Para a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o servidor público que usa câmera escondida para filmar servidoras, funcionárias terceirizadas ou alunas em situações íntimas pode ser demitido pela prática de conduta escandalosa na repartição, como previsto no artigo 132, inciso V, da Lei 8.112/1990.
A partir desse entendimento, o colegiado negou provimento ao recurso especial interposto por um professor do Colégio Agrícola Dom Agostinho Ikas, vinculado à Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), que buscava anular sua demissão. Segundo o processo administrativo disciplinar (PAD) que fundamentou a decisão, o servidor teria produzido e armazenado – de forma dolosa e sem consentimento – vídeos de alunas, servidoras e empregadas terceirizadas da instituição, em horário e local de trabalho.
O pedido do autor foi considerado improcedente pelo juízo de primeiro grau, o que foi confirmado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5). A corte reforçou que o PAD garantiu o direito de defesa do recorrente e que ele admitiu a produção e a armazenagem dos vídeos sem autorização, além de se reconhecer nas cenas em que ele próprio aparecia nas filmagens.
Para servidor, atos praticados sem exposição pública não justificariam demissão
O servidor demitido recorreu ao STJ para reiterar, entre outros argumentos, que o processo administrativo – responsável por apurar, inicialmente, possível prática de assédio sexual – foi levado às autoridades policiais e arquivado por atipicidade da conduta. Para ele, esse resultado na área criminal afastaria possível punição administrativa.
O recorrente apontou ainda que os fatos apurados se restringiram à esfera privada, sem exposição pública ou comportamento que chamasse a atenção dos colegas de trabalho. Com isso, ele alegou que a pena de demissão não seria razoável nem proporcional.
Instância administrativa é independente das esferas penal e civil
De acordo com o relator, ministro Sérgio Kukina, a existência de uma sentença penal absolutória por ausência de provas não repercute em exame residual no âmbito do PAD, pois as instâncias civil, penal e administrativa são independentes.
O ministro destacou que é irrelevante o fato de o processo administrativo ter sido originalmente instaurado para apurar possível prática de assédio sexual, pois sua conclusão constatou a prática de infrações previstas na Lei 8.112/1990 (“incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição”).
Kukina observou que a conduta escandalosa não exige ampla exposição. Ele explicou que o comportamento, o qual ofende a moral administrativa, pode ocorrer de forma pública ou em ambiente reservado.
“Não há como se afastar da conclusão, firmada tanto pela comissão processante quanto pelo tribunal de origem, de que a conduta praticada pelo ora recorrente – que ‘filmava, por meio de câmera escondida, alunas, servidoras e funcionárias terceirizadas’, fato, aliás, admitido pelo servidor no âmbito do PAD, conforme consignado no acórdão recorrido – realmente caracteriza a infração prevista no artigo 132, V, parte final, da Lei 8.112/1990″, afirmou o ministro.
Não é possível aplicar sanção menos severa do que aquela prevista em lei
Segundo Kukina, a verificação de que o servidor de fato praticou a conduta indicada pela administração da universidade afasta a alegação de desrespeito aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na aplicação da pena de demissão. Nos termos do relator, o raciocínio do recorrente contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual esses princípios não podem ser invocados para substituir a pena de demissão legalmente prevista por outra menos grave.
“Tipificada a conduta ilícita nas hipóteses para as quais a lei prevê a penalidade de demissão como resposta indissociável, não pode a autoridade julgadora aplicar sanção diversa ou menos severa, ainda que em reverência ao princípio da proporcionalidade”, concluiu o relator.
O recurso ficou assim ementado:
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. REGULARIDADE DO PROCESSO DISCIPLINAR. ENCONTRO FORTUITO DE PROVA. LICITUDE. CONCLUSÃO DO PAD. EXCESSO DE PRAZO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. SÚMULA 592⁄STJ. APLICABILIDADE. CONDUTA ESCANDALOSA NA REPARTIÇÃO. ART. 132, V, PARTE FINAL, DA LEI 8.112⁄1990. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. INOCORRÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS RECURSAIS. FIXAÇÃO. POSSIBILIDADE.1. Cuida-se, na origem, de ação ordinária ajuizada em desfavor da Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE, em que o autor, ora recorrente, objetiva a anulação do ato administrativo de sua demissão do cargo de Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do quadro de pessoal da ré, amparada no art. 132, V, da Lei 8.112⁄1990 (“incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição”), por dolosamente ter produzido e armazenado, sem consentimento, vídeos de alunas, servidoras e empregada terceirizada do Colégio Agrícola Dom Agostinho Ikas da UFRPE – CODAI, dentro de ambiente laboral, em horário de trabalho.2. