O dissídio coletivo de natureza jurídica só é cabível para a interpretação de normas específicas preexistentes.
Em duas decisões recentes, a Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho assentou o entendimento de que o dissídio coletivo de natureza jurídica não é o instrumento processual adequado para a discussão de medidas de proteção durante a pandemia, como o afastamento de pessoas do grupo de risco e o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs). O motivo é que esse tipo de processo tem a finalidade exclusiva obter da Justiça a interpretação de normas coletivas ou decisões judiciais destinadas a regular, de forma específica, os interesses da categoria. Nos dois casos examinados, o objetivo das entidades sindicais era a determinação de obrigações às empresas com fundamento em normas genéricas.
Embora ressaltando a relevância dos pedidos e a necessidade de que sejam garantidas aos trabalhadores condições adequadas de trabalho, sobretudo considerando a exposição a que estão submetidos durante a pandemia, a SDC concluiu que eles não se enquadram nas hipóteses de cabimento do dissídio coletivo de natureza jurídica previstas no Regimento Interno do TST e na jurisprudência.
Dissídio de natureza jurídica
De acordo com o artigo 241, caput e inciso II, do Regimento Interno do TST, o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza jurídica, em específico, pressupõe a existência de controvérsia entre a categoria profissional e a econômica acerca da interpretação de cláusulas de sentenças normativas, de instrumentos de negociação coletiva, acordos e convenções coletivas, de disposições legais particulares das categorias e de atos normativos. A mesma previsão está contida na Orientação Jurisprudencial 7 da SDC.
“Nesse tipo de ação, os fatos devem estar lastreados em divergências acerca de normas preexistentes, quer em sua aplicação, quer em relação ao alcance da norma”, explica a ministra Dora Maria da Costa, relatora do primeiro caso.
Cursos livres
Nesse processo, o dissídio foi ajuizado, em abril de 2020, pelo Sindicato dos Empregados em Entidades de Assistência Social de Orientação e Formação Profissional do Estado de Minas Gerais (Senalba/MG) contra a Federação Nacional de Cultura (Fenac) e o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Livre do Sudeste de Minas Gerais (Sindelivre/Sudeste-MG). A pretensão era o afastamento dos profissionais da área das atividades presenciais. Segundo o Senalba, os empregados estavam tendo de trabalhar na modalidade presencial, sob pena de perda de seus salários, sem que as empresas tivessem fornecido equipamentos de segurança ou adotado providências, a fim de evitar a contaminação.
O vice-presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG), diante da gravidade da pandemia, da necessidade de preservar a saúde dos empregados e de reduzir os casos de contágio, deferiu liminar para determinar a suspensão das atividades, com multa de R$ 30 mil, em caso de descumprimento. No entanto, a SDC do TRT acolheu a argumentação do Sindilivre de inadequação da via processual eleita e, além de revogar a liminar deferida, extinguiu o processo.
Ao rejeitar o recurso do Senalba, a ministra Dora Maria da Costa destacou que não se discute, no caso, a emergência e a excepcionalidade da situação vivida em todo mundo pela pandemia nem se ignoram as providências buscadas pelo sindicato para proteger a vida e a saúde dos empregados, principalmente os mais vulneráveis. Entretanto, a pretensão não é viável por meio do dissídio de natureza jurídica, “por apresentar nítido viés condenatório, não se configurando como conflito de interpretação”.
Segundo a ministra, em que pese a excepcionalidade da situação, não há como ignorar que o pedido se fundamentou em disposições legais e constitucionais concernentes aos direitos fundamentais, à ordem social, educação e cultura, à segurança e à medicina do trabalho, entre outras. “Ocorre que o TST restringiu o âmbito de utilização do dissídio coletivo de natureza jurídica, não se prestando o seu ajuizamento para a obtenção da interpretação e do alcance de normas legais de caráter genérico, porque a conclusão atingiria a universalidade dos trabalhadores, mesmo aqueles que não fossem parte no processo”, observou.
