Cidadania. Uma palavra tão utilizada, tão comentada e nem sempre compreendida em sua acepção plena. Tomando um conceito mais restrito, ela estaria relacionada especificamente a deveres e direitos políticos, como votar e ser votado. Em seu sentido mais amplo e moderno, contudo, a cidadania passa a representar toda a gama de direitos do indivíduo perante o Estado, e a capacidade de cada pessoa de exercê-los e defendê-los: é, no fundo, o direito a ter direitos.
Uma palavra, vários significados. Compreender a cidadania envolve conhecer não apenas os direitos e o modo de exercitá-los, mas de onde eles surgiram e para onde podem nos levar. Entender a cidadania, assim, é conhecer as suas diferentes expressões, os seus distintos lados, como em um polígono de sentidos: são elas, múltiplas e conectadas, as faces da cidadania.
A história da cidadania no Brasil tem como ponto alto a Constituição de 1988, que a reconheceu como fundamento da República, além de inaugurar e sistematizar um vasto conjunto de direitos – não por outra razão, foi chamada Constituição Cidadã. Entre as suas principais inovações, ela criou um tribunal superior que, por sua origem e suas atribuições, recebeu o apelido de Tribunal da Cidadania: nascia, também em 1988, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que viria a ser instalado em 7 de abril de 1989.
“Nos últimos 35 anos, o STJ, nosso Tribunal da Cidadania, transformou a sua alcunha em verdadeira vocação ao contribuir para dar efetividade aos direitos inaugurados ou ampliados pela Constituição de 1988. Por meio de precedentes históricos, o STJ deu concretude a diferentes direitos em temas como educação, meio ambiente e relações de consumo – todos relacionados à plenitude de existência e à dignidade para cidadãs e cidadãos”, resume a presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Ao longo dos próximos meses, a série especial Faces da Cidadania, produzida pela Secretaria de Comunicação Social do STJ, vai mostrar como esses direitos surgiram na Constituição e como têm sido interpretados pelo Tribunal da Cidadania nos últimos 35 anos. Nesta primeira matéria, a cidadania é explicada por quem a estuda e por quem conhece de perto os desafios de seu exercício.
A Constituição dos direitos e o fortalecimento do Poder Judiciário
Segundo o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e especialista em direito constitucional Ingo Sarlet, o reconhecimento de direitos na Constituição de 1988 tem relação não só com o contexto de ruptura com o regime militar, mas igualmente com a ampla participação social no processo de edição da nova Carta Magna. Como exemplo, o jurista cita as 122 emendas populares apresentadas no processo legislativo constitucional, que reuniram mais de 12 milhões de assinaturas.
“A assim chamada Constituição Cidadã consiste em texto constitucional sem precedentes na história do Brasil, seja quanto a sua amplitude, seja no que diz com o seu conteúdo, não sendo desapropriado afirmar que se trata também de um contributo brasileiro para o constitucionalismo mundial”, define.
Pela primeira vez na história brasileira, aponta Sarlet, a dignidade da pessoa humana é alçada à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito, ao mesmo tempo em que se utiliza, de modo pioneiro entre as constituições nacionais, a terminologia dos direitos fundamentais. Já no seu processo de revisão e atualização (por meio das emendas constitucionais), destaca o jurista, novos direitos passam a ser assegurados, como moradia, alimentação, razoável duração do processo e proteção de dados.
Adicionalmente, a partir do fortalecimento, pela CF/88, do Poder Judiciário e da garantia de amplo acesso à Justiça, o professor comenta que a jurisprudência brasileira foi responsável pela confirmação de vários outros direitos. Com a contribuição do STJ, destaca Sarlet, foram garantidos os sigilos fiscal e bancário e o direito à ressocialização dos presos, à origem de identidade genética, à identidade sexual e ao mínimo existencial.
STJ: interpretação das leis federais para a efetivação de direitos
Para Ingo Sarlet, a cidadania também foi influenciada pela incorporação de tratados internacionais de direitos humanos. Entre eles, o professor destaca a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, o Tratado de Marraqueche para o acesso de cegos a obras publicadas e a Convenção Interamericana contra toda forma de discriminação e intolerância – os três últimos aprovados pelo Congresso Nacional com status de emenda constitucional.
