O Brasil tem aproximadamente 800 mil índios, divididos em 254 povos que falam cerca de 300 idiomas e dialetos diferentes e estão espalhados por todas as unidades da federação. A intervenção do ordenamento jurídico nacional no cotidiano dessa população é sempre tema de controvérsias, tendo em vista a divisão de competências para cada caso.
A Constituição de 88, no artigo 231, estabelece que cabe à União zelar pela proteção das terras e dos direitos dos índios no Brasil. Apesar do dispositivo constitucional, nem todos os processos que envolvem índios são julgados pela Justiça Federal. A competência dos juízes federais está descrita no artigo 109, inciso XI, da CF/88, para os casos em que houver disputa sobre direitos indígenas, o que não se configura necessariamente sempre que um índio for parte em algum processo.
A Justiça Federal só será competente quando o processo envolver a efetiva disputa de interesses indígenas. Na hipótese de crime em que o indígena for autor ou vítima, o caso deverá ser julgado pela Justiça estadual, conforme definiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao editar a Súmula 140. A distinção entre uma situação e outra é objeto de frequentes controvérsias.
Por exemplo, um processo sobre calúnia e difamação entre índios foi reconhecido como de competência da Justiça Federal pela Terceira Seção do STJ ao julgar o CC 123.016, pois se concluiu que o caso ocorreu no âmbito de uma disputa entre caciques por terras e pelo domínio da aldeia, em conflito relacionado à liderança que envolvia o interesse de toda a comunidade.
“O conceito de direitos indígenas, previsto no artigo 109, XI, da CF/88, a fim de verificar a competência da Justiça Federal, é aquele referente às matérias que envolvam a organização social dos índios, seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, afirmou o ministro Marco Aurélio Bellizze ao julgar o conflito de competência.
Competência estadual
Em um caso em que um índio foi acusado de homicídio, o STJ aplicou a Súmula 140 por entender que a situação não envolvia lesão a direitos indígenas coletivamente considerados. De acordo com o processo, o autor intelectual da morte do chefe da tribo teria agido por vingança, por ter sido expulso da comunidade em razão da suspeita de seu envolvimento em furtos (CC 101.569).
Em outro caso analisado pela Terceira Seção, em 2017, os ministros entenderam que o homicídio cometido sob a alegação de estar o autor dominado por feitiço não era elemento suficiente para atrair a competência da Justiça Federal. O relator do caso, ministro Felix Fischer, afirmou que o feitiço não pode ser vinculado à cultura indígena para deslocar o caso para o âmbito federal.
“O suposto homicídio praticado por índio contra outro não teve conotação de disputa de seus direitos indígenas, não sendo relevante, para fins de competência, a crença pessoal do autor que alega ter praticado o crime em virtude de feitiço, porquanto tal fato não atinge direitos coletivos, ou seja, o crime não foi praticado para atingir a cultura indígena” (CC 149.964).
A extensão do que se considera violação de direitos coletivos indígenas não abarca, por exemplo, crimes de exploração sexual de índios. Ao tratar dessa matéria, a Quinta Turma do STJ declarou competente a Justiça do Amazonas, já que se tratava de crime contra a dignidade sexual. Para os ministros, era um caso de aplicação da Súmula 140.
“A exploração sexual de indígenas não atrai a competência da Justiça Federal, pois não se trata de violação à cultura dos indígenas, e sim contra a dignidade sexual”, destacou o ministro Moura Ribeiro (O número do processo não é divulgado em razão de segredo judicial).
Assistência da Funai
Embora a Constituição tenha abolido o conceito de índio tutelado pelo Estado, previsto no artigo 7º do Estatuto do Índio, o poder público pode representar um ou mais indígenas na forma de curador ou assistente. O papel da Fundação Nacional do Índio (Funai) pode ser de assistente da defesa em ação penal ajuizada em desfavor de indígena.
Nos casos em que a autarquia federal busca ingressar em ações penais, segundo a jurisprudência do STJ, tal medida não é suficiente para atrair a competência da Justiça Federal. A assistência não é uma obrigação, mas uma opção do índio que não pode ser negada pelo fato de eventualmente residir em área urbana (CC 136.773 e RMS 30675).
Demarcação de terras
A disputa por terras indígenas é motivo de muitos processos judiciais, e quando esses conflitos chegam ao STJ, às vezes as salas de julgamento ficam lotadas por representantes das aldeias que vêm acompanhar o desfecho do caso. Entre outras classes processuais, o STJ julga mandados de segurança contra atos praticados por ministro de Estado, como, por exemplo, as portarias do ministro da Justiça sobre demarcação de terras.
Em setembro de 2016, a Primeira Seção rejeitou mandado de segurança movido por um grupo de agricultores contra a demarcação da reserva indígena Tupinambá. O argumento dos agricultores é que o grupo não seria de índios, mas de caboclos. Segundo o relator, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, tais alegações não servem para embasar um mandado de segurança, pois exigem dilação probatória.
A anulação do processo de demarcação de terras por mandado de segurança pode ocorrer quando há flagrante desrespeito ao processo legal, como no entendimento dos ministros ao julgar o REsp 1.572.069. O STJ manteve a anulação do processo porque ficou demonstrado o não cumprimento das obrigações constantes em lei, como, por exemplo, a realização de levantamento fundiário.
Saúde indígena
Outra questão indígena já decidida pelo STJ diz respeito ao serviço de assistência à saúde. Em 1999, o Congresso Nacional aprovou a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), em norma que ficou conhecida como Lei Arouca.
Segundo a lei, o atendimento para os índios aldeados era competência da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), enquanto os municípios recebiam verbas federais do SUS para o atendimento dos residentes em áreas urbanas.
A diferenciação foi questionada no STJ por meio do REsp 1.064.009. A decisão dos ministros, paradigma para as questões de saúde indígena, inviabilizou a distinção entre índios aldeados e urbanos.
“O status de índio não depende do local em que se vive, já que, a ser diferente, estariam os indígenas ao desamparo, tão logo pusessem os pés fora de sua aldeia ou reserva. Mostra-se ilegal e ilegítimo, pois, o discrímen utilizado pelos entes públicos na operacionalização do serviço de saúde, ou seja, a distinção entre índios aldeados e outros que vivam fora da reserva”, concluiu o ministro Herman Benjamin, relator do caso.
Logo após essa decisão, de 2009, o governo federal promoveu uma reforma no SasiSUS e criou a Sesai, uma secretaria do Ministério da Saúde que é responsável pela gestão e execução dos serviços de saúde indígena, tanto para os índios aldeados quanto para os urbanos, acabando com a distinção anterior.
Poder limitado
Em diversas tribos, o cacique é o líder político e detém amplos poderes de administração e representação da comunidade. Mas tais poderes não se traduzem, para fins legais, em legitimidade para a defesa de interesses coletivos, como no caso de impetração de mandado de segurança.
O STJ já rejeitou pedidos feitos por caciques via mandado de segurança por entender que nesses casos o meio processual adequado é a ação popular, já que o mandado de segurança só pode ser protocolado para defender direito coletivo se for interposto por partido político, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída há pelo menos um ano.
Ao julgar o MS 13.248, o ministro Castro Meira (já aposentado) afirmou que “a discussão assume nítida feição de ação popular, porquanto se busca impedir a implementação pelo poder público de política governamental que acarretaria prejuízo à coletividade. Sobre esse ponto, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 101, cuja redação é a seguinte: ‘O mandado de segurança não substitui a ação popular’.”
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