Mantida condenação da Liesa a devolver valores recebidos com venda de ingressos no Carnaval de 1995

A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que condenou a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) a ressarcir ao município do Rio a receita da venda de ingressos dos desfiles das escolas de samba do Carnaval de 1995. O valor deverá ser pago de forma corrigida, incidindo juros moratórios legais desde a data da citação.

A decisão teve origem em dois processos: uma ação popular e uma ação civil pública ajuizadas com o objetivo de anular o contrato pelo qual o município transferiu à Liesa, sem licitação e com exclusividade, as atribuições de administrar, organizar e promover o desfile das escolas do grupo especial na Marquês de Sapucaí em 1995.

Para o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), a contratação mediante inexigibilidade de licitação não se justifica, já que não houve comprovação da alegada capacidade técnica e financeira da Liesa para administrar os desfiles.

O MPRJ também apontou irregularidades quanto à omissão em exigir provas da habilitação jurídica e da regularidade fiscal da contratada, além da irregular dispensa de elaboração do projeto básico de serviço, o que permitiu que a Liesa estabelecesse cláusulas que a favoreciam de forma desproporcional, culminando com a celebração de um contrato que lhe reservou uma participação da ordem de 74% sobre a renda apurada com a venda dos ingressos.

Única e exclusiva

O município do Rio alegou que a contratada seria a única e exclusiva entidade nacional habilitada para promover os desfiles do grupo especial, o que justificaria a inexigibilidade de licitação. Alegou também que não houve lesão ao erário, conforme atestado pela aprovação das contas no Tribunal de Contas do Município (TCM/RJ).

A Liesa afirmou que, se a legalidade do procedimento foi corroborada pelo TCM/RJ, não poderia o Judiciário intervir no mérito administrativo.

Súmula 7

Ao decidir a matéria, de relatoria do ministro Francisco Falcão, a Segunda Turma do STJ lembrou que, em recurso especial, o tribunal não pode atuar como instância revisora ou de apelação para rever fatos e provas, conforme determina a Súmula 7.

“O acórdão recorrido considerou que a contratação da Liesa, sem licitação, para a prestação da atividade carnavalesca, com uso de espaço público e exploração total do evento, abrangia dois tópicos diferenciados, e no que diz respeito ao serviço de gestão de eventos, não se vislumbraria a característica de serviço técnico especializado para o fim de dispensa de licitação”, afirmou o relator.

Para rever os fundamentos do TJRJ, explicou Falcão, seria indispensável reexaminar as provas do processo, o que não é possível em recurso especial. Da mesma forma, disse ele, o STJ não tem como examinar os questionamentos quanto ao suposto enriquecimento sem causa do município e quanto aos resultados financeiros da Liesa, pois o tribunal de origem decidiu pelo ressarcimento aos cofres públicos com base em documentos e laudo pericial.

Conforme o pedido

Além disso, o colegiado ressaltou que foi observado exatamente o pedido contido no processo, não ficando evidenciada qualquer irregularidade no julgamento, sendo, portanto, irretocável o conteúdo do acórdão.

“Não se antevê decisão extra petita, ou seja, julgamento dissociado do pedido contido na petição inicial, mas, ao contrário, observou-se exatamente o pedido”, disse o relator, lembrando que a ação buscava a declaração de nulidade do contrato administrativo e a condenação da Liesa à perda, em favor do município, de toda vantagem econômica e financeira dele resultante.

“Ao analisar exatamente o objeto das duas ações, relativamente ao contrato firmado entre as partes em questão, o decisum entendeu por anulá-lo, tendo como uma das motivações o fato de ter outorgado à Liesa o direito de apropriar-se de grande parte do conteúdo econômico das festividades do Sambódromo, com uma distribuição de receita desproporcional”, declarou o relator.

O recurso ficou assim ementado:

ADMINISTRATIVO. ATO DE IMPROBIDADE. LICITAÇÕES. CONTRATO ADMINISTRATIVO. INDEVIDA DISPENSA DE LICITAÇÃO. ALEGAÇÕES DE VIOLAÇÃO DOS ARTS. 165, 458, II E 535, I E II, DO CPC⁄73. ARTS. 128 E 460, DO CPC⁄73. ART. 25, CAPUT E INCS. II E III, DA LEI N. 8.666⁄1993; OS ARTS. 5º, INC. VIII, H, 6º, 17, § 2º, 22, 28 E 49, INC. II, DA LEI N. 9.610⁄1998; OS ARTS. 332, 333, INCS. I E II, 334, INC. IV, 368, 372, 379 E 380, DO CPC⁄73. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO. PRETENSÃO DE REEXAME FÁTICO PROBATÓRIO.
I – O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ajuizou ação civil pública contra o Município do Rio de Janeiro,  a Empresa de Turismo do Rio de Janeiro – RIOTUR e a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro – LIESA, com o objetivo de anular o contrato firmado entre a Prefeitura e a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, que transferiu à LIESA as atribuições exclusivas para administrar, organizar e promover os desfiles das Escolas de Samba do Grupo Especial no ano de 1995, sem que tenha havido licitação e com grave lesão ao erário.
II – Ajuizada ação popular com o mesmo objetivo, na qual o Ministério Público assumiu a titularidade após o autor não se manifestar, ambas as ações foram reunidas e apreciadas em conjunto, culminando com a improcedência dos pedidos pelo juízo singular (fls.  585-591).
III – Apreciando o recurso de apelação ofertado pelo Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro deu-lhe provimento.
IV – A Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro – LIESA, com fundamento no art. 105, III, a da Constituição Federal, aduz violação dos arts. 165, 458, II e 535, I e II, do CPC⁄73, na medida em que o colegiado a quo teria se omitido acerca de fundamentos necessários ao deslinde da causa e, ainda, padecido de contradição e obscuridade, tudo apontado às fls. 1047-1052, e que não teria relatado os argumentos apresentados pelos réus em suas defesas, o que acarretou na ausência de delineação da matéria a ser analisada.
V – Invoca descumprimento dos arts. 128 e 460, do CPC⁄73, sustentando que o fundamento central do julgado foi estruturado a partir de matéria estranha ao objeto da causa, relativamente à cisão do objeto do contrato firmado entre as partes, o que teria afrontado o princípio da ampla defesa e do contraditório e, ainda, culminado em  julgamento extra petita em razão da condenação de maneira diversa dos limites estabelecidos na inicial, quais sejam a anulação do contrato e a apuração de efetiva vantagem econômica e financeira por parte da entidade.
VI – Afirma afrontado o art. 25, caput e incs. II e III, da Lei n. 8.666⁄1993; os arts. 5º, inc. VIII, h, 6º, 17, § 2º, 22, 28 e 49, inc. II, da Lei n. 9.610⁄1998; os arts. 332, 333, incs. I e II, 334, inc. IV, 368, 372, 379 e 380, do CPC⁄73.
VII – O Município do Rio de Janeiro, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição Federal, alega violação do art. 25 da Lei n. 8.666⁄93, também sob o argumento de ser inexigível a licitação in casu, pois a competição seria inviável, em razão da singularidade artística e da própria produção de todo o evento.
VIII – A RIOTUR, fundamentada no art. 105, III, a, da Constituição Federal, sustenta violação do art. 535, I e II, do CPC⁄73, alegando que o Tribunal a quo, a despeito da oposição dos embargos de declaração, não teria enfrentado as matérias por ela deduzidas em sede de defesa que aponta em seu apelo especial. Por fim, também invoca afronta ao art. 25, da Lei n. 8.666⁄93, suscitando a mesma motivação já esposada pelo Ministério Público.
IX – O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não conhecimento dos recursos (fls. 1.375-1.377). Em decisão monocrática não se conheceram dos recursos. O processo ficou sobrestado por prazo superior a seis meses (fls. 1743).
X – Em relação à indicada violação dos arts. 165, 458 e 535, todos do  CPC⁄73, e também apontadas no recurso da RIOTUR, não se vislumbram as máculas alegadas, tendo o julgador abordado a controvérsia tal qual lhe fora colocada, em análise dos pedidos de nulidade do contrato e consequente reembolso ao erário, deixando claros os elementos de convicção que rechaçaram a tese de defesa apresentada pela ora recorrente.
XI – Inclusive, ao contrário do que alega a recorrente, o magistrado a quo discorreu sobre as teses de defesa apresentadas pelos réus, conforme se constata claramente da parte expositiva do acórdão recorrido (fls. 703-705).
XII – Nesse panorama, a oposição dos embargos declaratórios caracterizou, tão somente, a irresignação da embargante diante de decisão contrária aos seus interesses, o que não viabiliza o referido recurso.