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que “não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide quando o julgador entende adequadamente instruído o feito, declarando a prescindibilidade da prova testemunhal com base na suficiência da prova documental apresentada” (AgInt no AREsp 1.782.370⁄SP, relator Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, DJe de 18⁄6⁄2021). Nesse mesmo sentido: AgInt no AREsp n. 2.032.252⁄AP, relator Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 1°⁄12⁄2022; AgInt no REsp n. 1.950.791⁄SP, relator Ministro MANOEL ERHARDT (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF5), PRIMEIRA TURMA, DJe de 24⁄2⁄2022.3. Caso concreto em que a materialidade da conduta imputada ao ora recorrente restou reconhecida pela Comissão Processante, assim como pelas instâncias ordinárias, a partir de prova material contida em um Hard Disk encontrado por um aluno e entregue à direção da UFRPE. Nessa toada, a alegação genérica de que o indeferimento da produção de prova testemunhal importaria em cerceamento de defesa, sem que sequer fossem explicitados os fatos que se pretendia comprovar, não tem o condão de suplantar os fundamentos adotados pelo Tribunal de origem, incidindo, no ponto, os óbices das Súmulas 283 e 284⁄STF. Nesse sentido: REsp n. 1.744.402⁄RS, relator Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 19⁄12⁄2019.4. A tese de nulidade da prova utilizada pela Comissão Processante, por sua vez, vem amparada em premissa fática que não encontra respaldo dos autos, uma vez que, como consignado no acórdão recorrido, o alegado furto do hard disk somente foi noticiado às autoridades policiais mais de dois anos após seu suposto cometimento, quando já instaurado o PAD. Assim, diante da impossibilidade de reexaminar todo o conjunto probatório dos autos, ante o óbice da Súmula 7⁄STJ, não há como se afastar da premissa adotada pela Comissão Processante, qual seja, de que a dita prova fora encontrada por um aluno de forma fortuita, o que afasta qualquer nexo de causalidade com o apontado delito suscitado pelo recorrente, inviabilizando, via de consequência, a aplicação da chamada “teoria dos frutos da árvore envenenada”. A propósito, mutatis mutandis, os seguintes julgados: AgRg no RHC n. 154.122⁄SP, relator Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, DJe de 30⁄9⁄2022; MS n. 25.131⁄DF, relator Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 8⁄5⁄2020.5. Nos termos da Súmula 592⁄STJ, “o excesso de prazo para a conclusão do processo administrativo disciplinar só causa nulidade se houver demonstração de prejuízo à defesa”.6. De acordo com a jurisprudência do STJ, “o acusado se defende dos fatos”, bastando, portanto, que “o termo de indiciamento elaborado pela comissão processante [contenha] descrição suficientemente detalhada dos ilícitos administrativos imputados ao indiciado, possibilitando-lhe a compreensão racional do que é chamado a responder”(MS n. 21.721⁄DF, relator Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 18⁄11⁄2022).7. Cabe ressaltar que “as instâncias cível, penal e administrativa são independentes. Desse modo, a sentença penal absolutória por ausência de provas do ora recorrente não repercute no exame do residual administrativo que envolve os fatos narrados” (AR n. 6.596⁄BA, relator Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 29⁄11⁄2021).8. Na espécie, é irrelevante que o PAD tenha sido originalmente instaurado “para apurar suposta prática de assédio sexual, consistente na captura de imagens íntimas de alunas, servidoras e funcionária terceirizada do CODAI, no ambiente de trabalho, através de câmera escondida, sem autorização, contidas num Disco Rígido (HD) Externo” (fl. 1.011), como consignado no acórdão recorrido. Isso porque se apresentam desnecessárias maiores considerações a respeito de a conduta narrada no PAD caracterizar, ou não, o crime de assédio sexual previsto no art. 216-A do Código Penal (“Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”), haja vista que não foi esse o fundamento que lastreou a demissão, e sim a premissa de que a conduta imputada ao recorrente se subsome ao disposto no art. 132, V, da Lei 8.112⁄1990.9. A “incontinência pública” não se confunde com “conduta escandalosa, na repartição”. A primeira hipótese se refere ao comportamento de natureza grave, tido como indecente, que ocorre de forma habitual, ostensiva e em público. Nesse sentido: RMS n. 39.486⁄RO, relator Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 2⁄5⁄2014; AgRg no RMS n. 27.998⁄AP, relator Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, DJe de 15⁄10⁄2012. Já a segunda modalidade pressupõe aquela conduta que, embora também ofenda a moral administrativa, pode ocorrer de forma pública ou às ocultas, reservadamente, mas que em momento posterior chega ao conhecimento da Administração.10. Nesse contexto, não há como afastar a conclusão firmada tanto pela Comissão Processante quanto pelo Tribunal de origem, no sentido de que a conduta praticada pelo ora recorrente – que “filmava, por meio de câmera escondida, alunas, servidoras e funcionárias terceirizadas”, fato, aliás, admitido pelo servidor no âmbito do PAD, conforme consignado no acórdão recorrido – caracteriza a infração prevista no art. 132, V, parte final, da Lei 8.112⁄1990.11. “A jurisprudência desta Corte também tem-se orientado no sentido de afastar a eventual ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, quando a pena de demissão do serviço público for a única punição prevista em lei pela prática das infrações disciplinares praticadas pelo servidor” (MS n. 21.937⁄DF, relatora p⁄ acórdão Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 23⁄10⁄2019). Nesse mesmo sentido: RMS 34.405-AgR, relator Ministro EDSON FACHIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 31⁄10⁄2018; MS n. 20.963⁄DF, relator Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 8⁄9⁄2020.12. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido.
Leia o acórdão no REsp 2.006.738.