Imigrantes em situação de pobreza, residentes em território catarinense, terão direito a isenção de emolumentos nas traduções juramentadas, exigidas pelas autoridades para obtenção de documentos capazes de lhes garantir acesso ao pleno exercício da cidadania. A decisão partiu do desembargador Pedro Manoel Abreu, ao analisar pedido liminar em agravo de instrumento interposto pelo Ministério Público (MP) ao Tribunal de Justiça.
Em ação civil pública que tramita na comarca de Chapecó, o MP pleiteou tal direito ao justificar o alto custo das traduções juramentadas, que podem alcançar de R$ 100 a R$ 300, valores ainda mais caros quando suportados por imigrantes vulneráveis socialmente, oriundos de realidades violentas, dramáticas e traumáticas, como por exemplo haitianos e venezuelanos. Expôs ainda a existência de 88 mil estrangeiros no Estado – quarta unidade da Federação que mais recebeu venezuelanos em 2018.
O juízo de origem, contudo, negou a tutela provisória ao entender que as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, para ingressar no mercado de trabalho ou mesmo na educação formal, compõem na verdade um quadro de \”cronicidade manifesta\”. Acrescentou ainda a impossibilidade de criar programas sociais de inclusão à revelia do Poder Executivo.
No âmbito do TJ a matéria recebeu interpretação diversa. Para o desembargador Pedro Abreu, a questão de facilitar o acesso dos imigrantes à cidadania coloca em jogo a dignidade da pessoa humana, ao vulnerar notadamente o direito à felicidade – como expressão do bem-estar social, pois se não obtiveram estudo e colocação logo estarão nas ruas, na informalidade, ou ainda ao “deus-dará”.
A pobreza extrema, acrescentou, é improdutiva, indesejável e deve ser evitada para que se concretize a promessa constitucional, independente de sua origem. Para o relator, nenhum migrante, ocioso ou na informalidade, gera riqueza ou é capaz de contribuir para a consecução dos fins do Estado. Em contrapartida, destaca, o acesso ao emprego induz o crescimento econômico-social, remove pessoas das ruas e da indignidade ou de eventual dependência de ações estatais. “No caso concreto, o Estado terá despesa inicial com as traduções, todavia terá contrapartida social, pois essas pessoas terão acesso a bens e tornar-se-ão produtivas”, afirmou.
Sua decisão, em caráter liminar, determina que o Estado, através da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Sustentável e da Junta Comercial do Estado (Jucesc), garanta a isenção de emolumentos das traduções juramentadas quando se destinarem a imigrantes hipossuficientes residentes no Estado – e não somente em Chapecó, sob pena de sequestro de valores públicos no valor necessário ao custeio de cada ato para cada imigrante, a ser executado no 1º grau de jurisdição, respeitada a competência territorial das comarcas atendidas. O agravo de instrumento ainda será objeto de análise em órgão colegiado do próprio TJ.
O recurso ficou assim ementado:
AGRAVO DE INSTRUMENTO E AGRAVO INTERNO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MIGRANTES HIPOSSUFICIENTES. SITUAÇÃO ORIGINADA NO MUNICÍPIO DE CHAPECÓ. CUSTOS DOS ATOS DE TRADUÇÃO JURAMENTADA DE DOCUMENTOS ESTRANGEIROS QUE CONSTITUEM VERADEIRO ÓBICE AO EXERCÍCIO DA CIDADANIA. INADMISSIBILIDADE. COMPETÊNCIA COMUM DOS ENTES FEDERADOS (CF, ART. 23, X). ALEGADA ILEGITMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DO ESTADO DE SANTA CATARINA, QUE POR SUA VEZ AFIRMA QUE A JUNTA COMERCIAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA – JUCESC, DEVERIA INTEGRAR EXCLUSIVAMENTE O POLO PASSIVO DA AÇÃO, POIS É ESTA QUEM ESTIPULA OS EMOLUMENTOS DOS TRADUTORES JURAMENTADOS, QUE SÃO AGENTES DELEGADOS DO PODER PÚBLICO, SEM QUALQUER VÍNCULO COM ESTE E SEM QUE SE SUBMETAM AO REGIME ESTATUTÁRIO. INOCORRÊNCIA E IRRELEVÂNCIA, POIS O ESCOPO DA DEMANDA NÃO É A ESTIPULAÇÃO DOS EMOLUMENTOS, MAS O PAGAMENTO DESTES, PELO ESTADO, DECORRENTE DE OBRIGAÇÃO LEGAL. INTELIGÊNCIA DAS DISPOSIÇÕES DA LEI N. 13.445/2017. APROVAÇÃO NO CURSO DESTE AGRAVO, DA LEI ESTADUAL N. 18.018, DE 09 DE OUTUBRO DE 2020, ESTABELECENDO A POLÍTICA ESTADUAL PARA A POPULAÇÃO MIGRANTE. OBRIGAÇÃO EVIDENCIADA. DECISÃO QUE NÃO SE CIRCUNSCREVE APENAS AOS LIMITES TERRITORIAIS DO MUNICÍPIO DE CHAPECÓ. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO PROVIDO. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO.
