Colegiado isenta Souza Cruz de indenizar família de fumante

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento a um recurso da Souza Cruz para afastar a responsabilidade civil pelos danos morais decorrentes da morte de um fumante diagnosticado com tromboangeíte obliterante.

O juiz de primeiro grau havia julgado improcedente o pedido de indenização feito pelos familiares, porém o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) entendeu que a doença foi consequência direta do consumo de cigarros da empresa durante 29 anos, o que justificaria a indenização por danos morais de R$ 300 mil.

No voto acompanhado pelos demais ministros do colegiado, o relator do recurso no STJ, ministro Villas Bôas Cueva, explicou que a falta de comprovação de nexo causal direto e imediato entre a conduta imputada à empresa e a doença desenvolvida pelo fumante inviabiliza o pedido de indenização. Segundo esclareceu o ministro, não é possível atribuir responsabilidade civil objetiva na modalidade do risco integral à fabricante de cigarros.

“A causa direta e imediata da morte não é um defeito do produto, como ocorreria, por exemplo, nos hipotéticos cenários da explosão de um cigarro, da distribuição de um lote alterado ou com prazo de validade expirado, da comprovação da presença de uma toxina em qualidade ou quantidade não regulamentadas ou, até mesmo, da descoberta de uma doença que acometa indistintamente todos os fumantes”, afirmou o relator.

Diversamente do que concluiu o TJRS, Villas Bôas Cueva também apontou a impossibilidade de comprovar que ao longo dos 29 anos de vício foram consumidos apenas cigarros da Souza Cruz, afirmando ser irrazoável transferir esse ônus para a empresa, visto que se trata de prova negativa de impossível elaboração.

Livre arbítrio

Outro ponto considerado pelos ministros foi que após a descoberta da enfermidade, em 1991, o paciente foi expressamente alertado pelos médicos da necessidade de parar de fumar, mas mesmo assim ele prosseguiu no vício até sua morte, em 2002.

“Essa constatação é crucial para se afastar, também, qualquer responsabilidade por violação do dever de informação, haja vista que o agravamento do quadro clínico do paciente se deu em período no qual, inequivocamente, este já dispunha de informações ostensivas acerca dos malefícios inerentes ao consumo de cigarro e, especificamente, acerca do modo como o seu próprio organismo reagia à droga”, fundamentou o relator. Não há notícia nos autos de que o paciente tenha optado por algum tratamento para parar de fumar.

Portanto, de acordo com o relator, é de se respeitar a liberdade de fazer escolhas, inclusive aquelas que sejam prejudiciais à saúde, sob pena de violação da autonomia individual que norteia a nossa ordem constitucional democrática.

Pressupostos legais

Villas Bôas Cueva lembrou que, embora se trate de um tema sensível, “as circunstâncias que envolvem o tabagismo, por si, não configuram automaticamente o dever de indenizar por danos morais e materiais no ordenamento jurídico brasileiro”.

É preciso, segundo o magistrado, haver os pressupostos legais para a responsabilização civil, quais sejam, a comprovação do dano, a identificação da autoria com a necessária descrição da conduta, e a demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano, entre outros aspectos.

