Juiz afastou limitação de valores da indenização, imposta pela reforma trabalhista
A tragédia que deixou o Brasil e o mundo de luto completa um ano neste sábado (25). Os números assustam: o desastre de Brumadinho-MG deixou 270 mortos, dos quais 259 foram identificados e 11 ainda estão desaparecidos. O mundo assistiu perplexo à repetição da tragédia de Mariana, só que em proporções maiores. O desastre revelou as condições desumanas de trabalho ainda existentes no setor da mineração. As investigações apontaram que a Vale tinha pleno conhecimento dos riscos de sua atividade e que as falhas da empresa foram fruto de imprudência e de negligência.
Inclusive, nessa terça-feira (21), o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) denunciou duas empresas (a Vale e a Tüv Süd – empresa alemã de projetos e consultoria) e mais 16 pessoas por homicídios dolosos (quando há a intenção de matar) duplamente qualificados e por outros crimes ambientais relacionados ao rompimento da barragem I, da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Além de ser uma tragédia humanitária e ambiental, é também o acidente coletivo do trabalho que chocou o mundo. Para promover uma reflexão sobre as marcas e lições deixadas pela tragédia neste primeiro ano, convidamos o leitor a conhecer mais uma decisão da Justiça do Trabalho mineira sobre o tema, publicada no dia 10 de janeiro de 2020. Acompanhe!
Em decisão recente, a Vale S.A. foi condenada ao pagamento de uma indenização, no valor de R$ 2 milhões, ao casal que perdeu a única filha no trágico acidente de Brumadinho. A decisão é do juiz Walace Heleno Miranda de Alvarenga, que julgou o caso na 3ª Vara do Trabalho de Governador Valadares. Com apenas 30 anos de idade, a jovem engenheira morreu soterrada pela lama tóxica após o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, ocorrido no dia 25/1/2019. Na avaliação do magistrado, a empresa demonstrou imprudência por não ter tomado as providências básicas necessárias para evitar um acidente previsível, uma tragédia anunciada.
A imprudência que gera sofrimento e angústia – Conforme pontuou o juiz, uma sequência de condutas imprudentes da empresa foi determinante para a ocorrência do maior acidente do trabalho coletivo da história do Brasil. A jovem engenheira falecida prestava serviços na área de mineração, onde eram utilizados explosivos e estocados inadequadamente refugos provenientes da extração mineral. No exercício de suas funções, a empregada ficava exposta ao trânsito de máquinas pesadas no local de trabalho e à possibilidade de rompimento da barragem de rejeitos.
De acordo com as ponderações do magistrado, a perda da única filha do casal de forma tão trágica e precoce não deixa dúvidas quanto ao sofrimento extremo sofrido pelos pais. Eles tiveram que esperar nove dias após a tragédia para que o corpo da filha fosse encontrado e identificado, sem direito a velório e sepultamento dignos, em razão do estado de decomposição.
Para aumentar a angústia do casal, além do sufocamento da engenheira pela lama tóxica, ainda existem as lembranças do desastre, a imaginação inevitável sobre o sofrimento da filha, que foi acometida de vários traumatismos, como consta na certidão de óbito examinada pelo juiz. Na conclusão dele, é fácil presumir que essa situação acarretou dor, saudade, indignação, sentimento de impotência, sofrimento e transtornos de toda ordem aos pais da vítima, pois formam o núcleo familiar básico que, de forma natural, desenvolve uma relação de intimidade especial entre os seus componentes. “Tais sentimentos negativos são deduzidos de forma clarividente do fato de ser paradoxal que uma trabalhadora que sai de casa para ‘ganhar a vida’ com o seu labor acaba por perdê-la no exercício de suas funções”, concluiu.
Como bem salientou o magistrado, é de conhecimento público que a empresa estocava os resíduos da mineração em barragens a montante, com utilização do próprio rejeito de minério, técnica de custo menor do que o alteamento de barragens a jusante. Essa estocagem do rejeito resulta na transformação da lama de minério em resíduos sólidos, o que coloca em risco de morte os prestadores de serviços e aqueles que circulam em torno da barragem, devido à possibilidade de seu rompimento repentino.
