O atleta alegava que o vínculo era de amizade
A Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou examinar recurso do jogador de futebol Mario Fernandes contra decisão que o reconheceu como empregador do motorista particular que prestou serviços para ele na Rússia por mais de quatro anos. Segundo o atleta, que jogou no Grêmio e no Internacional (RS) e está atualmente no time russo Zenit, o motorista era um “parça”, ou amigo íntimo. Contudo, foram constatados os elementos que caracterizam o vínculo de emprego, entre eles o pagamento de ajuda de custo mensal.
Convite
Na ação, ajuizada em 2019, o motorista contou que foi convidado pelo jogador para ser seu motorista particular na Rússia e, de fevereiro de 2014 a setembro de 2018, morou no apartamento dele em Moscou.
Segundo seu relato, ficava à disposição 24 horas por dia e só tirava folga quando o atleta viajava para jogos. Quando seu visto temporário expirava e retornava ao Brasil, prestava serviços à irmã do jogador.
“Parça”
O atleta, naturalizado russo, sustentou que o motorista era, na verdade, seu “parça”, que ele convidava para passar temporadas em sua casa em Moscou e, nesses períodos, o levava e buscava nos treinos, “mas sem nenhum caráter profissional”. Ainda de acordo com ele, o “parça” participava de eventos como membro da família e tinha um quarto individual no apartamento, além de alimentação, vestuário, passeios, viagens internacionais, jantares em restaurantes sofisticados e outras vantagens.
Vínculo de emprego
Para o juízo de primeiro grau, as provas apontavam para uma relação fraternal de amizade íntima, sem os elementos jurídicos da relação empregatícia. Mas, para o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), o atleta não havia comprovado sua tese, e havia provas que caracterizariam a relação de emprego.
Conforme o TRT, o convite do jogador para o amigo ir morar na Rússia e levá-lo e buscá-lo nos treinos evidencia uma oportunidade de emprego, e a declaração de que pagara R$ 3 mil por mês, a título de ajuda de custo, durante todo o período caracteriza a onerosidade. O depoimento de uma testemunha que confirmou que era o “amigo” quem dirigia o automóvel configura habitualidade, e a subordinação seria característica da própria atividade.
Mas ao tentar rediscutir o caso no TST, o lateral-direito sustentou que não teria sido demonstrado, no acórdão regional, o preenchimento dos requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT, pois não ficou caracterizado nenhum dos elementos do vínculo de emprego, em especial a pessoalidade, continuidade ou não eventualidade.
Empregado doméstico
A relatora do recurso do atleta ao TST, ministra Kátia Arruda, observou que a função de motorista particular se enquadra em vínculo de emprego doméstico, por ser uma atividade não lucrativa em benefício do jogador. Essa situação é definida na Lei Complementar 150/2015.
De acordo com a relatora, o TRT foi categórico ao registrar que não houve prova da tese alegada pelo atleta e, por outro lado, o quadro descrito revela a pessoalidade, a onerosidade, a não eventualidade e a subordinação.
Sobre o jogador
O atleta, que tem domicílio no Brasil em São Caetano do Sul (SP) e atua como lateral, zagueiro e meia, foi contratado do CSKA, de Moscou, de 2012 a 2022, naturalizou-se russo e jogou na seleção daquele país na Copa de 2018. Retornou ao Brasil em 2022, em razão da guerra na Ucrânia, e foi contratado pelo Internacional (RS), onde jogou apenas cinco partidas. Retornou à Rússia em julho de 2023 para jogar no Zenit, rival do antigo clube.
O recurso ficou assim ementado:
I – AGRAVO DO RECLAMADO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. LEI Nº 13.467/2017. VÍNCULO DE EMPREGO. MOTORISTA PARTICULAR.
1 – A decisão monocrática negou provimento ao agravo de instrumento sob o entendimento que a pretensão recursal demandava o revolvimento de fatos e provas, Súmula 126 do TST, ficando prejudicada a análise da transcendência. Analisou apenas a tese defensiva relativa à alegação de que havia uma mera amizade íntima entre as partes e não vínculo de emprego.
2 – Todavia, foram duas as teses trazidas no agravo de instrumento e no recurso de revista, quais sejam: a) existência de mera relação de amizade íntima entre as partes e não existência de vínculo de emprego; b) não demonstração, no acórdão regional, do preenchimento dos requisitos dos arts. 2º e 3º da CLT.
