Em agravo de instrumento interposto pela Norte Energia S/A, e de relatoria do desembargador federal Souza Prudente, a 5ª Turma confirmou a decisão agravada que deferiu a tutela de urgência, para que a agravante, a partir de fevereiro de 2022, passe a aplicar ao Trecho de Vazão Reduzida um regime de vazões suficiente para garantir a efetiva sustentabilidade etnoambiental da Volta Grande do Xingu, de acordo com os Estudos Complementares a serem apresentados até 31 de dezembro de 2021, desde que previamente aprovados por parecer técnico do IBAMA.
Determinou ainda o juízo da Vara Federal da Subseção Judiciária de Altamira/PA que observe, entre outras, as premissas de manutenção dos ecossistemas, modos de vida e navegação da Volta Grande do Xingu, consulta prévia às populações tradicionais da região, de maneira culturalmente apropriada, e respeito aos princípios da informação, da publicidade e ao princípio da precaução, e apresentar estudos complementares relativamente à identificação das áreas de inundação, áreas importantes para alimentação da fauna a serem efetuados pela agravante e acompanhados e publicados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Sustentou a agravante que a decisão agravada já tinha sido resolvida em outra ação, e que a manutenção desta reduziria o nível de geração da Usina Hidrelétrica (UHE) Belo Monte em 40%, caracterizando o perigo da demora (periculum in mora) inverso, ou seja, risco à segurança energética. Argumentou ainda, entre outros, vício de fundamentação e desproporcionalidade da decisão agravada, violação ao princípio da separação dos poderes, da segurança jurídica, e adequação dos estudos que demostraram que os impactos verificados não diferem dos prognósticos dos estudos de 2009.
Ao analisar o caso, o relator ressaltou a supremacia do interesse público, difuso, ambiental e coletivo. Portanto, após constatada, pelo Ibama, a ineficácia do denominado “Hidrograma de Consenso”*, que deveria promover a alternância dos dois ciclos hidrológicos controlados pela Concessionária, “permitindo a recuperação dos ecossistemas afetados, e que, na fase de operação da usina, resultou em desequilíbrio em cascata gerado pelo desvio do fluxo hídrico, com nefastos reflexos nos seios das comunidades indígenas e ribeirinhas atingidas, afigura-se adequada e razoável a tutela cautelar inibitória adotada pelo juízo monocrático, no sentido de se determinar a utilização, em caráter provisório, durante o exercício de 2021, no Trecho de Vazão Reduzida, um regime de vazão equivalente ao previsto no Hidrograma Provisório definido no Parecer Técnico 133/2019/Ibama/COHID, enquanto não estabelecidas as vazões seguras a serem praticadas na Volta Grande do Xingu e, a partir dali, um regime de vazões suficiente para garantir a efetiva sustentabilidade etnoambiental da Volta Grande do Xingu”.
O recurso ficou assim ementado:
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. UHE BELO MONTE. UHE BELO MONTE. OPERAÇÃO. PARTILHA EQUILIBRADA DAS ÁGUAS DO RIO XINGU. “HIDROGRAMA DE CONSENSO”. CONTROLE DE VAZÕES POR MEIO DA ALTERNÂNCIA DE DOIS CICLOS HIDROLÓGICOS. AUSÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO E INFORMAÇÃO AOS POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES TRADICIONAIS NA ESCOLHA DAS VAZÕES UITLIZADAS E IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS. INEFICIÊNCIA E DESEQUILÍBRIO DO FLUXO HÍDRICO. DISCUSSÃO ENVOLVENDO A LEGITMIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO POR VÍCIO DE FUNDAMENTAÇÃO. TUTELA CAUTELAR E INIBITÓRIA DE URGÊNCIA. PRINCÍPIOS DA ORDEM PÚBLICA DA PRECAUÇÃO, DA PREVENÇÃO, DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO ECOLÓGICO E DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (CF, ARTS. 170, INCISOS I E VI, E 225, CAPUT). CABIMENTO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA, DA SEPARAÇÃO DOS PODERES, DA VINCULAÇÃO AO EDITAL E AO DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO E FINANCEIRO DO CONTRATO DE CONCESSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. SOBREPOSIÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO, DIFUSO, AMBIENTAL E COLETIVO.
I – Na ótica vigilante da Suprema Corte, “a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral (…) O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações” (ADI-MC n° 3540/DF – ReI. Min. Celso de Mello – DJU de 03/02/2006). Nesta visão de uma sociedade sustentável e global, baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, com abrangência dos direitos fundamentais à dignidade e cultura dos povos indígenas, na justiça econômica e numa cultura de paz, com responsabilidades pela grande comunidade da vida, numa perspectiva intergeracional, promulgou-se a Carta Ambiental da França (02.03.2005), estabelecendo que “o futuro e a própria existência da humanidade são indissociáveis de seu meio natural e, por isso, o meio ambiente é considerado um patrimônio comum dos seres humanos, devendo sua preservação ser buscada, sob o mesmo título que os demais interesses fundamentais da nação, pois a diversidade biológica, o desenvolvimento da pessoa humana e o progresso das sociedades estão sendo afetados por certas modalidades de produção e consumo e pela exploração excessiva dos recursos naturais, a se exigir das autoridades públicas a aplicação do princípio da precaução nos limites de suas atribuições, em busca de um desenvolvimento durável.
