O Tribunal Superior Tribunal de Justiça publicou na data de ontem o acórdão dos processos em que envolve a contratação de trabalhadores brasileiros para os navios de cruzeiro.
O acórdão vale para os 8 processos, e a mesma ficou assim:
RECURSO DE EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA COM AGRAVO. INTERPOSIÇÃO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. APLICAÇÃO DA LEI TRABALHISTA NO ESPAÇO. EMPREGADO DE NAVIO DE CRUZEIROS MARÍTIMOS. LABOR EM ÁGUAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS. CONTRATO FIRMADO NO BRASIL. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. ART. 3º, II, DA LEI Nº 7.064/82. CÓDIGO DE BUSTAMANTE. LEI DO PAVILHÃO. “BANDEIRA DE CONVENIÊNCIA”. TEORIA DO CENTRO DA GRAVIDADE . DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. PREVALÊNCIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO SER HUMANO (“PRINCÍPIO PRO HOMINE “). “CLÁUSULA DE BARREIRA” CONTIDA NO ART. 19, ITEM 8, DA CONSTITUIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT . CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, ART. 4º, II. CONVENÇÃO Nº 186 DA OIT. GARANTIA DE DIREITOS MÍNIMOS NA ORDEM INTERNACIONAL. TEMA DE REPERCUSSÃO GERAL 210 DO STF. APLICAÇÃO RESTRITA À RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DAS TRANSPORTADORAS INTERNACIONAIS DE PASSAGEIROS. As normas de regência do trabalho executado no interior de embarcações estrangeiras são definidas a partir do critério estabelecido no Código de Bustamante (Convenção de Direito Internacional Privado de Havana, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 18.871/1929). Referido Diploma, nos seus arts. 274 e seguintes, determina a incidência da chamada “Lei do Pavilhão”, segundo a qual a lei material aplicável a tais relações é a do país da bandeira da embarcação. A jurisprudência nacional e a comunidade jurídica internacional, contudo, têm relativizado essa regra, principalmente nas hipóteses de adoção de “bandeiras de conveniência ou de aluguel” – prática na qual a empresa armadora/proprietária faz o registro da embarcação em país diverso daquele em que concentra suas operações, com o intuito de se submeter a leis e controles governamentais mais brandos. Conforme ilustra a doutrina, as consequências advindas de tal prática são gravíssimas e de diversas ordens, sobretudo no que tange à violação de direitos humanos e da dignidade dos trabalhadores . Por outro lado, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), ratificada pelo Brasil, exige, em seu artigo 91, a existência de “vínculo substancial entre o Estado e o navio” que arvora sua bandeira. No presente caso, as próprias reclamadas afirmaram, na contestação, que os navios em que o reclamante prestou serviços arvoram bandeira do Panamá, não obstante a primeira ré possua sede na Suíça e a segunda, empresa armadora, na República de Malta. Destaca-se que o Panamá há muito tem sido visto como nação cuja bandeira é comumente adotada como de conveniência, aspecto já reconhecido por esta Justiça, há, pelo menos, 59 anos e, ainda hoje , País figura na lista de países associados a “bandeiras de conveniência” elaborada pela Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF) – entidade sindical internacional cujas normas coletivas as rés sustentam cumprir. Afastada a Lei do Pavilhão para os navios em que o reclamante prestou serviços, remanesceria aplicável à hipótese a regra geral da Lei nº 7.064/82, que trata dos empregados brasileiros contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior, tendo em vista que, de acordo com o quadro fático dos autos, o autor iniciou seu contrato de trabalho em território brasileiro, ou, pelo menos, aqui foi recrutado por meio de empresa de recrutamento, a pedido da reclamada. Incide, assim, o artigo 2º, I e III, da aludida Lei. Nessa hipótese, consoante o artigo 3º do mencionado Diploma, aplica-se a lei brasileira quando mais favorável que a legislação territorial, no conjunto de normas em relação a cada matéria . Esse aspecto, aliás, faz atrair fundamento que suplantaria qualquer outro no âmbito do direito internacional dos direitos humanos, concernente à aplicabilidade da norma mais favorável ao ser humano , em caso de eventual conflito, por estreita aderência ao disposto no art. 19, item 8, da Constituição da Organização Internacional do Trabalho – OIT (norma vigente no Brasil e na Suíça), que, de forma clara, estabelece inequívoca “cláusula de barreira” à aplicação do direito internacional e ao mesmo tempo a prevalência do direito interno, quando mais favorável. Significa dizer que o conjunto normativo oriundo daquela Organização somente prevalecerá se e somente se for mais favorável que o direito interno, seja ele proveniente de lei, decisão judicial, normas coletivas ou mesmo consuetudinárias . Ao ratificar a mencionada norma internacional, base de toda a hermenêutica dos direitos humanos e, em especial, dos direitos sociais, o Brasil incorporou essa diretriz e deve ser ela observada, de forma imperativa, pelo Poder Judiciário. Diga-se de passagem, sequer seria necessária a