‘NOSSO REGIME POLÍTICO É A DEMOCRACIA E ASSIM SE CHAMA PORQUE BUSCA A UTILIDADE DO MAIOR NÚMERO E NÃO A VANTAGEM DE ALGUNS. TODOS SOMOS IGUAIS PERANTE A LEI, E QUANDO A REPÚBLICA OUTORGA HONRARIAS O FAZ PARA RECOMPENSAR VIRTUDES E NÃO PARA CONSAGRAR PRIVILÉGIOS. NOSSA CIDADE SE ACHA ABERTA A TODOS OS HOMENS. NENHUMA LEI PROÍBE NELA A ENTRADA DE ESTRANGEIROS, NEM OS PRIVA DE NOSSAS INSTITUIÇÕES, NEM DE NOSSOS ESPETÁCULOS; NADA HÁ EM ATENAS OCULTO E PERMITE-SE A TODOS QUE VEJAM E APRENDAM NELA O QUE BEM QUISEREM SEM ESCONDER-LHES SEQUER AQUELAS COISAS, CUJO CONHECIMENTO POSSA SER DE PROVEITO PARA OS NOSSOS INIMIGOS, PORQUANTO CONFIAMOS PARA VENCER, NÃO EM PREPARATIVOS MISTERIOSOS, NEM EM ARDIS E ESTRATAGEMAS, SENÃO EM NOSSO VALOR E EM NOSSA INTELIGÊNCIA’ (PÉRICLES).
‘A FELICIDADE NECESSITA IGUALMENTE DOS BENS EXTERIORES, POIS É IMPOSSÍVEL, OU PELO MENOS NÃO É FÁCIL, PRATICAR AÇÕES NOBRES SEM OS DEVIDOS MEIOS (…) A RESPOSTA À QUESTÃO QUE ESTAMOS LEVANTANDO FICA EVIDENTE PELA NOSSA NOÇÃO DE FELICIDADE, POIS DISSEMOS QUE ELA É UMA CERTA ATIVIDADE DA ALMA CONFORME À VIRTUDE. DOS OUTROS BENS, ALGUNS DEVEM NECESSARIAMENTE ESTAR PRESENTES COMO CONDIÇÕES PRÉVIAS DA FELICIDADE, E OUTROS SÃO NATURALMENTE COADJUVANTES E ÚTEIS COMO INSTRUMENTOS. E VÊ-SE QUE ESTA CONCLUSÃO ESTÁ EM CONFORMIDADE COM O QUE DIZÍAMOS NO INÍCIO, ISTO É, QUE A FINALIDADE DA VIDA POLÍTICA É O MELHOR DOS FINS, E QUE O PRINCIPAL EMPENHO DESSA CIÊNCIA É FAZER COM QUE OS CIDADÃOS SEJAM BONS E CAPAZES DE NOBRES AÇÕES’ (ARISTÓTELES).
Agravo de Instrumento n. 50002252820198240000