A reincidência da Vale – O julgador classificou como ato imprudente da empresa a insistência na utilização da técnica de depósito do rejeito da mineração em barragens a montante, que já tinha se mostrado inapropriada, na prática, com o rompimento de outra barragem da ré na cidade de Mariana-MG, em novembro de 2015. Lembrou o juiz que o evento fatídico resultou na morte de 19 pessoas e em dano ambiental inestimável, por causa do deslocamento dos rejeitos de Mariana até o oceano Atlântico, no estado do Espírito Santo. “Todavia, a reclamada não se preocupou, a partir do acontecimento da tragédia de Mariana, com a correção do equívoco e manteve a utilização das barragens a montante. Ou seja, optou por prosseguir com a prática empresarial de extremo risco, inobstante o acontecimento pretérito que culminou em várias fatalidades e danos de toda ordem que, até o presente momento, não se encontram integralmente reparados”, completou.
No início de 2019, ou seja, decorridos menos de quatro anos após o desastre de Fundão, em Mariana, houve a repetição da tragédia, com novo episódio de rompimento de barragem a montante, agora com proporções bem maiores e com aumento significativo do número de vítimas.
O descumprimento de normas de proteção coletiva – Ao relembrar as cenas da devastação, o magistrado destacou que o risco a que os trabalhadores estavam sujeitos era evidente, já que o local da prestação dos serviços e o refeitório estavam no itinerário que foi percorrido pela lama tóxica em consequência do rompimento da frágil barragem a montante. Ao examinar a CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), o juiz verificou o horário em que ocorreu o desastre: às 13 horas do dia 25/1/2019. Ou seja, exatamente no horário do almoço, quando o refeitório da empresa estava lotado. “Vislumbro que a reclamada sequer se preocupou em construir o refeitório na parte superior da mina, providência simples e lógica que teria poupado a vida de centenas de pessoas, já que a maioria das vítimas estava no refeitório no momento do rompimento da barragem”, ponderou.
Portanto, nesse caso, o magistrado concluiu que houve descumprimento das normas de saúde e segurança do trabalho pertinentes, pois a Norma Regulamentadora nº 24 do antigo MTE (Item 24.3.13), estabelece que “o refeitório deve ser instalado em local apropriado, não se comunicando diretamente com os locais de trabalho, instalações sanitárias e locais insalubres ou perigosos“.
Na sentença, o julgador citou ainda outras normas que regem a matéria. No plano internacional, mencionou a Convenção 155, da OIT, sobre normas genéricas relacionadas à segurança e saúde dos trabalhadores, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 1.254/1994. Especificamente na área da mineração, fez referência à Convenção 176 da OIT, sobre saúde e segurança nas minas, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 6.270/2007, a qual estabelece várias obrigações para o empregador que explora atividade de mineração, de modo a se evitar a ocorrência de acidentes no local de trabalho.
A Constituição da República também consagra, em seus artigos 7º, inciso XXII, e 225, o princípio do risco mínimo regressivo que deve fundamentar toda a legislação ordinária sobre a matéria. Por sua vez, o artigo 157 da CLT e o artigo 19 da Lei nº. 8.213/1991 igualmente contemplam normas regentes da obrigação patronal de preservar a segurança no trabalho. Por fim, o juiz citou a Norma Regulamentadora nº 22, do Ministério do Trabalho e Emprego (atual Ministério da Economia), que versa sobre a segurança e saúde ocupacional na mineração.
Culpa e responsabilidade civil – Em sua sentença, o julgador trouxe a sua definição de dano moral indireto, reflexo ou em ricochete, que é aquele em que “o ato ilícito praticado em detrimento da vítima direta reverbera seus efeitos e atingem os detentores de certo vínculo de afetividade para com aquela, notadamente os familiares e parentes mais próximos, o que lhes acarreta o chamado prejuízo de afeição”. Em outras palavras, o chamado dano em ricochete é aquele que projeta seus reflexos sobre pessoas que possuem algum vínculo afetivo com a vítima direta do dano. Geralmente, são os parentes mais próximos da vítima, que também sofrem as consequências de um sentimento de perda. Conforme pontuou o juiz, é exatamente o caso dos pais da engenheira falecida, que passaram por uma situação traumática, permeada de incertezas, desespero, tristezas e a angústia de perder a filha e não poder vivenciar um luto comum.
Por todos os ângulos em que analisou a questão, o juiz identificou a existência dos dois tipos de responsabilidade civil: a objetiva e a subjetiva. O magistrado explicou que a primeira independe da culpa. Analisa-se somente a existência de uma atividade empresarial rotineira de risco que tenha provocado danos à vítima. É a teoria do risco criado. Já na responsabilidade civil subjetiva, o magistrado observou que há uma investigação sobre a existência de culpa do ofensor.
