Marcado nas tintas de urucum e jenipapo, que formam diferentes traços no corpo para simbolizar a guerra, as festas ou a paz; entoado nos cânticos e rituais de comunhão com a terra e a natureza; simbolizado nos sagrados cocares de múltiplas penas coloridas: por trás de todos esses signos, está o espírito da nação pataxó, expressão de luta e resistência de um dos grupos indígenas mais importantes do Brasil.
No vocabulário pataxó, conhecido como Patxohã (Língua de Guerreiro), a palavra kamaiurá significa coragem. E assim, com coragem, o cacique pataxó Suruy tem a missão de comandar as 600 famílias que habitam a Terra Indígena Barra Velha, localizada no extremo sul da Bahia. Aos pés do Monte Pascoal, o primeiro ponto avistado por Pedro Álvares Cabral no Descobrimento, em 1500, as comunidades pataxós enfrentam há séculos o desafio de manter sua cultura e ancestralidade preservadas.
Com origens que remontam ao ano de 1767, a aldeia de Barra Velha encontra em sua terra uma conexão tão profunda quanto a sua espiritualidade, elementos que se misturam em rituais como os da chuva, da colheita e das celebrações de casamento. “O chão é tudo para a gente. A terra representa vida, representa amor, luta e sentido de vier. Nós viemos da terra”, resume o cacique Suruy.
Terra
Para os pataxós, a terra representa sobrevivência, já que o povo retira da agricultura uma parte de seu sustento. Entretanto, na área de 8.627 hectares atualmente demarcada como território indígena, os pataxós, além de encontrarem dificuldade para plantar, tiveram excluída da demarcação uma porção das terras tradicionalmente ocupada por eles.
“Apenas nesse espaço, fomos encurralados entre a restinga, o parque ambiental de Monte Pascoal e a beira-mar, onde não há condições de plantar. Então, para sobreviver, dependemos da pesca”, diz o cacique.
Nas questões relativas aos direitos indígenas, o Brasil garante proteção na própria Constituição Federal e em leis como o Estatuto do Índio. Ainda que as principais competências relativas à demarcação de terras indígenas sejam de responsabilidade do Poder Executivo, ao Judiciário são reservadas importantes atribuições quanto ao cumprimento das normas e à garantia dos direitos fundamentais dos índios.
E assim, em março deste ano, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi chamado a decidir sobre uma questão central para o futuro dos pataxós, os índios deixaram a aldeia litorânea e seguiram em direção à corte, em Brasília.
Luta
Em um ambiente normalmente dominado por togas e ternos, o cacique Suruy e vários outros membros da comunidade pataxó se apresentaram vestidos com tangas e pintados de vermelho para acompanhar o julgamento da Primeira Seção que discutia a possibilidade de prosseguimento de um processo administrativo de ampliação do território indígena de Barra Velha para aproximadamente 52 mil hectares.
Em trâmite no Ministério da Justiça, o processo foi iniciado porque o acordo original de demarcação, feito em 1991 pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (atual Ibama), havia fixado os limites da área indígena sem a realização de estudos técnicos que caracterizassem a ocupação tradicional do grupo indígena. Consequentemente, não foram verificados os verdadeiros limites da área ocupada pelos índios.
Relator dos mandados de segurança em julgamento na Primeira Seção, o ministro Gurgel de Faria mencionou relatórios técnicos que apontam que a comunidade pataxó nunca se conformou com a demarcação, que excluiu dos limites da terra áreas de mangue e grande parte da mata do Monte Pascoal – o que demonstra vício insanável no processo originário de delimitação do território.
“Em resumo, os elementos de prova acostados aos autos indicam a existência de esbulho territorial praticado contra os índios pataxós desde o período pré-colonial, a ocorrência de disputas fundiárias na região, a sobreposição de terra indígena sobre áreas de proteção ambiental, bem como de vícios administrativos que autorizam a revisão dos limites da terra indígena”, afirmou o relator ao garantir a continuidade do processo de revisão demarcatória, como desejavam os índios.
Espírito
Enquanto a decisão do STJ teve como base a Constituição, a legislação ordinária e a jurisprudência do STJ e do Supremo Tribunal Federal, o cacique Suruy atribui a vitória simplesmente a Niamisu, o Deus pataxó.
“A decisão foi muito importante para o nosso povo pataxó, mas também para outros povos que têm o mesmo problema territorial que a gente. Dormíamos e acordávamos pensando nesse julgamento. Lembro dos nossos velhos caciques, que já se foram, de todos os problemas que eles já enfrentaram e que nós enfrentamos, e do que esse julgamento representa para nós”, disse o líder indígena.
Para Suruy, a decisão do Tribunal da Cidadania renova a esperança de futuro para a comunidade pataxó na Bahia, que agora torce pela conclusão do processo de nova delimitação de suas terras.
“Com a ampliação da nossa reserva, vamos poder plantar e colher. Por isso foi importante a decisão da Justiça, importante para nossos kitokes [meninos] e nossas jokanas [mulheres]”, celebrou o cacique.
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