menção expressa a ela, pois o princípio da prevalência da norma mais favorável ao indivíduo orienta a aplicação de todo direito internacional dos direitos humanos (princípio pro homine ). Sobre o tema, André de Carvalho Ramos observa ser “aparente” o eventual conflito entre normas, em virtude da prevalência do citado princípio, segundo o qual “nenhuma norma de direitos humanos pode ser invocada para limitar, de qualquer modo, o exercício de qualquer direito ou liberdade já reconhecida por outra norma internacional ou nacional”. Dirley da Cunha Júnior lembra do sistema aberto de direitos humanos, consagrado por meio da “cláusula de abertura material ou de inesgotabilidade dos direitos fundamentais” prevista no artigo 5º, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil, que permite a incorporação de quaisquer outros, desde que em consonância com o regime democrático, vinculado ao Estado de Direito Democrático, e com os princípios nela adotados. Permite acolher outros direitos além daqueles nela previstos, ainda que não “estejam incluídos numa constituição ou declaração formalizada […]. Basta que ostentem a natureza de fundamentalidade material”. Valério de Oliveira Mazzuoli denomina como “cláusula de diálogo” ou “cláusula de retroalimentação”, por permitir a contínua interpenetração do direito internacional e do direito interno na regência do caso e desse conjunto extrair-se a norma mais benéfica a incidir sobre a controvérsia, amparado no princípio da prevalência dos direitos humanos. Essa diretriz, aliás, encontra-se materializada na previsão contida no artigo 4º, II, da Constituição brasileira, ao relacionar o princípio da prevalência dos direitos humanos como um dos que regem as relações internacionais do País , expressamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal . Quanto à aplicação da Convenção nº 186 da OIT (Convenção sobre Trabalho Marítimo – CTM ), vigente na ordem internacional a partir de 20/08/2013 e incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto nº 10.671, de 9/04/2021, que se destina a assegurar direitos iguais a essa categoria de trabalhadores – a denominada “gente do mar” – e se imporia às respectivas legislações nacionais por uniformizar as normas sobre trabalho marítimo, ainda que não possa ser aplicada de forma retroativa, não pode colidir com o citado princípio, indicado expressamente na Constituição Federal, também se choca – e de modo frontal – com a Constituição da OIT ( art. 19, item 8, já mencionado). Com efeito, quando, no direito interno, houver norma mais benéfica, o direito internacional cede-lhe passagem. Não seria diferente, na medida em que busca aquela entidade internacional de direitos humanos assegurar o patamar mínimo de direitos aos trabalhadores , indistintamente, mas em nenhum momento, ao pretender atingir esse desiderato, afasta os sistemas normativos dos diversos países que consagrem preceitos vantajosos . Admitir-se tal hipótese revelaria insustentável contrassenso e importaria, ao final, proteção às avessas, por acarretar redução de direitos . Aliás, a própria CTM expressamente destaca essa orientação, ao relembrá-la (o termo é nela utilizado) no seu Preâmbulo. Ainda, em relação à invocação feita ao artigo 178 da Constituição da República e ao Tema 210 de Repercussão Geral, tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 363.331/RJ, segundo a qual haveria prevalência das normas e tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, em relação ao Código de Defesa do Consumidor, a simples leitura do precedente invocado afasta a tese de aplicação da mesma ratio decidendi, conforme estabelecido pelo próprio relator, Ministro Gilmar Mendes, porque o caso analisado não tratava de direitos humanos , o que levou à solução com base nos métodos de solução de antinomias entre normas de igual hierarquia, em especial os critérios cronológicos e de especialidade, o que, seguramente, não se aplica às normas internacionais de direitos humanos , como as Convenções da OIT. Ademais, a doutrina e jurisprudência também têm admitido o afastamento da Lei do Pavilhão com base no Princípio do Centro da Gravidade , ou do most significant relationship , segundo a qual as regras de Direito Internacional Privado podem ceder espaço a outra legislação, quando demonstrado que esta possui ligação mais forte com os fatos e a relação jurídica em análise. Em situações análogas a do presente caso, este Tribunal já decidiu pela aplicação da Teoria do Centro Gravitacional. Na hipótese, considerando que o autor: a) foi recrutado e treinado no Brasil, por meio da agência Rosa dos Ventos; b) teve passagens para embarque custeadas pela empregadora; c) embarcou, ao menos em uma oportunidade, em porto brasileiro; e d) prestou parte de seus serviços na costa brasileira, correta, ainda, a aplicação da Teoria do Centro da Gravidade, pois nítido que os fatos e o problema jurídico ora em análise possuem maior ligação com o ordenamento trabalhista brasileiro. Precedentes. Recurso de embargos conhecido e provido .
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