II – A tutela constitucional, que impõe ao Poder Público e a toda coletividade o dever de defender e preservar, para as presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, como direito difuso e fundamental, feito bem de uso comum do povo (CF, art. 225, caput), já instrumentaliza, em seus comandos normativos, o princípio da precaução (quando houver dúvida sobre o potencial deletério de uma determinada ação sobre o ambiente, toma-se a decisão mais conservadora, evitando-se a ação) e a conseqüente prevenção (pois uma vez que se possa prever que uma certa atividade possa ser danosa, ela deve ser evitada). No caso em exame, impõe-se com maior rigor a observância desses princípios, por se tratar de tutela jurisdicional em que se busca, também, salvaguardar a proteção da posse e do uso de terras indígenas, com suas crenças e tradições culturais, aos quais o Texto Constitucional confere especial proteção (CF, art. 231, §§ 1º a 7º), na linha determinante de que os Estados devem reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesses das populações e comunidades indígenas, bem como habilitá-las a participar da promoção do desenvolvimento sustentável (Princípio 22 da ECO-92, reafirmado na Rio + 20).
III – Nesse contexto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com base no Parecer técnico 21/2009 da FUNAI, outorgou a Medida Cautelar 382/10, revisada em 29 de julho de 2011, determinando ao Estado brasileiro que adote urgentes providências para “1) proteger a vida, a saúde e integridade pessoal dos membros das comunidades indígenas em situação de isolamento voluntário da bacia do Xingu, e da integridade cultural das mencionadas comunidades, que incluam ações efetivas de implementação e execução das medidas jurídico-formais já existentes, assim como o desenho e implementação de medidas especificas de mitigação dos efeitos que terá a construção da represa Belo Monte sobre o território e a vida destas comunidades em isolamento; 2) adote medidas para proteger a saúde dos membros das comunidades indígenas da bacia do Xingu afetadas pelo projeto Belo Monte, que incluam (a) a finalização e implementação aceleradas do Programa Integrado de Saúde Indígena para a região da UHE Belo Monte, e (b) o desenho e implementação efetivos dos planos e programas especificamente requeridos pela FUNAI no Parecer Técnico 21/09, recém enunciados; e 3) garanta a rápida finalização dos processos de regularização das terras ancestrais dos povos indígenas na bacia do Xingu que estão pendentes, e adote medidas efetivas para a proteção dos mencionados territórios ancestrais ante a apropriação ilegítima e ocupação por não indígenas, e frente a exploração ou o deterioramento de seus recursos naturais”.
IV – Na hipótese dos autos, a superveniente constatação, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, da ineficácia do denominado “Hidrograma de Consenso”, adotado como “principal instrumento de mitigação dos impactos oriundos da UHE Belo Monte, cuja função seria efetuar o controle de vazões por meio da alternância dos dois ciclos hidrológicos controlados pela Concessionária (ciclo/hidrograma A, com a liberação de 4mil m³/s para a Volta Grande do Xingu no mês de maior cheia; ciclo/hidrograma B, com a liberação mensal máxima de 8mil m³/s), permitindo a recuperação dos ecossistemas afetados”, do que resultou, na fase de operação da usina, desequilíbrio em cascata gerado pelo desvio do fluxo hídrico, com nefastos reflexos nos seio das comunidades indígenas e ribeirinhas atingidas, afigura-se adequada e razoável a tutela cautelar inibitória adotada pelo juízo monocrático, no sentido de se determinar a utilização, em caráter provisório, durante o exercício de 2021, no Trecho de Vazão Reduzida, um regime de vazão equivalente ao previsto no Hidrograma Provisório definido no Parecer Técnico nº 133/2019/IBAMA/COHID, enquanto não estabelecidas as vazões seguras a serem praticadas na Volta Grande do Xingu e, a partir dali, um regime de vazões suficiente para garantir a efetiva sustentabilidade etnoambiental da Volta Grande do Xingu, de acordo com os Estudos Complementares a serem apresentados pela concessionária Norte Energia S/A, até 31 de dezembro de 2021, previamente aprovados por parecer técnico do IBAMA, com estrita observância dos atos normativos de regência, assegurando-se a manutenção dos ecossistemas, dos modos de vida e da navegação na Volta Grande do Xingu, o respeito aos princípios da precaução, da informação, da transparência e à tecnicidade das decisões, bem assim, a consulta Prévia, Livre e Informada das populações tradicionais moradoras da região.
V – Agravo de instrumento desprovido. Decisão agravada confirmada.
Concluiu o magistrado pela manutenção da decisão agravada, tendo o colegiado acompanhado o voto por unanimidade.
Processo 1026716-47.2021.4.01.0000