No campo infraconstitucional, o jurista considera diretamente ligadas ao exercício da cidadania normas como a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei de Acesso à Informação e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, surgidas depois de 1988. No tocante à proteção de minorias e grupos vulneráveis, Sarlet cita, ainda, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto da Pessoa Idosa, o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
É exatamente na interpretação da lei federal infraconstitucional que o STJ forjou suas principais contribuições para a cidadania, considerada como efetiva fruição dos direitos políticos e civis, sociais, culturais, econômicos e ambientais.
No campo do direito privado, Sarlet cita como exemplos a Súmula 297 do tribunal, segundo a qual o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras, e a Súmula 364, que estendeu a impenhorabilidade do bem de família aos imóveis de pessoas solteiras, separadas e viúvas.
Em relação ao direito ambiental, o jurista lembra o entendimento da corte sobre o poluidor indireto e o ineditismo da definição, pelo STJ, da natureza objetiva da responsabilidade civil ambiental. Sarlet ainda enfatiza precedentes no âmbito do direito penal que estabeleceram proteções à pessoa diante da atuação do sistema de segurança pública, como a garantia à justa persecução penal e a necessidade de prova do consentimento do morador, em algumas situações, para o ingresso policial em domicílio sem mandado judicial.
Esses e outros precedentes históricos do STJ serão detalhados ao longo da série Faces da Cidadania.
A cidadania e suas faces humanas
Se a cidadania tem várias faces, várias também são as faces daqueles que a exercem. Para cada rosto, cada história, há um sentimento em relação à cidadania, uma visão diferente e particular sobre os desafios para o seu exercício e sobre o que esperar dela no futuro.
Longe de esgotar essa diversidade, três pessoas conversaram com o STJ a respeito das suas perspectivas em relação à cidadania e, nesses relatos, compartilharam experiências que ajudam a compreender a dimensão da luta pela efetivação de direitos.
No caso da advogada Patrícia Guimarães, o sentimento de cidadania tem relação íntima com sua origem, sua cor e sua luta: mulher negra, Patrícia é descendente de quilombolas – seu pai nasceu e foi criado na comunidade Kalunga, em Monte Alegre (GO), assim como os seus ancestrais – e vê na periferia o principal exemplo dos desafios para que o Brasil seja, de fato, um país com pleno exercício da cidadania.
Vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB do Distrito Federal, a advogada coloca a mulher negra na base da pirâmide social: ela é maioria, afirma, mas também é aquela que sofre a maior gama de preconceitos. Além de não ter acesso digno à educação, à saúde e ao mercado de trabalho, Patrícia lembra que essa mulher – em geral, periférica – ainda é alvo preferencial de discriminação e de violência doméstica.
“Dificilmente você verá uma mulher negra em um cargo de poder. Vemos muitas meninas negras até o ensino fundamental, mas ainda há muitas dificuldades no acesso de mulheres negras, por exemplo, a uma universidade – em especial, às instituições particulares”, ressalta.
Mesmo superando alguns desses desafios e tendo qualificação profissional como advogada, Patrícia Guimarães comenta que é alvo de preconceitos em sua atividade: antes de inaugurar o seu próprio escritório, ela chegou a ser preterida em entrevistas de emprego em razão da cor; nos atendimentos a potenciais clientes, já foi rejeitada pelo simples fato de que as pessoas buscavam uma advogada, mas não uma mulher negra.
“Isso aconteceu diversas vezes. A pessoa conversa comigo por telefone, se interessa pelo meu trabalho e, quando vai ao escritório e conhece uma mulher preta, se decepciona. Hoje, essa situação não assusta, mas é uma coisa que ainda dói”, resume.
Além de sua atuação voltada para a defesa dos direitos das pessoas mais pobres – a cidadania que mora nas periferias –, a advogada deve inaugurar um instituto específico para o apoio à mulher negra periférica, preparando-a, em especial, para o mercado de trabalho. “A intenção é que consigamos alavancar a vida das mulheres negras, porque nós sabemos que ela é a base da pirâmide, mas raramente consegue chegar no topo – muitas vezes, ela não chega nem no meio da pirâmide”, afirma.