XIII – Não se evidenciando as máculas apontadas, afasta-se a suposta violação dos dispositivos do CPC⁄73, conforme pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
XIV – Sobre a apontada violação dos arts. 128 e 460 do CPC⁄73, sob o argumento de que ao fazer a cisão do contrato a decisão teria sido extra petita, pois trataria de objeto estranho à lide, o inconformismo se apresenta de  todo impertinente.
XV – Ao analisar exatamente o objeto das duas ações, relativamente ao contrato firmado entre as partes em questão, o decisum, entendeu por anula-lo, tendo como uma das motivações o fato de ter outorgado à LIESA o direito de apropriar-se de grande parte do conteúdo econômico das festividades do Sambódromo, com uma distribuição de receita desproporcional.
XVI – Não se antevê decisão extra petita, ou seja, julgamento dissociado do pedido contido na petição inicial, mas, ao contrário, observou-se exatamente o pedido. A alegada “cisão do contrato” foi apenas uma forma como o magistrado encontrou de vislumbrar a questão, o que não malfere o citado dispositivo.
XVII – Já quando opôs embargos de declaração, a própria recorrente afirmava que a pretensão manifestada na presente demanda dizia respeito à (fl. 803): “declaração de nulidade e consequente nulidade do Contrato Administrativo 1531⁄94; bem como a condenação da LIESA à perda, em favor do MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO, de qualquer vantagem econômica e financeira resultante de atos praticados em razão do aludido negócio jurídico”.
XVIII – Não há dúvida de que o magistrado manteve-se nos limites estabelecidos na lide. No sentido é a jurisprudência deste Tribunal: AgInt no AREsp 909.233⁄PR, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 16⁄05⁄2017, DJe 23⁄05⁄2017; REsp 1655395⁄SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 06⁄04⁄2017, DJe 25⁄04⁄2017.
XIX – No que diz respeito à alegação de afronta ao art. 25 da Lei de Licitações, inconformismo esposado também nos recursos especiais da RIOTUR e do Município do Rio de Janeiro, o acórdão recorrido considerou que a contratação da LIESA, sem licitação, para a prestação da atividade carnavalesca, com uso de espaço público e exploração total do evento, abrangia dois tópicos diferenciados, e no que diz respeito ao serviço de gestão de eventos, não se vislumbraria a característica de serviço técnico especializado para o fim de dispensa de licitação.
XX – Como se pode notar, a irresignação da recorrente vai de encontro às convicções do julgador a quo, fundamentadas com lastro no conjunto probatório constante dos autos e, nesse diapasão, para rever tal posição e interpretar os dispositivos legais indicados como violados, seria necessário o reexame desses mesmos elementos fático-probatórios, o que é vedado no âmbito estreito do recurso especial. Incide na hipótese a Súmula n. 7⁄STJ. A título exemplificativo: AgRg no AREsp 442.441⁄PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18⁄08⁄2015, DJe 25⁄08⁄2015; AgInt nos EDcl no REsp 1464591⁄DF, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 04⁄04⁄2017, DJe 11⁄04⁄2017.
XXI – O mesmo ocorre no que diz respeito à indicada violação do art. 884 do Código Civil e do art. 65, II, d, da Lei n. 8.666⁄93, no tocante a suposto enriquecimento sem causa do Município, bem como dos arts. 332, 333, I e II, 334, IV, 368, 372, 379 e 380, do CPC⁄73, relacionado ao resultado financeiro da LIESA.
XXII – Ao decidir pelo ressarcimento aos cofres públicos, inclusive com a exposição dos respectivos valores, e à consideração de que “[…] a distribuição das receitas tenha sido feita de forma tão desproporcional” (fl. 728), o acórdão recorrido valeu-se da documentação ofertada e de laudo pericial.
XXIII – No âmbito do recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça não pode ser considerado como instância revisora ou de apelação para rever tal entendimento e interpretar os dispositivos legais indicados como violados, não sendo possível afastar o óbice contido na Súmula n. 7⁄STJ.
XXIV – Por fim, quanto à matéria relativa à suposta afronta a dispositivos da Lei n. 9.610⁄98, que versa sobre direitos autorais, mostra-se imperiosa a constatação de ausência de prequestionamento.
XXV – A questão foi abordada pela ora recorrente somente em sede de  embargos declaratórios, não se prestando referido recurso para inovação de matéria, o que justifica, o afastamento de violação do art. 535 do CPC. Incidem, portanto o enunciado n. 211 desta Corte, segundo o qual: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo”.
XXVI – Agravo interno improvido.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1626573

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