Ao julgar embargos de declaração na PET 3388, o STF confirmou a validade das salvaguardas adotadas na decisão sobre a demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol. A decisão, porém, não se estende a outros litígios sobre terras indígenas.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, na tarde desta quarta-feira (23), a validade das 19 salvaguardas adotadas no processo que decidiu pela manutenção da demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, mas esclareceu que a decisão tomada na Petição (PET) 3388 não tem efeito vinculante, não se estendendo a outros litígios que envolvam terras indígenas. Os ministros também decidiram que os índios podem realizar suas formas tradicionais de extrativismo mineral, como para a produção de brincos e colares, sem objetivo econômico. O garimpo e a chamada faiscação, com fins comerciais, dependem de autorização expressa do Congresso Nacional.
O caso
Em março de 2009, ao concluir o julgamento da PET 3388, a Corte considerou válidos a portaria e o decreto presidencial que homologaram a demarcação da reserva, e listou uma série de condições para a execução da decisão, que seria supervisionada pelo Supremo com apoio do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Contra a decisão foram apresentados sete embargos de declaração, pedindo esclarecimentos e até mesmo mudanças na decisão.
Salvaguardas
A Procuradoria Geral da República (PGR) questionou, inicialmente, a validade das condicionantes incorporadas ao acórdão da PET 3388. Para a PGR, não caberia ao STF traçar parâmetros abstratos de conduta, quando esses temas não foram sequer objeto de discussão no processo, e não permitiram direito ao contraditório. Para a Procuradoria, a Corte extrapolou os limites da causa.
O relator do caso, ministro Roberto Barroso, concordou que a incorporação das salvaguardas foi uma decisão atípica, mas observou que, sem elas, seria impraticável pôr fim ao conflito existente na região. As salvaguardas foram uma espécie de regime jurídico a ser seguido para a execução do decidido, explicando o sistema constitucional incidente na matéria.
Ao negar provimento aos embargos da PGR neste ponto, o relator foi acompanhado pela maioria dos ministros presentes à sessão, à exceção dos ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, para quem o STF, ao criar as condicionantes, teria extrapolado o objeto da causa, traçando parâmetros abstratos e alheios ao que fora proposto na ação original. Em todo o julgamento, estas foram as únicas divergências quanto ao conteúdo material do julgado.
Vinculação
A decisão do STF sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas, explicou o ministro Barroso ao analisar outro ponto dos embargos da PGR. A decisão vale apenas para a reserva em questão. Nesse sentido, Barroso lembrou que a Corte já negou reclamações em outros casos, que alegavam desrespeito à decisão tomada nesta Petição.
Contudo, o ministro ressaltou que a ausência de vinculação formal não impede que a jurisprudência construída pelo STF, estabelecendo diretrizes, possa ser seguida pelas demais instâncias. Isso porque, embora não possua efeitos vinculantes, “a decisão ostenta a força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”, arrematou Barroso.
Primazia
A PGR também sustentou que a decisão do STF teria dado primazia aos interesses da União, em detrimento dos direitos indígenas. Para o ministro Barroso, contudo, não existiu a alegada primazia, a quem quer que seja. O STF apenas definiu como deveriam ser conciliadas as forças antagônicas presentes no litígio. De acordo com o ministro, não existe direito absoluto: os direitos dos índios são tão importantes quanto o direito à proteção ambiental ou à defesa nacional.
Outro ponto levantado pela PGR dizia respeito à necessidade de edição de lei complementar para a utilização das terras indígenas para fins econômicos, militares ou para a manutenção de serviços públicos. O relator explicou que, se não fosse regulamentado esse ponto, por meio de uma das salvaguardas constantes da decisão do STF, haveria óbice às ações para prestação de serviços públicos – como educação ou saúde, por exemplo –, e ações relativas à soberania e defesa nacional. Esse impedimento, segundo ele, não seria compatível com o conjunto da Constituição.
Consulta
A PGR também se manifestou sobre a necessidade de participação das comunidades indígenas nas deliberações que afetem seus interesses diretos. O ministro-relator explicou que o acórdão na PET 3388 destaca que o direito de prévia consulta às comunidades deve ceder diante de questões estratégicas, como a defesa nacional, soberania ou a proteção ambiental, que podem prescindir de prévia comunicação a quem quer que seja, incluídas as comunidades indígenas.