A decisão foi unânime, com ressalva de entendimento dos ministros Vieira de Mello Filho e Mauricio Godinho Delgado.
Hospitais
No segundo caso, o recurso foi interposto pelo Sindicato dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde, Laboratórios de Pesquisas e Análises Clínicas do Estado de São Paulo (Sindhosp) contra decisão do TRT da 2ª Região em dissídio ajuizado pelo Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem e Trabalhadores em Estabelecimentos de Serviços de Saúde de Sorocaba e Região (Sindisaúde Sorocaba). O TRT determinou obrigatoriedade de fornecimento irrestrito de álcool gel, gorros, óculos de proteção, máscaras, avental e luvas, conforme nota técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2020, com multa por descumprimento.
O relator, ministro Caputo Bastos, explicou que a pretensão do sindicato não se fundamenta na necessidade de interpretação de normas coletivas, mas na condenação das empresas a obrigações de fazer. Contudo, ele ressaltou que o dissídio de natureza jurídica não se destina à fixação de normas e condições de trabalho, mas à delimitação das normas já existentes.
“No caso, o pedido é obter provimento de natureza mandamental, decorrente da indiscutível obrigação de os empregadores garantirem meio ambiente de trabalho adequado aos seus empregados e de fornecerem equipamentos de proteção”, observou. Embora destacando a relevância do pedido, o ministro considerou que o aspecto processual não pode ser superado para o exame do mérito. “É evidente que a pretensão do sindicato não se enquadra nas hipóteses de cabimento do dissídio coletivo de natureza jurídica”, concluiu.
Nesse processo, ficou parcialmente vencido o ministro Mauricio Godinho Delgado. Embora reiterando os limites desse tipo de processo, ele considera que os pedidos contêm, também, uma pretensão de natureza declaratória a respeito do alcance das cláusulas coletivas que tratam do fornecimento de EPIs.
Com relação às pretensões condenatórias e coercitivas, o ministro concorda que não foi utilizada a via processual adequada. “Para buscar a efetiva proteção dos interesses coletivos concretos, o sindicato obreiro pode se valer de meios processuais adequados, entre eles a ação coletiva, a ação civil pública, bem como a própria ação de cumprimento fundada nos preceitos da convenção coletiva de trabalho”, concluiu.
O processo ROT-10593-84.2020.5.03.0000 ficou assim ementado:
RECURSO ORDINÁRIO EM DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA JURÍDICA. 1. TUTELA DE URGÊNCIA. PRETENSÕES RELATIVAS A OBRIGAÇÕES DE FAZER, COM AMPARO EM NORMAS GENÉRICAS . INADEQUAÇÃO DA VIA PROCESSUAL UTILIZADA. A pretensão do Sindicato dos Empregados em Entidades de Assistência Social de Orientação e Formação Profissional no Estado de Minas Gerais – SENALBA/MG de obter, por meio deste dissídio coletivo de natureza jurídica, a determinação de que os empregados que laboram nas empresas de cursos livres, representadas pelos suscitados, sejam afastados de suas atividades, em razão da pandemia do coronavírus, sob pena de multa, além de não se mostrar viável pela via processual utilizada pelo suscitante, encontra-se lastreada em interpretação de dispositivos legais e jurisprudenciais que tratam, genericamente, de normas concernentes a direitos fundamentais e a segurança e medicina do trabalho, não atendendo ao disposto na Orientação Jurisprudencial nº 7 da SDC do TST. Mantém-se, portanto, a decisão regional que extinguiu o processo, sem resolução de mérito, por inadequação da via processual eleita e nega-se provimento ao recurso. 2. JUSTIÇA GRATUITA. De acordo com o § 4º do artigo 790 da CLT, incluído pela Lei nº 13.467/2017, em vigor à época do ajuizamento desta ação, será deferida a justiça gratuita à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo. Esta Corte Superior já admitia a concessão do benefício da justiça gratuita à pessoa jurídica, desde que demonstrada, de forma inequívoca, a impossibilidade de arcar com as custas processuais, tal como previsto no aludido dispositivo, entendendo, todavia, não ser suficiente a mera declaração de incapacidade financeira, conforme alegado pelo suscitante (Precedentes) . Nega-se, provimento ao recurso. 3. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS. CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA SDC DO TST EM RELAÇÃO AOS DISSÍDIOS COLETIVOS AJUIZADOS APÓS A EDIÇÃO DA LEI Nº 13.467/2017. O entendimento atual desta Seção Especializada é o de que é cabível, nos dissídios coletivos ajuizados após a edição da Lei nº 13.467/2017, independentemente de sua natureza (econômica, jurídica ou de greve), a condenação ao pagamento de honorários advocatícios de sucumbência, em face das disposições constantes do art. 791-A da CLT (Precedente). Mantém-se, portanto, a decisão regional que condenou o sindicato profissional suscitante ao pagamento da verba honorária sucumbencial . Recurso ordinário conhecido e não provido.