3 – O agravante, nas razões do agravo, argui apenas a segunda tese, relativa ao não preenchimento dos requisitos dos arts. 2º e 3º da CLT. Defende que não é necessário o revolvimento de fatos e provas. Logo, apenas essa segunda tese, a única renovada em agravo, será analisada.
4 – Desse modo, revela-se salutar um exame mais pormenorizado a respeito do reconhecimento do vínculo de emprego pelo TRT.
5 – Agravo a que se dá provimento para prosseguir no exame do agravo de instrumento.
II – AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. RECLAMADO. LEI Nº 13.467/2017. VÍNCULO DE EMPREGO. MOTORISTA PARTICULAR.
1 – Deve ser reconhecida a transcendência jurídica para exame mais detido da controvérsia devido às peculiaridades do caso concreto. O enfoque exegético da aferição dos indicadores de transcendência em princípio deve ser positivo, especialmente nos casos de alguma complexidade, em que se torna aconselhável o debate mais aprofundado do tema.
2 – Discute-se no caso a existência de vínculo de emprego entre o reclamante e o reclamado, na função de motorista particular.
3 – Conforme quadro fático delineado, infere-se que a questão sub judice envolve a análise de vínculo de emprego doméstico, pois o reclamante atuava como motorista particular do reclamado, ou seja, realizava uma atividade não lucrativa em benefício do reclamado. Assim, a questão é regida pelo LC 150/2015, em especial o seu artigo 1º, que define o empregador e o empregado doméstico. Logo, por consequência, não há violação dos arts. 2º e 3º da CLT, que não tratam do empregado doméstico.
4 – Todavia, ainda que assim não se entenda, especialmente considerando a aplicação subsidiária da CLT ao empregado do doméstico (art. 19 da LC 150/2015), analisando a questão à luz dos arts. 2º e 3º da CLT, também não há violação dos referidos dispositivos, pelos dois fundamentos abaixo expostos.
5 – O primeiro deles é que, uma vez admitida a prestação de serviços, ainda que negada a existência de vínculo de emprego, cumpre ao reclamado demonstrar que a relação se deu de forma diversa do vínculo de emprego, tendo em vista que se trata de fato extintivo do direito do reclamante (arts. 818, II, da CLT e 373, II, do CPC). O Colegiado de origem foi categórico ao registrar que não houve prova da tese alegada pelo reclamado (existência de mero vínculo de amizade e não vínculo de emprego). Assim, o reclamado não se desincumbiu do seu ônus probatório de demonstrar que a prestação de serviço ocorreu pautada em relação jurídica diversa da empregatícia, sendo tal fato suficiente para a caracterização do vínculo de emprego, sem necessidade de análise específica e pormenorizada pelo julgador da existência de cada um dos requisitos do vínculo, por se tratar de julgamento por não observância do ônus probatório do reclamado, de modo que não há violação dos arts. 2º e 3º da CLT.
6 – Ademais, o segundo fundamento para justificar a ausência de violação dos arts. 2º e 3º da CLT é que, embora despicienda a análise pormenorizada de cada um dos elementos do vínculo de emprego, em razão da não observância do ônus probatório pelo reclamado, a Turma registra a presença dos elementos de formação do vínculo. Infere-se do quadro fático delineado que havia pessoalidade (convite para que o reclamante fosse morar na Rússia e para que dirigisse o carro do reclamante, levando-o e trazendo-o dos treinos, conforme contestação); onerosidade (intuito oneroso da relação, tanto é que havia pagamento); não eventualidade (já que o reclamante é que dirigia normalmente o veículo do reclamado); a subordinação é ínsita a atividade, não havendo elemento fático no quadro delineado pela Turma Regional de trabalho autônomo. Registrada a existência dos elementos do vínculo, não há violação dos arts. 2º e 3º da CLT.
7 – Por fim, os arestos colacionados são inespecíficos, nos termos da Súmula nº 296 do TST, na medida em que tratam da análise de casos nos quais não houve a presença dos elementos previstos no art. 3º da CLT.
8 – Agravo de instrumento a que se nega provimento.
Processo: AIRR-1001024-45.2019.5.02.0472