Ele alertou, porém, para o fato de que essa possibilidade não pode ser usada como subterfúgio para afastar a participação dos índios nas tomadas de decisões. Além disso, lembrou que a União e os indígenas podem recorrer de qualquer decisão que julgarem ilegal.
Ampliação
Quanto ao impedimento para ampliação das áreas demarcadas, o ministro explicou que, se não fosse feita essa salvaguarda, e fosse permitida a ampliação de demarcações, estaria se criando um ambiente de insegurança jurídica. A vedação, contudo, não impede que determinada área seja aumentada, por meio de compra de áreas contíguas pelos próprios índios ou pela União, ou pela desapropriação de terras.
Roberto Barroso explicou, ainda, que o acórdão questionado não proíbe toda e qualquer revisão do ato de demarcação: o controle judicial dos processos demarcatórios é plenamente admitido. “Não fosse assim, o STF sequer teria julgado a Petição”, afirmou. Mas a revisão não pode ser fundada na conveniência do administrador. Isso porque ampliação ou revisão de terras indígenas não depende de avaliação política, e sim de estudo técnico antropológico. Qualquer modificação não pode depender de interesses políticos momentâneos.
Garimpagem e faiscação
As comunidades indígenas de Socó, Barro, Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e Manalai questionaram a necessidade de os índios obterem permissão para exercerem a chamada lavra garimpeira. Uma das salvaguardas incluídas no acórdão diz que os índios não poderão, sem autorização do Congresso Nacional, explorar recursos hídricos e energéticos da reserva. A própria Constituição prevê que o usufruto não permite a exploração de recursos.
Em seu voto, o ministro Barroso defendeu a validade da cláusula, mas disse entender que não se pode confundir mineração – exploração econômica – com formas tradicionais de extrativismo, históricas, integrantes do modo de vida de determinadas comunidades indígenas. Para Barroso, deve ser permitida aos índios a forma tradicional de extrativismo mineral, sem finalidade econômica, como para a produção de brincos e colares.
Questões
Outro embargante, o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), fez uma série de perguntas que foram respondidas pelo relator na sessão desta quarta.
Sobre a possibilidade de permanência de pessoas não índias, miscigenadas ou que vivam maritalmente com índios, Barroso frisou que a decisão não se baseou em critérios genéticos, mas socioculturais. Para o ministro, podem permanecer na Raposa Serra do Sol todos que integrem comunidades indígenas locais, pouco importando se possuem ancestrais índios ou se têm vínculo de sangue ou de união.
As autoridades religiosas de denominações não indígenas e seus templos podem permanecer nas áreas, desde que aceitos pelas comunidades locais, e não pretendam intervir na forma de viver dos índios. As comunidades têm autonomia para decidir se aceitam, ou não, a presença de missionários e seus templos nas áreas indígenas.
Da mesma forma, as escolas públicas estaduais e municipais podem continuar funcionando na reserva. De acordo com o ministro Barroso, o acórdão na PET 3388 foi expresso no sentido de que estado e municípios devem continuar a prestar serviços públicos na área, respeitando, contudo, as normas federais sobre educação dos índios.
O ministro também explicou que os não índios podem passar pelas rodovias públicas que atravessam a Raposa Serra do Sol – mais especificamente a Boa Vista-Pacaraima e a BR 433 –, sem ter o direito de usufruto sobre rios, lagos e riquezas da região. Os índios não exercem poder de polícia, e não podem impedir a passagem de cidadãos por vias públicas.
O relator lembrou, ainda, que, no julgamento da PET 3388, o STF não apreciou ações individuais de portadores de títulos de propriedade de terras na região, apenas julgou a validade da portaria e do decreto que homologaram a demarcação da Raposa Serra do Sol. Assim, ações individuais devem ser analisadas caso a caso, pelas instâncias locais, levando em conta o teor do julgamento. Por fim, salientou que eventuais conflitos entre grupos indígenas quanto à ocupação ou desocupação de fazendas deverão ser resolvidos pela própria comunidade, sob supervisão da União e da Fundação Nacional do Índio (Funai).