No caso, o julgador enquadrou a atividade da engenheira na teoria objetiva da responsabilidade civil, em razão dos riscos que envolvem o trabalho de extração mineral: máquinas pesadas, risco de rompimento de barragem, etc. Em sua apreciação, ele enquadrou o trabalho da engenheira também na responsabilidade subjetiva, por vários motivos: a Vale construiu o refeitório e a área administrativa abaixo da barragem, bem no caminho da lama tóxica no caso de rompimento, descumpriu normas de saúde e segurança do trabalho, manteve a barragem a montante, passível de colapso, e as sirenes de segurança não soaram, o que dificultou a evacuação das áreas de risco.
Enfim, uma série de erros enumerados pelo juiz, que confirmaram a negligência da Vale em manter um ambiente de trabalho saudável, equilibrado e seguro. “Logo, resta configurada a conduta culposa da ré que, plenamente ciente dos riscos existentes em suas instalações, não adotou medidas preventivas eficazes para impedir que o fatídico acidente acontecesse”, concluiu.
A limitação da indenização pela reforma trabalhista – De acordo com a CLT anterior, combinada com o Código Civil, as indenizações não teriam limite de valor. Entretanto, em novembro de 2017, entrou em vigor o texto original da reforma trabalhista, prevendo, no novo artigo 223-G, parágrafos 1º, 2º e 3º, da CLT, que as indenizações decorrentes de um mesmo dano moral teriam valores diferentes em razão do salário de cada ofendido. De acordo com esse critério salarial introduzido pelo novo texto reformista, o valor das indenizações pode ser limitado a até 50 vezes o valor do salário contratual do empregado, caso o dano seja classificado como gravíssimo. No caso do acidente de trabalho coletivo de Brumadinho, é evidente o dano moral em grau máximo, já que resultou na morte de vários trabalhadores.
Em sua sentença, o julgador reconheceu a inconstitucionalidade da regra da reforma que prevê o tabelamento da indenização por dano moral, decidindo por fixar a reparação pretendida pelos pais da engenheira falecida sem as limitações ali impostas. No caso, o juiz afastou o teto máximo de indenização estipulado pela reforma por entender que a norma gera discriminação e trata a vítima como objeto, pois atribui um “preço” diferente à vida de cada trabalhador, proporcional ao último salário recebido na empresa, o que fere o princípio constitucional da isonomia.
Na percepção do magistrado, “a liberdade econômica não deve visar apenas ao lucro e tratar o ser humano trabalhador como um mero meio de se alcançar os objetivos financeiros inerentes a qualquer empreendimento. Ao reverso, o indivíduo que entrega sua força de trabalho ao tomador é dotado de dignidade, da qual não se despe quando contrai uma relação de emprego e, dessa forma, deve ser respeitado e ter sua vida e sua incolumidade física e psíquica devidamente asseguradas”.
Condenação e conclusões – A Vale foi condenada ao pagamento de uma indenização por dano moral em ricochete no total de R$ 2 milhões, sendo R$ 1 milhão para cada autor da ação trabalhista. Para a fixação do valor, o juiz levou em consideração alguns critérios, como: a gravidade da conduta praticada pelo ofensor e o grau de sua culpa, considerada a reincidência do evento, a capacidade econômica da empresa, que em 2018 registrou lucro de mais de R$ 25 bilhões, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e o caráter punitivo, pedagógico e compensatório da medida. De acordo com a sentença, a Vale deverá também reembolsar, nos mesmos termos da liminar concedida, as despesas com tratamento médico, psicológico e psiquiátrico dos autores, com profissionais de livre escolha deles, cuja necessidade guarde relação direta ou indireta com a morte de sua filha, sob pena de multa.
Por fim, o juiz negou o pedido do casal no sentido de impor à Vale a obrigação de apresentar pedidos de desculpas formais através da mídia durante 20 anos pelo ocorrido, bem como de fixação de placas ou memoriais em homenagem à empregada falecida nas sedes da empresa. Isso porque, na visão do magistrado, o casal precisa fechar esse ciclo doloroso e condutas como essas só serviriam para dificultar o processo de superação da perda precoce da filha. “Os autores relatam na inicial sofrimento pela lembrança da morte da filha através de reportagens veiculadas na mídia. Portanto, as obrigações de fazer postuladas somente serviriam para reavivar fortemente o triste episódio por décadas, o que refoge à lógica do razoável e não se mostra proporcional à necessidade de reparação dos danos sofridos pelos autores”, finalizou. Cabe recurso da decisão.
- PJe: 0010426-84.2019.5.03.0135