Com o julgamento, a Terceira Turma corroborou o entendimento consolidado na Quarta Turma do STJ sobre o tema, no sentido de que o cigarro, cuja produção e comercialização são atividades lícitas, não é um produto defeituoso, mas de periculosidade inerente. Além disso, concluiu-se não ser possível aplicar as normas atuais de defesa do consumidor a fatos ocorridos no passado, que começaram antes mesmo da Constituição de 1988, especialmente no que se refere ao controle da publicidade promovida pela indústria tabagista.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. PRELIMINARES. NULIDADE DO ACÓRDÃO. NÃO CONFIGURAÇÃO. DIREITO DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL. FABRICANTE DE CIGARRO. MORTE DE FUMANTE. TROMBOANGEÍTE OBLITERANTE. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. LIVRE ARBÍTRIO DO CONSUMIDOR. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA. ATIVIDADE LÍCITA. MODIFICAÇÃO DOS PARADIGMAS LEGAIS. PRODUTO DE PERICULOSIDADE INERENTE. CASO CONCRETO. ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO. REANÁLISE. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 7⁄STJ. AUTORIA. NÃO COMPROVAÇÃO. NEXO DE CAUSALIDADE. NÃO COMPROVAÇÃO. DEVER DE INDENIZAR. NÃO CONFIGURAÇÃO.
1. Caso concreto em que a recorrente foi responsabilizada objetivamente pelos danos morais sofridos pelos familiares de fumante, diagnosticado com tromboangeíte obliterante, sob o fundamento de que a morte decorreu do consumo, entre 1973 e 2002, dos cigarros fabricados pela empresa.
2. Não há deficiência de fundamentação na hipótese em que as premissas fáticas foram bem delineadas e a decisão foi embasada na análise do conjunto probatório, incluindo referências aos depoimentos testemunhais dos médicos que assistiram o falecido, assim como o cotejo entre o caso concreto e o entendimento jurisprudencial e doutrinário acerca do tema.
3. Referências a textos científicos obtidos a partir de pesquisa realizada pelo magistrado não implicam, por si, nulidade ou violação do contraditório, quando utilizadas como mero reforço argumentativo. A vedação jurídico-constitucional é de que o juiz produza provas diretamente, ultrapasse os limites dos pedidos das partes ou se distancie do caso concreto, comprometendo sua imparcialidade, o que não ocorreu.
4. Controvérsia jurídica de mérito exaustivamente analisada pela Quarta Turma nos leading cases REsp nº 1.113.804⁄RS e REsp nº 886.347⁄RS. Resumo das teses firmadas, pertinentes à hipótese dos autos: (i) periculosidade inerente do cigarro; (ii) licitude da atividade econômica explorada pela indústria tabagista, possuindo previsão legal e constitucional; (iii) impossibilidade de aplicação retroativa dos parâmetros atuais da legislação consumerista a fatos pretéritos; (iv) necessidade de contextualização histórico-social da boa-fé objetiva; (v) livre-arbítrio do indivíduo ao decidir iniciar ou persistir no consumo do cigarro; e (vi) imprescindibilidade da comprovação concreta do nexo causal entre os danos e o tabagismo, sob o prisma da necessariedade, sendo insuficientes referências genéricas à probabilidade estatística ou à literatura médica.
5. A configuração da responsabilidade objetiva nas relações de consumo prescinde do elemento culpa, mas não dispensa (i) a comprovação do dano, (ii) a identificação da autoria, com a necessária descrição da conduta do fornecedor que violou um dever jurídico subjacente de segurança ou informação e (iii) a demonstração do nexo causal.
6. No que se refere à responsabilidade civil por danos relacionados ao tabagismo, é inviável imputar a morte de fumante exclusiva e diretamente a determinada empresa fabricante de cigarros, pois o desenvolvimento de uma doença associada ao tabagismo não é instantâneo e normalmente decorre do uso excessivo e duradouro ao longo de todo um período, associado a outros fatores, inclusive de natureza genética.
7. Inviável rever as conclusões do Tribunal estadual quanto à configuração do dano e ao diagnóstico clínico do falecido diante da necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório, procedimento vedado nos termos da Súmula nº 7⁄STJ.
8. Na hipótese, não há como afirmar que os produto(s) consumido(s) pelo falecido ao longo de aproximadamente 3 (três) décadas foram efetivamente aqueles produzidos ou comercializados pela recorrente. Prova negativa de impossível elaboração.
9. No caso, não houve a comprovação do nexo causal, sob o prisma da necessariedade, pois o acórdão consignou que a doença associada ao tabagismo não foi a causa imediata do evento morte e que o paciente possuía outros hábitos de risco, além de reconhecer que a literatura médica não é unânime quanto à tese de que a tromboangeíte obliterante se manifesta exclusivamente em fumantes.
10. Não há como acolher a responsabilidade civil por uma genérica violação do dever de informação diante da alteração dos paradigmas legais e do fato de que o fumante optou por prosseguir no consumo do cigarro em período no qual já havia a divulgação ostensiva dos malefícios do tabagismo e após ter sido especificamente alertado pelos médicos a respeito os efeitos da droga em seu organismo, conforme expresso no acórdão recorrido.
11. Aquele que, por livre e espontânea vontade, inicia-se no consumo de cigarros, propagando tal hábito durante certo período de tempo, não pode, doravante, pretender atribuir a responsabilidade de sua conduta a um dos fabricantes do produto, que exerce atividade lícita e regulamentada pelo Poder Público. Tese análoga à firmada por esta Corte Superior acerca da responsabilidade civil das empresas fabricantes de bebidas alcóolicas.
12. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido para restabelecer a sentença de primeiro grau que julgou improcedente a demanda indenizatória.

Leia o acórdão.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1322964

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