O senador Mozarildo Cavalcanti questionou o fato de o STF proceder à execução de uma decisão declaratória. Em seu voto, o ministro Barroso mencionou que o que a Corte fez foi declarar a validade da portaria e do decreto que homologaram a demarcação, estabelecendo condições pelas quais ela seria implementada. O que está sendo executado não é a decisão, mas a portaria e o decreto. “O STF chamou para si a efetivação do julgado diante do histórico de conflitos na região”, afirmou. “Seria ingênuo supor que a mera declaração faria cessar a oposição indevida aos direitos reconhecidos no processo”.
O senador também questionou a ausência de citação do Estado de Roraima. Sobre este ponto, o ministro explicou que, após a instrução do processo, o Estado pleiteou seu ingresso no feito como litisconsorte, ao lado do autor, mas os ministros decidiram admitir o estado como assistente simples, colhendo o processo na situação em que se encontrava.
Fazenda Guanabara
O autor da PET 3388, ex-senador Augusto Affonso Botelho Neto, recorreu contra a decisão alegando que a Fazenda Guanabara deveria ser excluída da área demarcada, uma vez que seria propriedade privada desde 1918, tendo sido reconhecido o domínio particular por sentença transitada em julgado em 1983. O ministro negou provimento aos embargos, lembrando que a questão da fazenda foi expressamente mencionada nos votos dos ministros Ayres Britto (aposentado), Menezes Direito (falecido) e Gilmar Mendes.
Jurisdição
Ao final do julgamento, o ministro revelou que recebeu informação do desembargador federal Jirair Megherian, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que auxiliou o relator original, ministro Ayres Britto, no sentido de que a execução da decisão já foi integralmente concluída. Segundo o desembargador, em junho de 2009 não havia nenhum não índio na terra indígena Raposa Serra do Sol. Não houve necessidade de prisão, e a maior parte dos não índios que tiveram que sair já sacou valores depositados pela Funai a título de indenização por benfeitorias advindas da ocupação de boa-fé.
Assim, concluída a execução, o ministro Barroso propôs que, transitada em julgado essa decisão, a jurisdição do STF está encerrada no caso. A proposta foi acolhida pelos ministros presentes ao final da sessão desta quarta.
O recurso ficou assim ementado:
AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. 1. AÇÃO NÃO CONHECIDA EM PARTE. Ação não-conhecida quanto à pretensão autoral de excluir da área demarcada o que dela já fora excluída: o 6º Pelotão Especial de Fronteira, os núcleos urbanos dos Municípios de Uiramutã e Normandia, os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes, as linhas de transmissão de energia elétrica e os leitos das rodovias federais e estaduais também já existentes. Ausência de interesse jurídico. Pedidos já contemplados na Portaria nº 534/2005 do Ministro da Justiça. Quanto à sede do Município de Pacaraima, cuida-se de território encravado na “Terra Indígena São Marcos”, matéria estranha à presente demanda. Pleito, por igual, não conhecido. 2. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS PROCESSUAIS NA AÇÃO POPULAR. 2.1. Nulidade dos atos, ainda que formais, tendo por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras situadas na área indígena Raposa Serra do Sol. Pretensos titulares privados que não são partes na presente ação popular. Ação que se destina à proteção do patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe (inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição Federal), e não à defesa de interesses particulares. 2.2. Ilegitimidade passiva do Estado de Roraima, que não foi acusado de praticar ato lesivo ao tipo de bem jurídico para cuja proteção se preordena a ação popular. Impossibilidade de ingresso do Estado-membro na condição de autor, tendo em vista que a legitimidade ativa da ação popular é tão-somente do cidadão. 2.3. Ingresso do Estado de Roraima e de outros interessados, inclusive de representantes das comunidades indígenas, exclusivamente como assistentes simples. 2.4. Regular atuação do Ministério Público. 3. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO. 3.1. Processo que observou as regras do Decreto nº 1.775/96, já declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 24.045, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa. Os interessados tiveram a oportunidade de se habilitar no processo administrativo de demarcação das terras indígenas, como de fato assim procederam o Estado de Roraima, o Município de Normandia, os pretensos posseiros e comunidades indígenas, estas por meio de petições, cartas e prestação de informações. Observância das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 3.2. Os dados e peças de caráter antropológico foram revelados e subscritos por profissionais de reconhecidas qualificação científica e se dotaram de todos os elementos exigidos pela Constituição e pelo Direito infraconstitucional para a demarcação de terras indígenas, não sendo obrigatória a subscrição do laudo por todos os integrantes do grupo técnico (Decretos nos 22/91 e 1.775/96). 