A 8ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), por unanimidade, aumentou, de R$ 2 mil para R$ 5 mil, a pena de multa destinada ao Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos, a título de dano moral coletivo, por ofensas proferidas por A.F.G. na plataforma YouTube. O homem já havia sido condenado pela Justiça Federal em razão de manifestações injuriosas e discriminatórias publicadas na rede mundial de computadores, nas quais homossexuais foram referidos como “aberração” e “desgraça da espécie humana”. A relatora do caso no TRF2 é a desembargadora federal Vera Lúcia Lima.
Em março de 2019, o Ministério Público Federal (MPF) moveu ação civil pública e detalhou a existência de vídeo gravado por A.F.G. e compartilhado nas redes sociais, no qual ele discorre sobre sentença da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos da Comarca de Campo Grande (MS), que havia condenado um jornalista ao pagamento de danos morais coletivos, devido à divulgação de discurso homofóbico na rede mundial de computadores. Em vídeo publicado no canal Youtube, A.F.G. afirmou: “como é que uma raça dessa ainda se sente ofendida? Eles são a própria ofensa em pessoa! Vocês, quando saem na rua, vocês enojam a sociedade. Vocês ficam se lambendo pela rua, a coisa mais nojenta, a coisa mais abominável… Vocês são a aberração! Vocês são a desgraça da espécie humana, se é que podemos chamar vocês de ser humano. […] Tem que pegar uma Aids, já que vocês são hospedeiros de doença. Tem que pegar uma Aids e morrer, miserável. Baixar no inferno.”
Ainda segundo a ação, A.F.G. afirmou no vídeo: “A gente morre, a gente não nega nossos princípios e valores, que são a Causa de Jesus Cristo. Homossexualismo é possessão demoníaca, o final é o inferno […] Processa a Geração Jesus Cristo, que a gente pega seu processo e joga no lixo. Vem na porta da nossa igreja pra você ver. […] Faz o que você quiser que a gente tá cuspindo na Constituição. A gente tá cuspindo na lei dos homens […] Nós seguimos é a Bíblia, que é lei de Deus. Fica aqui a minha indignação, seu bando de desgraçados, miseráveis”.
A relatora do caso no TRF2, desembargadora Federal Vera Lúcia Lima, registrou em seu voto que “a fala emitida pelo réu no vídeo transcende uma simples ´opinião´, de modo que não se ampara no direito à liberdade expressão, pensamento ou religião. (…) As palavras e expressões proferidas pelo réu, quando dirigidas a qualquer grupo coletivamente identificado, atingem não apenas a honra, como também a igualdade e a dignidade da pessoa humana. O preceito fundamental de liberdade de expressão ou religião não consagra o ‘direito à incitação à homofobia´, pois um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, razão pela qual, na hipótese dos autos, impõe-se a prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade”, concluiu.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM, INÉPCIA DA INICIAL E AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR AFASTADAS. DIVULGAÇÃO DE VÍDEO NA INTERNET (“YOUTUBE”) CONTENDO OFENSAS À POPULAÇÃO HOMOSSEXUAL. DIREITO DIFUSO. DANO MORAL COLETIVO. QUANTUM MAJORADO.
– Cinge-se a controvérsia sobre a manutenção ou não da sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados na presente ação civil pública, para condenar o réu ao pagamento de indenização, a título de dano moral coletivo, fixada em R$ 2.000,00, destinada ao Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos, além das preliminares suscitadas pelo réu.
– Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face de Altair Francisco Genésio, em razão de vídeo publicado pelo réu na plataforma YouTube, em que profere discurso discriminatório contra a população homossexual.
– O Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, é órgão legitimado para a propositura de ação civil pública (art. 127 da CF/88 e art. 5º da Lei 7.347/85).
-A Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) prevê o ajuizamento de ação para apurar a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados a qualquer interesse difuso ou coletivo (art. 1º, IV).
– O direito à honra da população homossexual (e LGBT) configura direito difuso, e, portanto, é passível de tutela por meio de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal.
-Como bem exposto na sentença, “se um determinado grupo de pessoas é agredido de maneira coletiva, sem que haja destinatário especificado e individualizado, e essas agressões envolvam o pleno exercício de um direito constitucional, com alcance inclusive supranacional, ainda que potencial, como é o caso de postagens no sítio Youtube, cuido que o Ministério Público Federal é parte legítima para o ajuizamento da ação indenizatória respectiva”. (JFRJ, Evento 33, SENT1).
