Para a Procuradoria, no caso de pacientes adultos e capazes, deve prevalecer a decisão do indivíduo, tendo como base garantias constitucionais. Sugestão de ADPF foi encaminhada ao procurador-geral
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, quer que o Conselho Federal de Medicina (CFM) adeque aos princípios constitucionais a Resolução CFM Nº 1.021/80 – que trata da recusa dos adeptos da religião Testemunha de Jeová em receberem transfusão sanguínea. Atualmente, a resolução obriga todo e qualquer paciente com risco iminente à vida a aceitar transfusão de sangue, independentemente de seu consentimento.
Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão a obrigatoriedade do procedimento só pode ser aplicada quando se tratar de criança, adolescente ou pessoa incapaz de exprimir a própria vontade e que não a tenha deixado expressa em documento ou outro meio idôneo. No caso de pacientes adultos e capazes, deve prevalecer a decisão do indivíduo – tendo como base os princípios constitucionais da liberdade de consciência e crença, a autonomia privada individual e os direitos à intimidade, privacidade, integridade física e psíquica, além da proibição da tortura.
“Obrigar qualquer cidadão plenamente capaz a receber transfusão de sangue contra sua vontade, ainda que em caso de iminente risco de vida, implica em violação a diversos princípios constitucionais e do direito internacional dos direitos humanos. Não há norma que obrigue o indivíduo a aceitar determinado tratamento médico, o que consiste em mera manifestação de autonomia da vontade do paciente, que inclusive pode não ter fundamento em imperativos de consciência ou religião”, defende a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.
A fim de que a resolução do CFM seja adequada às garantias da Constituição Federal de 1988, assim como ao art.146 do Código Penal, a PFDC encaminhou ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, um pedido de proposição, junto ao Supremo Tribunal Federal, de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
Na solicitação, a PFDC argumenta que uma coisa é excluir a culpabilidade do médico em tais situações, especialmente levando-se em conta a gravidade e irreversibilidade do possível resultado morte, “outra, completamente diferente, seria presumir um direito geral do profissional da medicina atuar de forma contrária à vontade expressa do paciente”, defende a PFDC, seguindo tese apresentada pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão substituto no Rio de Janeiro, Renato de Freitas Machado.
Direito à liberdade – O documento encaminhado ao procurador-geral destaca que a Resolução CFM 1.021/80 foi promulgada antes da Constituição de 1988 – sendo anterior, portanto, ao período de redemocratização do Brasil e de sua adesão aos sistemas universal e americanos de proteção dos direitos humanos.
De acordo com dados do último censo demográfico, o Brasil conta com mais de 1 milhão e 300 mil adeptos da religião Testemunha de Jeová. Uma das principais doutrinas desse credo religioso é a completa recusa ao consumo de sangue – incluindo as transfusões.
“A negativa à transfusão de sangue por parte dos adeptos dessa religião não se dá de forma fútil ou caprichosa, mas se fundamenta no direito à liberdade religiosa, cabendo ao Sistema Único de Saúde (SUS) prover as prestações de saúde de acordo com tais convicções”.
Acerca desse aspecto, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão ressalta que as transfusões sanguíneas podem constituir uma intervenção médica de risco, principalmente diante da possibilidade de transmissão de uma grande quantidade de enfermidades, tais como a AIDS, hepatites virais, febre amarela, malária e citomegalovirus, dentre outros. A literatura médica mais recente também associa a transfusão a uma maior permanência hospitalar, resultando em um aumento de custos.
“Hoje em dia, com todos os avanços da medicina e através da combinação de diferentes técnicas e medicamentos, se pode evitar a transfusão de sangue em quase todos os casos. Os tratamentos alternativos beneficiariam não apenas testemunhas de Jeová. Pelo contrário, ao adquirir, por exemplo, uma máquina de recuperação circulatória, o Estado investe em um equipamento que poderá servir a qualquer paciente que não deseje se tratar com transfusão de sangue ou eventualmente não possa”, destaca o texto.