O recurso ROT-1000924-17.2020.5.02.0000 ficou assim ementado:
RECURSO ORDINÁRIO. DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA JURÍDICA. FORNECIMENTO DE EPI. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. PROVIMENTO.
Cinge-se a controvérsia em definir o cabimento do Dissídio Coletivo de natureza jurídica, no qual a parte suscitante postula a condenação das empresas ao fornecimento de EPIs e a afastarem os seus empregados que façam parte de grupo de risco, em razão da pandemia da COVID-19 .
É cediço que as hipóteses de cabimento do dissídio coletivo de natureza jurídica estão previstas no artigo 241, II, do RITST. Examinando este dispositivo, depreende-se que a aludida ação tem por finalidade exclusiva proceder à interpretação de instrumentos de negociação coletiva e enunciados normativos, destinados a regular, de forma particular e específica, os interesses da categoria profissional ou econômica.
Este, inclusive, é o entendimento consolidado na Orientação Jurisprudencial no 7 desta SDC.
Na hipótese, conquanto o suscitante tenha invocado dispositivos de instrumentos de negociação coletiva firmados com os suscitados, a sua pretensão não vem calcada na necessidade de a eles ser conferida intepretação, já que não alega a existência de qualquer divergência em sua aplicação. Verifica-se que, a bem da verdade, a parte autora postula a condenação das empresas em obrigação de fazer, em razão de estas serem obrigadas ao fornecimento de equipamentos de proteção individual, ante a previsão nas “normas regulamentadoras”, nas CCTs firmadas com os demandados e nos dispositivos de lei e da Constituição Federal, considerando o fato de os trabalhadores estarem expostos ao risco de serem contaminados pelo novo coronavírus.
A parte, portanto, não formulou pedido de interpretação de norma autônoma e nem, tampouco, heterônoma, específica da categoria por ele representada.
O seu pedido, tal como examinado, destina-se à obtenção de provimento de natureza mandamental, decorrente da indiscutível obrigação de os empregadores garantirem meio-ambiente de trabalho adequado aos seus empregados e de fornecerem equipamentos de proteção, a teor dos artigos 157 e 166 da CLT e do artigo 7º, XX, da Constituição Federal.
É inequívoca, portanto, a relevância da postulação e a necessidade de serem garantidas aos trabalhadores condições adequadas de trabalho, ainda mais considerando a exposição a que os profissionais da categoria profissional aqui representada estão submetidos durante a pandemia. Não se pode olvidar, entretanto, que o demandante não se utilizou do meio adequado para tanto, de modo que este óbice processual não pode ser superado para o exame de mérito da pretensão deduzida no presente feito.
É evidente, portanto, que a pretensão do recorrente não se enquadra nas hipóteses de cabimento do Dissídio Coletivo de natureza jurídica, previstas no Regimento Interno desta Corte e consagradas pela jurisprudência.
Nesse contexto, deve o presente feito ser extinto, sem resolução do mérito, ante a inadequação da via eleita.
Recurso ordinário a que se dá provimento.
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