A proteção da cidadania para as pessoas com deficiência
Para o bancário Oldemar Barbosa, a luta pelo pleno exercício da cidadania começou aos 11 meses de idade, quando recebeu o diagnóstico de poliomielite. Criado na zona rural de Toledo (PR), ele não recebeu a vacina contra a doença e, em consequência da pólio, ficou paraplégico, necessitando permanentemente de cadeira de rodas.
Apesar das dificuldades para conseguir reabilitação motora e concluir os estudos, Oldemar se formou em ciências econômicas e, após passar em concurso público do Banco do Brasil, mudou-se para Brasília, onde começou a participar da Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de Funcionários do Banco do Brasil e da Comunidade (Apabb). Por meio da Apabb, o bancário e outros voluntários auxiliam as pessoas com deficiência – e suas famílias – para que tenham mais autonomia nas atividades diárias.
Para Oldemar, a cidadania reside no direito ao voto, na fiscalização do governo, mas também na garantia de vagas de estacionamento às pessoas com deficiência, na construção e na preservação de rampas de acesso, na modificação arquitetônica de espaços para que indivíduos com condições especiais possam transitar livremente.
Sobre as dificuldades de garantir a cidadania em todos os níveis, o bancário lembra um episódio: certa vez, alugou apartamento em um prédio que possuía vagas de garagem destinadas a pessoas com deficiência, mas uma delas foi indevidamente vinculada a imóvel cujo comprador não tinha nenhuma necessidade especial. Para resolver a situação, o bancário precisou recorrer ao Procon e à administração regional.
Na visão de Oldemar Barbosa, a efetivação da cidadania passa pela conscientização da sociedade de que os direitos garantidos às pessoas com deficiência não são benefícios injustificados, mas se destinam a atender de maneira diferente indivíduos com necessidades diferentes – tudo para que, no fim, as pessoas possam ser um pouco mais iguais.
“Se você tem uma vaga especial para a pessoa com deficiência, por exemplo, é porque essa pessoa precisa de um espaço específico para movimentar a sua cadeira de rodas, para abrir a porta do carro de forma mais ampla e conseguir se locomover sem dificuldades. Precisamos de banheiros diferenciados porque é necessário se apoiar nas barras e fazer a movimentação da cadeira naquele espaço”, aponta o bancário.
A exclusão social da pessoa idosa como negação da cidadania
A vivência do professor aposentado Vicente Faleiros com o tema cidadania não vem do mero decurso de seus 82 anos, mas das sucessivas experiências com o exercício de direitos – ou com a limitação deles – ao longo da vida. Sob o regime militar, por exemplo, a prisão política e o exílio lhe permitiram compreender que a principal ameaça à cidadania é a violência, em todas as suas formas – seja por intolerância, seja por arbitrariedade do Estado.
Doutor em sociologia e professor universitário, Faleiros se aprimorou em estudos relacionados à pessoa idosa, com pesquisas que evidenciaram a negligência social com esse grupo. Tornou-se pesquisador do tema e fundador do Fórum Distrital dos Direitos da Pessoa Idosa e integrante da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, na qual coordena uma comissão para elaboração de políticas públicas.
Na opinião de Vicente Faleiros, cidadania envolve uma rede de proteção para o exercício de direitos e a primazia da inclusão social, mas a situação vivida diariamente pelas pessoas mais velhas é diametralmente oposta: muitas vezes, afirma, elas sofrem do idadismo – o preconceito em relação à idade –, são consideradas “um peso para a sociedade”, recebem discriminação até pelo andar mais lento, além de serem vistas como incapazes, improdutivas, feias. Excluídas do convívio social, diz Faleiros, são excluídas da própria cidadania.
Segundo o professor aposentado, ser uma pessoa idosa cidadã é ter garantidos os direitos humanos fundamentais e, ao mesmo tempo, os direitos específicos desse grupo. É, para ele, a transmutação da ótica da compaixão em ótica da cidadania.
Para ele, a efetivação da cidadania depende da luta contra a desigualdade, a intolerância, a violência e a exclusão social, e, do mesmo modo, do fortalecimento do Estado Democrático de Direito e do pleno exercício da justiça. “Todos que querem viver muito precisam ficar velhos ou velhas. Por isso, é necessário ter uma sociedade inclusiva para crianças, jovens, adultos e pessoas idosas, de diferentes condições”, diz o professor.