3.3. A demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é “ato estatal que se reveste da presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade” (RE 183.188, da relatoria do ministro Celso de Mello), além de se revestir de natureza declaratória e força auto-executória. Não comprovação das fraudes alegadas pelo autor popular e seu originário assistente. 4. O SIGNIFICADO DO SUBSTANTIVO “ÍNDIOS” NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O substantivo “índios” é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intra-étnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva. 5. AS TERRAS INDÍGENAS COMO PARTE ESSENCIAL DO TERRITÓRIO BRASILEIRO. 5.1. As “terras indígenas” versadas pela Constituição Federal de 1988 fazem parte de um território estatal-brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade, o Direito nacional. E como tudo o mais que faz parte do domínio de qualquer das pessoas federadas brasileiras, são terras que se submetem unicamente ao primeiro dos princípios regentes das relações internacionais da República Federativa do Brasil: a soberania ou “independência nacional” (inciso I do art. 1º da CF). 5.2. Todas as “terras indígenas” são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles “tradicionalmente ocupadas”. Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza político-territorial. 6. NECESSÁRIA LIDERANÇA INSTITUCIONAL DA UNIÃO, SEMPRE QUE OS ESTADOS E MUNICÍPIOS ATUAREM NO PRÓPRIO INTERIOR DAS TERRAS JÁ DEMARCADAS COMO DE AFETAÇÃO INDÍGENA. A vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as pessoas federadas em terras indígenas, desde que em sintonia com o modelo de ocupação por ela concebido, que é de centralidade da União. Modelo de ocupação que tanto preserva a identidade de cada etnia quanto sua abertura para um relacionamento de mútuo proveito com outras etnias indígenas e grupamentos de não-índios. A atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas como indígenas há de se fazer, contudo, em regime de concerto com a União e sob a liderança desta. Papel de centralidade institucional desempenhado pela União, que não pode deixar de ser imediatamente coadjuvado pelos próprios índios, suas comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização do Ministério Público (inciso V do art. 129 e art. 232, ambos da CF). 7. AS TERRAS INDÍGENAS COMO CATEGORIA JURÍDICA DISTINTA DE TERRITÓRIOS INDÍGENAS. O DESABONO CONSTITUCIONAL AOS VOCÁBULOS “POVO”, “PAÍS”, “TERRITÓRIO”, “PÁTRIA” OU “NAÇÃO” INDÍGENA. Somente o “território” enquanto categoria jurídico-política é que se põe como o preciso âmbito espacial de incidência de uma dada Ordem Jurídica soberana, ou autônoma. O substantivo “terras” é termo que assume compostura nitidamente sócio-cultural, e não política. A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão-só, em “terras indígenas”. A traduzir que os “grupos”, “organizações”, “populações” ou “comunidades” indígenas não constituem pessoa federada. Não formam circunscrição ou instância espacial que se orne de dimensão política. Daí não se reconhecer a qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base peculiarmente antropológica a dimensão de instância transnacional. Pelo que nenhuma das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer perante a Ordem Jurídica Internacional como “Nação”, “País”, “Pátria”, “território nacional” ou “povo” independente. Sendo de fácil percepção que todas as vezes em que a Constituição de 1988 tratou de “nacionalidade” e dos demais vocábulos aspeados (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro. 8. A DEMARCAÇÃO COMO COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO. Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91 da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e o § 5º do art. 231, ambos da Constituição Federal. 9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. 10. O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O DESENVOLVIMENTO. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de “desenvolvimento nacional” tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena. 11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da “Raposa Serra do Sol”. 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado “princípio da proporcionalidade”, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. 12. DIREITOS “ORIGINÁRIOS”. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente “reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de “originários”, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos” (§ 6º do art. 231 da CF). 13. O MODELO PECULIARMENTE CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. O modelo de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil coletivo e se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária. Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento em “bolsões”, “ilhas”, “blocos” ou “clusters”, a evitar que se dizime o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio). 