As múltiplas mulheres representadas na jurisprudência do Tribunal da Cidadania

Oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975, o Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, marca as conquistas políticas e sociais das mulheres ao longo do tempo, bem como reforça a necessidade de mobilização por mais direitos, pelo fim da violência e pela promoção da equidade de gênero.

Ainda que haja grandes pautas em comum, a luta de cada mulher pode também incluir múltiplas particularidades: se ela é negra, existe o racismo; se é mãe, tem de vencer barreiras para conciliar a vida profissional; se é mulher trans, a batalha é pelo direito elementar de ser reconhecida como mulher.

Muitas dessas lutas têm como palco o Judiciário, que deve olhar cada caso com a perspectiva de gênero que o senso de equidade requer, conforme a Resolução 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Para contribuir com esse imperativo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) lançou, em dezembro de 2024, a publicação digital Visão do STJ – Julgamentos com Perspectiva de Gênero, que reúne doutrina e jurisprudência sobre o tema e está disponível na Biblioteca Digital Jurídica (BDJur).

O material, direcionado prioritariamente ao público interno do STJ, especialmente às equipes dos gabinetes de ministros, tem o objetivo de otimizar o julgamento dos processos a partir das principais questões já definidas pela corte.

Clique na imagem abaixo para assistir ao vídeo sobre as ministras que integram ou integraram o Tribunal da Cidadania:

Conheça, a seguir, alguns julgamentos marcantes do tribunal caracterizados pela perspectiva de gênero na aplicação do direito.

Lei Maria da Penha é aplicável à violência contra mulher trans

Ao destacar que o objetivo da Lei Maria da Penha é combater a violência contra a mulher em virtude do gênero, e não em razão do sexo, a Sexta Turma estabeleceu que suas normas igualmente se aplicam aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais.

O colegiado deu provimento a um recurso do Ministério Público de São Paulo e determinou a aplicação das medidas protetivas requeridas por uma transexual, nos termos do artigo 22 da Lei 11.340/2006, após ela sofrer agressões do seu pai na residência da família. As instâncias ordinárias haviam negado a aplicação da lei ao entendimento de que o seu alcance seria limitado à condição de mulher biológica. O caso correu sob segredo de justiça.

Em seu voto, o relator do caso, ministro Rogerio Schietti Cruz, explicou que “gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres”, enquanto sexo se refere às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, de modo que, para ele, o conceito de sexo “não define a identidade de g

O conceito de gênero não pode ser empregado sem que se saiba exatamente o seu significado e acabe por desproteger justamente quem a Lei Maria da Penha deve proteger: mulheres, crianças, jovens, adultas ou idosas e, no caso, também as trans.
Processo em segredo de justiça

Ministro Rogerio Schietti Cruz

Para o ministro, a Lei Maria da Penha não faz considerações sobre a motivação do agressor, mas apenas exige, para sua aplicação, que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico e familiar ou no contexto de relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida.

Remarcação de curso de formação para candidata lactante

Apesar de não ser possível remarcar provas de concurso público em razão de circunstâncias pessoais dos candidatos, a jurisprudência do STJ garante o direito de remarcação do teste de aptidão física às candidatas grávidas, em consonância com orientação do Supremo Tribunal Federal (STF) fixada no julgamento do RE 1.058.333, com repercussão geral (Tema 973).

Em 2019, no julgamento do RMS 52.622, os ministros da Primeira Turma ampliaram essa possibilidade e asseguraram a participação de uma candidata lactante no curso de formação e nas demais etapas de concurso para agente penitenciário em Minas Gerais.

A candidata estava em licença-maternidade na época em que foi convocada para a sexta etapa do certame – o curso de formação –, mas se sentiu impedida de realizar o curso devido à sua condição física. Por meio de liminar, ela realizou o curso posteriormente, mas o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) entendeu que não haveria o direito à remarcação de provas, pois o edital do concurso vedava tratamento diferenciado a qualquer candidato.

O relator do caso no STJ, ministro Gurgel de Faria, destacou que a candidata lactante é merecedora do mesmo amparo estabelecido pelo STF para as gestantes, uma vez que a Constituição Federal garante o direito à saúde, à maternidade, à família e ao planejamento familiar. O ministro sublinhou que, embora a concorrente não estivesse mais grávida, ela estava em licença-maternidade e sua filha tinha apenas um mês de vida quando o curso começou.

Palavra da vítima tem especial relevância nos casos de violência doméstica

A jurisprudência do tribunal firmou orientação no sentido de que, em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a palavra da vítima tem especial relevância, uma vez que muitos desses fatos ocorrem em situação de clandestinidade.

A violência de gênero contra as mulheres é um dos meios pelos quais a assimetria de poder estrutural e os papéis estereotipados são perpetuados. Imprescindível que o Poder Judiciário utilize as lentes de gênero na interpretação do direito.

APn 902

Ministro Sebastião Reis Junior

Esse entendimento foi aplicado pela Corte Especial em 2024, no julgamento da APn 902, para condenar um desembargador por violência doméstica cometida contra a sua companheira em 2017.