– Não há que se falar em inépcia da petição inicial ao argumento de que a lei da ação civil pública somente tutela direitos nela previstos, uma vez que a tutela exercida por meio da presente ação encontra previsão legal.
– A alegada falta de interesse, nesta hipótese específica, que consiste na ausência de direito à honra da população homossexual (e LGBT) constitui, na realidade, questão de mérito, a ser apreciada a seguir.
– No mérito, a discussão se restringe em aferir a existência ou não de violação A direitos fundamentais das pessoas homossexuais pelo réu, através de vídeo divulgado no YouTube. Trata-se, na realidade, de um confronto entre o direito à honra e o direito à livre manifestação do pensamento e da liberdade religiosa.
– Como não existem antinomias no plano constitucional, tampouco direito fundamental absoluto, para solucionar a colisão entre direitos da personalidade (intimidade, vida privada, honra, imagem) e o direito à liberdade (pensamento, expressão, informação, religião, política), deve ser realizado o sopesamento de valores e ponderação, privilegiando-se, em cada caso concreto, um direito fundamental em detrimento de outro, com auxílio do princípio da proporcionalidade.
– A fala emitida pelo réu no vídeo transcende uma simples ´opinião´, de modo que não se ampara no direito à liberdade expressão, pensamento ou religião.
– O eg. Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que a prerrogativa concernente à liberdade de manifestação do pensamento, por mais abrangente que deva ser o seu campo de incidência, não constitui meio que possa legitimar a veiculação de insultos ou de crimes contra a honra de terceiros, especialmente quando as expressões moralmente ofensivas transgridem valores tutelados pela própria ordem constitucional (STF, 2ª Turma, ARE 891.647 ED, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 21/09/2015).
– O pretório excelso também assentou que a liberdade religiosa e a de expressão constituem elementos fundantes da ordem constitucional e devem ser exercidas com observância dos demais direitos e garantias fundamentais, não alcançando, nessa ótica, condutas reveladoras de discriminação (STF, 1ª Turma, RHC 134.682, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 29/08/2017).
– As palavras e expressões proferidas pelo réu, quando dirigidas a qualquer grupo coletivamente identificado, atingem não apenas a honra, como também a igualdade e a dignidade da pessoa humana.
– O preceito fundamental de liberdade de expressão ou religião não consagra o ‘direito à incitação à homofobia’, pois um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, razão pela qual, na hipótese dos autos, impõe-se a prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
– O dano moral coletivo é aferível in re ipsa, ou seja, sua configuração decorre da mera constatação da prática de conduta ilícita que, de maneira injusta e intolerável, viole direitos de conteúdo extrapatrimonial da coletividade, revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral (STJ, 4ª Turma, REsp 1517973/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 01/02/2018).
– na espécie, a indenização restou estabelecida em R$ 2.000,00, ao argumento de que “à míngua de elementos expressivos da renda do réu, considerando que este reside na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, em rua do bairro de Vila Isabel, bastante próxima à comunidade do Morro dos Macacos, não se pode afirmar que detenha abastada condição financeira”. no entanto, A gravidade e a repercussão da ofensa exigem que o montante de R$ 2.000,00, arbitrado na sentença, seja majorado para R$ 5.000,00, conforme igualmente apontado no parecer ministerial, restando mais adequado, razoável e proporcional na hipótese em tela, sendo necessário e suficiente para compensar o abalo moral sofrido pela coletividade e levando em consideração o caráter pedagógico.
– Não há que se falar em condenação em honorários, seja diante da previsão do art. 18 da Lei 7.347/85, ou do entendimento jurisprudencial segundo o qual, por critério de simetria, não é cabível a condenação da parte vencida ao pagamento de honorários advocatícios em favor do Ministério Público nos autos de ação civil pública, salvo comprovada má-fé. Precedentes: STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 1386342/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell, julgado em 27/03/2014, DJe 02/04/2014; STJ, 1ª Turma, AgRg no AREsp 21.466/RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, julgado em 13/08/2013, DJe 22/08/2013).
-Apelação do réu desprovida e apelação do MPF parcialmente provida para majorar a indenização, a título de dano moral coletivo, para R$ 5.000,00 (cinco mil reais), nos termos da fundamentação supra.
Proc. 5011380-96.2019.4.02.5101