14. A CONCILIAÇÃO ENTRE TERRAS INDÍGENAS E A VISITA DE NÃO-ÍNDIOS, TANTO QUANTO COM A ABERTURA DE VIAS DE COMUNICAÇÃO E A MONTAGEM DE BASES FÍSICAS PARA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS OU DE RELEVÂNCIA PÚBLICA. A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a eventual presença de não-índios, bem assim com a instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas. O que já impede os próprios índios e suas comunidades, por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas e inibir o regular funcionamento das repartições públicas. 15. A RELAÇÃO DE PERTINÊNCIA ENTRE TERRAS INDÍGENAS E MEIO AMBIENTE. Há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam áreas de “conservação” e “preservação” ambiental. Essa compatibilidade é que autoriza a dupla afetação, sob a administração do competente órgão de defesa ambiental. 16. A DEMARCAÇÃO NECESSARIAMENTE ENDÓGENA OU INTRAÉTNICA. Cada etnia autóctone tem para si, com exclusividade, uma porção de terra compatível com sua peculiar forma de organização social. Daí o modelo contínuo de demarcação, que é monoétnico, excluindo-se os intervalados espaços fundiários entre uma etnia e outra. Modelo intraétnico que subsiste mesmo nos casos de etnias lindeiras, salvo se as prolongadas relações amistosas entre etnias aborígines venham a gerar, como no caso da Raposa Serra do Sol, uma condivisão empírica de espaços que impossibilite uma precisa fixação de fronteiras interétnicas. Sendo assim, se essa mais entranhada aproximação física ocorrer no plano dos fatos, como efetivamente se deu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não há como falar de demarcação intraétnica, menos ainda de espaços intervalados para legítima ocupação por não-índios, caracterização de terras estaduais devolutas, ou implantação de Municípios. 17. COMPATIBILIDADE ENTRE FAIXA DE FRONTEIRA E TERRAS INDÍGENAS. Há compatibilidade entre o usufruto de terras indígenas e faixa de fronteira. Longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural das faixas de fronteira, a permanente alocação indígena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as instituições de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal, principalmente) se façam também presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias e agentes. Sem precisar de licença de quem quer que seja para fazê-lo. Mecanismos, esses, a serem aproveitados como oportunidade ímpar para conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência eventualmente malsã de certas organizações não-governamentais estrangeiras, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o inato sentimento de brasilidade. Missão favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras pessoas a revelar devoção pelo nosso País (eles, os índios, que em toda nossa história contribuíram decisivamente para a defesa e integridade do território nacional) e até hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém. 18. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS QUE SE COMPLEMENTAM. Voto do relator que faz agregar aos respectivos fundamentos salvaguardas institucionais ditadas pela superlativa importância histórico-cultural da causa. Salvaguardas ampliadas a partir de voto-vista do Ministro Menezes Direito e deslocadas, por iniciativa deste, para a parte dispositiva da decisão. Técnica de decidibilidade que se adota para conferir maior teor de operacionalidade ao acórdão.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO assim ementado:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. 1. Embargos de declaração opostos pelo autor, por assistentes, pelo Ministério Público, pelas comunidades indígenas, pelo Estado de Roraima e por terceiros. Recursos inadmitidos, desprovidos, ou parcialmente providos para fins de mero esclarecimento, sem efeitos modificativos. 2. Com o trânsito em julgado do acórdão embargado, todos os processos relacionados à Terra Indígena Raposa Serra do Sol deverão adotar as seguintes premissas como necessárias: (i) são válidos a Portaria/MJ nº 534/2005 e o Decreto Presidencial de 15.04.2005, observadas as condições previstas no acórdão; e (ii) a caracterização da área como terra indígena, para os fins dos arts. 20, XI, e 231, da Constituição torna insubsistentes eventuais pretensões possessórias ou dominiais de particulares, salvo no tocante à indenização por benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF/88, art. 231, § 6º). 3. As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada. Não apenas por decorrerem, em essência, da própria Constituição, mas também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva as graves controvérsias existentes na região. Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material. Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos. 4. A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões.
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