Para o relator do caso, ministro Sebastião Reis Junior, a violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar é comumente praticada na ausência de testemunhas. “Nesse ponto, é imperioso frisar que as declarações da ofendida podem fundamentar decreto condenatório, desde que sejam seguras e harmônicas com os demais elementos de convicção”, disse.

Plano de saúde deve cobrir operação de mudança de sexo para mulher trans

Em 2023, a Terceira Turma considerou que os procedimentos de redesignação sexual, reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), não podem ser considerados apenas estéticos.

Com esse entendimento, o colegiado decidiu, no REsp 2.097.812, que as operadoras de planos de saúde têm a obrigação de custear cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses para mulheres transexuais.

Leia também: Terceira Turma determina que plano de saúde cubra operação de mudança de sexo para mulher transexual

Entre outros fundamentos, a relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, levou em conta que tais procedimentos são reconhecidos pelo CFM como de afirmação de gênero e foram incorporados ao SUS, com indicação para o processo transexualizador.

A ministra ponderou que esses fatos atestam a existência de evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança dos procedimentos, conforme interpretação do artigo 19-Q, parágrafo 2º, incisos I e II, da Lei 8.080/1990.

Prisão domiciliar para mãe de crianças pequenas durante enchentes no RS

Desde a aprovação do Estatuto da Primeira Infância, em 2016, o STJ tem analisado muitos casos de mães ou gestantes que pedem o benefício da prisão domiciliar. A lei alterou o artigo 318 do Código de Processo Penal (CPP) para possibilitar a conversão da prisão preventiva em regime domiciliar no caso de mulheres gestantes ou com filhos de até 12 anos incompletos.

Essa possibilidade se consolidou a partir do julgamento do HC 143.641, em 20 de fevereiro de 2018, quando os ministros do STF concederam ordem coletiva para substituir por domiciliar a prisão preventiva de gestantes, puérperas ou mães de crianças de até 12 anos ou de deficientes.

No RHC 191.995, julgado em maio de 2024, a Quinta Turma do STJ concedeu regime domiciliar para que uma mulher, presa por tráfico de drogas, pudesse cuidar de duas filhas durante a calamidade pública provocada pelas chuvas no Rio Grande do Sul. O tribunal estadual havia negado o pedido ao fundamento de que não haveria evidências claras de que a acusada detinha a guarda das crianças.

A superlotação e as condições muitas vezes precárias das prisões podem se tornar ainda mais problemáticas durante uma calamidade. Questões como higiene precária, acesso limitado a cuidados médicos e a impossibilidade de manter o distanciamento social podem transformar as prisões em focos de propagação de doenças.

RHC 191.995

Ministra Daniela Teixeira

Na avaliação da relatora, ministra Daniela Teixeira, “eventos como pandemias, catástrofes naturais ou emergências em larga escala exigem uma reavaliação das prioridades e capacidades do sistema prisional”. Para a ministra, a prisão domiciliar da mãe junto às suas filhas conciliava a contenção do direito de ir e vir da acusada, o que a impedia de eventualmente voltar a cometer delitos, e a convivência necessária com as crianças.

Corte manteve ação contra dirigente acusado de discriminar mulher negra

Se o fato de ser mulher impõe a necessidade de uma luta diária contra a discriminação, ser mulher negra faz dessa luta um esforço dobrado.

Em 2005, a Sexta Turma analisou um caso de suposto racismo na admissão de sócios por um clube de Uberaba (MG) e manteve a ação penal instaurada contra o presidente da entidade, acusado de impedir que um casal adquirisse cotas do estabelecimento e compusesse o quadro social devido ao fato de a mulher ser negra.

No julgamento do RHC 12.890, o colegiado definiu que a recusa de admissão no quadro associativo de clube social, em razão de preconceito de raça ou de cor, caracteriza o tipo penal do artigo 9º da Lei 7.716/1989. Para os ministros, a expressão “impedir o acesso” constante no dispositivo legal se refere tanto a barrar a entrada nas dependências físicas do estabelecimento quanto a negar a admissão no respectivo quadro associativo, o que autorizava o prosseguimento do processo penal.

De acordo com os autos, as tratativas corriam normalmente por telefone, até que a interessada foi pessoalmente concluir a negociação das cotas e, a partir de então, os representantes do clube passaram a recusar sua admissão e a de seus familiares. De acordo com as informações da denúncia oferecida pelo Ministério Público, um dos representantes da entidade chegou a afirmar que os vendedores das cotas foram orientados pelo presidente a não negociar com negros.

O dirigente alegou que o clube era uma entidade fechada, frequentada apenas pelos associados, e que a diretoria, com base no estatuto, poderia aceitar ou recusar as propostas de ingresso sem indicar motivos.

Para o relator do caso, ministro Hamilton Carvalhido (falecido), “a faculdade, estatutariamente atribuída à diretoria, de recusar propostas de admissão em clube social, sem declinação dos motivos, não lhe atribui a natureza especial de fechado, de maneira a subtraí-lo da incidência da lei”.

Veja o vídeo divulgado nas redes sociais do STJ em homenagem às servidoras, colaboradoras e estagiárias que contribuem diariamente para que o tribunal possa seguir cumprindo sua missão constitucional:

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