICMBIO em relação ao teor do acordo entabulado entre o MPF e o pólo passivo da ação.
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Não se discute que o MPF tem legitimidade para propor a ACP. Todavia, também é certo que o IBAMA e o ICMBIO têm legítimo interesse em prosseguir nela, assumindo a titularidade ativa, por que têm direito autônomo de parte principal (não são meros assistentes simples), conforme melhor interpretação do art. 5º, § 3º da Lei 7.347/85 e de todo o microssistema de direito coletivo.
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Dados tais contornos e sendo insuficiente para a solução do caso fixar a incompletude subjetiva do acordo, resta saber se o seu conteúdo é – em termos materiais – suficiente à reparação ambiental. A doutrina ambiental atesta ser possível ao Poder Judiciário homologar acordo, mesmo com a discordância de alguma parte envolvida, desde que o seu conteúdo material amplo (reparação dos danos) seja contemplado.
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Na lide originária, não há consenso sobre a recomposição ou reparação ‘latu sensu’. O grupo UNIÃO/IBAMA/ICMBIO sustenta que a pretendida regularização fundiária não pode ser feita, pois se cuida de área de Preservação Permanente – APP em área urbana, e embora possa se sustentar estar consolidada a ocupação, não seria o caso dos arts. 46 e 47 da Lei 11.979/09, eis que são residências de veraneio, de investimento de alto padrão em região litorânea tipicamente destinada ao lazer (e não à moradia), diferentemente do que alega o Município. Afirma, ainda, que a tentativa de promover ligação de esgoto a ser despejado no mar, bem como de energia elétrica (já vedada nos autos) constitui tentativa de legalizar empreendimento feito na ilegalidade e vem de encontro ao já decidido nos autos. Assim, inexistindo termo de acordo materialmente válido, sustenta que foi toda a matéria devolvida à Turma para julgamento do apelo. Ou seja, há conflito sobre o núcleo do acordo, em termos de proteção/recomposição equivalente do meio ambiente.
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Dado todo o quadro conjuntural, se percebe uma incompletude subjetiva e material do acordo posto em análise. Assim, cabe indagar sobre o papel do magistrado diante de tal divergência nuclear em relação a objeto tão complexo.
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Percebe-se que, em casos de ampla complexidade e “litigiosidade interna” na recomposição ambiental ou reparação pecuniária, há conflito entre grupos dentre as próprias vítimas, o que o professor Edilson Vitorelli classifica como conflitos coletivos irradiados.
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Assim, um acordo multilateral é muito mais difícil de ser finalizado quando há conflitos coletivos irradiados. O papel do magistrado, neste contexto, é ainda mais importante, já que deve viabilizar a racionalidade instrumental e comunicativa (Habermas) e a abertura democrática decisória (Haberle) para se ultimar um acordo.
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Nesse sentido, o STJ consubstanciou a tese de que compete ao magistrado, com fulcro no art. 129 do CPC/1973 (art. 142 do CPC/2015), negar a homologação de acordo que entende, pelas circunstâncias do fato, ter objeto ilícito ou de licitude duvidosa; violar os princípios gerais que informam o ordenamento jurídico brasileiro ou atentar contra a dignidade da justiça (AgRg no REsp. 1.090.695/MS, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 4/11/2009).
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No caso, não é possível considerar que o objeto do acordo em análise é lícito, em sua completude, porque não provêm de um acordo multilateral suficiente (seja em número de participantes e em qualidade de fiscalização), bem como por ter abreviado o tempo e o fórum de discussão mais amplo possível, em termos de legitimidade (esta Turma pode, se entender cabível, expandir a coleta de opiniões à sociedade, através do ‘amicus curiae’) e em termos de máxima proteção ao meio ambiente (está se furtando do Poder Judiciário a possibilidade de analisar a existência de adequação e suficiência dos meios possíveis de reparação do dano ambiental).
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Não se descuida da celeridade processual ou da condição dos particulares envolvidos. Todavia, o Poder Judiciário não pode se omitir de fiscalizar os próprios entes fiscalizadores, mesmo que isso leve mais tempo ou prejudique interesses patrimoniais particulares. O acordo conduzido por partes legalmente legitimadas não pode ser aceito só pela sua fonte, mas deve se legitimar na coletividade envolvida e, principalmente, na suficiência real da proteção e/ou reparação ambiental “mais possível”.
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Destarte, é imperativo que esta Turma analise o mérito da lide originária. O citado acordo poderá ser levado em conta como ponto de partida à conclusão judicial mais adequada, mas não pode limitar a sua existência.