A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus para anular o flagrante obtido por policiais após ingresso forçado em residência, com base exclusivamente em denúncia anônima sobre tráfico de drogas no local. Os agentes relataram ter visto uma arma e drogas quando ainda estavam do lado de fora; entretanto, para o colegiado, a dinâmica dos fatos leva à conclusão de que só seria possível essa confirmação se os policiais já estivessem dentro da casa.
De acordo com os ministros, embora os agentes da polícia tenham encontrado itens que indicassem a traficância no local, foi comprovado nos autos que eles não fizeram investigação prévia para averiguar se a denúncia era atual e robusta – o que transformou a descoberta da situação de flagrante em mero acaso.
Após o recebimento da denúncia anônima, os policiais foram ao endereço e abordaram o acusado na saída da residência, encontrando com ele quase R$ 3 mil em espécie. Os agentes afirmaram ter visto durante a abordagem, pela porta entreaberta, a arma de fogo e os entorpecentes sobre uma mesa, o que motivou o ingresso no domicílio, onde disseram ter encontrado também uma balança de precisão e mais dinheiro em espécie.
Policiais não podem agir à margem da Constituição
Para o relator no STJ, ministro Sebastião Reis Júnior, ao contrário do entendimento das instâncias ordinárias, não ficou demonstrado nos autos que a suspeita dos policiais tenha sido devidamente justificada. Segundo ele, a foto da casa apresentada pela defesa indica que seria bastante difícil que os policiais, do lado de fora, enxergassem a arma e a droga no interior.
“É consabido que a existência de denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos da prática de crime, não constitui fundada suspeita e, portanto, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado”, argumentou.
O objetivo de combate ao crime, declarou o magistrado, não justifica a violação “virtuosa” da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio (artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal); do mesmo modo, a apreensão de drogas e arma não legitima a ação policial à margem da Constituição.
Crime permanente não justifica, por si só, a busca domiciliar sem mandado
Sebastião Reis Júnior mencionou, ainda, precedentes do STJ no sentido de que, nos crimes permanentes – como o tráfico de drogas –, o estado de flagrância avança no tempo, mas esse fato não é suficiente para justificar a busca domiciliar desprovida de mandado judicial. O ministro lembrou que é essencial a demonstração de indícios mínimos de que, naquele momento, dentro da residência, há uma situação de flagrante delito.
“O constrangimento ilegal suportado pelo paciente é manifesto, tendo sido demonstrada a ilicitude da busca domiciliar”, afirmou o relator ao anular o flagrante, reconhecer a nulidade das provas e revogar a prisão preventiva.
O recurso ficou assim ementado:
HABEAS CORPUS. ARTS. 33, 35 E 40, III, DA LEI N. 11.343/2006 E 12 DA LEI N. 10.826/2003. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. OCORRÊNCIA. FALTA DE INVESTIGAÇÃO PRÉVIA OU CONTEXTO FÁTICO APTO A SUBSIDIAR A CONVICÇÃO OU MESMO FUNDADA SUSPEITA DA PRÁTICA DE CRIME PERMANENTE NO LOCAL. ILICITUDE DA PROVA OBTIDA (APREENSÃO DE DROGA E ARMA DE FOGO) E DAQUELAS QUE DELA DERIVARAM. REVOGAÇÃO DA PRISÃO 1. Esta Corte tem entendido, quanto ao ingresso forçado em domicílio, que não é suficiente a ocorrência de um crime permanente, sendo necessárias fundadas razões de que um delito está sendo cometido para assim justificar a entrada na residência do agente.
2. No caso, verifica-se que o ingresso no domicílio do paciente foi amparado tão somente em denúncia anônima, sem referência a prévia investigação, monitoramento ou campanas a indicar que se tratava de averiguação de comunicação robusta e atual acerca da ocorrência de tráfico naquele local.
3. Ordem concedida para reconhecer a nulidade do flagrante em razão da violação de domicílio e, por conseguinte, das provas obtidas em decorrência do ato, revogando-se a prisão preventiva do paciente, salvo se por outras razões estiver detido (Processo n. 5005205-21.2021.8.21.0165, em curso na Vara Judicial da comarca de Eldorado do Sul/RS).