A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou jurisprudência da corte e negou provimento a recurso especial aplicando a tese de que não é possível empregar a teoria do fato consumado em matéria ambiental. Um restaurante na Praia do Madeiro, em Tibau do Sul (RN), tentava afastar a suspensão de suas atividades, determinada pelo Ibama, ao argumento de que estava no local havia mais de 15 anos.
Em 2012, o órgão de fiscalização aplicou multa de R$ 100 mil ao proprietário e embargou o estabelecimento, que se situava em área de praia, local protegido pela legislação ambiental. O juízo de primeiro grau e o Tribunal Regional Federal da 5ª Região confirmaram a regularidade da atuação do Ibama e consideraram improcedentes os pedidos do proprietário para restabelecer o funcionamento do restaurante.
No recurso especial, a parte alegou que não houve fundamentação legal na atuação do Ibama, já que se tratava de propriedade particular, e não da União, e que possuía as licenças da prefeitura para funcionar. Disse ainda que haveria a necessidade de se manter a segurança jurídica, por já estar no local há quase duas décadas.
Para o relator, ministro Og Fernandes, “a proteção do direito adquirido não pode ser suscitada para mitigar o dever de salvaguarda ambiental, não servindo para justificar o desmatamento da flora nativa, a ocupação de espaços especialmente protegidos pela legislação, tampouco para autorizar a manutenção de conduta potencialmente lesiva ao meio ambiente”. O ministro lembrou que esse entendimento é amparado pela Súmula 613 do STJ.
Patrimônio nacional
O autor do recurso afirmou que não houve afronta ao artigo 10 da Lei 7.661/98, uma vez que a área do estabelecimento comercial não se amoldaria ao conceito de proteção do dispositivo legal.
Segundo o ministro, no entanto, ficou claro que o restaurante se encontra na faixa de proteção legal, sendo considerado bem público e de uso comum, não podendo ter construções nem limitações que individualizem o seu uso. O local ainda é área de proteção ambiental, em que ocorre a desova de tartarugas marinhas, com atuação do Projeto Tamar.
O relator ressaltou que a legislação se antecipou ao dispositivo constitucional ao estabelecer a zona costeira como patrimônio nacional, devendo a sua utilização ser feita dentro de condições que assegurem a preservação ambiental. “A legislação prevê a vedação à privatização das nossas praias, prática essa que, infelizmente, verifica-se de forma frequente ao longo do litoral brasileiro, contrariando a natureza difusa do interesse público do bem jurídico ambiental”, disse ele.
Contraditório e ampla defesa
Em seu voto, o ministro Og Fernandes não acolheu os argumentos da parte quanto a não ter tido direito ao contraditório e à ampla defesa no processo administrativo.
O relator esclareceu que a atuação do Ibama ocorreu em plena observância à previsão normativa e que, no caso, o processo administrativo e suas garantias ocorrem em momento posterior à autuação, para verificar a regularidade das ações do órgão.
“O legítimo exercício do poder de polícia é imbuído de autoexecutoriedade, dispensa ordem judicial. Diante da flagrante irregularidade – construção erigida em área de uso comum do povo e de desova de tartarugas –, o poder público tem o poder e o dever de realizar a notificação e o embargo do empreendimento”, explicou o ministro. Para ele, se a administração adotasse entendimento diverso, ocorreria o esvaziamento da atividade fiscalizatória.
O recurso ficou assim ementado:
AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO. PROVA PERICIAL. DESNECESSIDADE. SÚMULA 7/STJ. AUTO DE INFRAÇÃO. NÃO HÁ VIOLAÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA POR INEXISTÊNCIA DE UM DIREITO ADQUIRIDO A POLUIR. INVIÁVEL MITIGAR O PODER DE POLÍCIA SOB ALEGAÇÃO DE OFENSA A AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. PRAIA DO MADEIRO. RESTAURANTE LOCALIZADO EM PRAIA. BEM DE USO COMUM DO POVO. INVIÁVEL ANÁLISE DE MATEIRA FÁTICO-PROBATÓRIA. FALÉSIA. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. TERRENO DE MARINHA. DOMÍNIO DA UNIÃO. LOCAL DE NIDIFICAÇÃO DE TARTARUGAS MARINHAS. PROPRIEDADE DO ESTADO. CONSTRUÇÃO ILEGAL. SÚMULA 7/STJ.
1. Não há falar em omissão no julgado apta a revelar a infringência ao art. 1.022 do CPC/2015, porquanto o acórdão recorrido fundamentou claramente o posicionamento por ele assumido, de modo a prestar a jurisdição que lhe foi postulada.
2. Para modificar as conclusões da Corte de origem no que toca à desnecessidade de prova pericial, seria imprescindível o reexame da matéria fático-probatória da causa, o que é defeso em recurso especial ante o que preceitua a Súmula 7/STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.” Precedentes.
3. O legítimo exercício do poder de polícia é imbuído de autoexecutoriedade, dispensa ordem judicial, nesse aspecto, diante da flagrante irregularidade – construção erigida em área de uso comum do povo e de desova de tartarugas -, o poder público tem o poder e o dever de realizar a notificação e o embargo do empreendimento.
4. Inaplicabilidade da teoria do fato consumado. Não há falar em direito adquirido à manutenção de situação que gere prejuízo ao meio ambiente.
5. O Tribunal a quo assegura – alicerçado na prova dos autos – que a área em que realizada a construção irregular é área de preservação permanente. Incide na espécie nítida violação do ordenamento jurídico, pois o restaurante está inserido: a) em terreno de marinha sem autorização da União; b) em Área de Preservação Permanente (falésias); c) em praia, bem de uso comum do povo; d) em superfície de nidificação de quelônios; e e) em razão de ausência de licenciamento ambiental.
6. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, nego-lhe provimento.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1706625