Há cinco décadas, os países-membros da Organização dos Estados Americanos assinavam a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) – também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, cidade na qual o tratado foi subscrito em 22 de novembro de 1969.
O documento entrou em vigor no Brasil em 25 de setembro de 1992, com a promulgação do Decreto 678/1992, e se tornou um dos pilares da proteção dos direitos humanos no país, ao consagrar direitos políticos e civis, bem como os relacionados à integridade pessoal, à liberdade e à proteção judicial.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em diversos processos, pautou-se pelas diretrizes estabelecidas na convenção – entendimentos que estão compilados na nova edição da Pesquisa Pronta, que traz teses sobre o Pacto de San José da Costa Rica nas áreas de direito penal, constitucional e processual penal.
Publicada pela Secretaria de Jurisprudência do STJ, a Pesquisa Pronta oferece em tempo real o resultado de buscas sobre determinados temas jurídicos, que são organizados por grupos predefinidos (assuntos recentes, casos notórios e teses de repetitivos) ou ramos do direito.
Congresso e livro
Para marcar o 50º aniversário da conferência que aprovou o Pacto de San José e o 28º de sua entrada em vigor no Brasil, o STJ vai promover, nos dias 12 e 13 de março de 2020, o Congresso sobre a Convenção Americana de Direitos Humanos, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e a Corte Europeia de Direitos Humanos.
Os interessados em apresentar trabalhos durante o evento poderão submetê-los a um processo seletivo, e os textos escolhidos também irão compor uma obra a ser coordenada pelo presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, e pelo juiz da Corte Europeia de Direitos Humanos Paulo Pinto de Albuquerque. O edital com os detalhes para o envio de artigos será divulgado em breve.
Status supralegal
A assinatura da convenção pelo Brasil ocorreu na vigência da Constituição de 1967, e a sua ratificação se deu sob a Constituição de 1988. Apesar da convergência entre os direitos estabelecidos nas normas constitucionais e no Pacto de San José, alguns pontos precisaram ser pacificados nos tribunais superiores.
A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 5º, LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel“.
No entanto, em seu artigo 7, item 7, a convenção veda qualquer prisão por dívida, ressalvada a hipótese do devedor de alimentos. Ainda assim, a jurisprudência se formou no sentido da constitucionalidade da prisão do depositário infiel, uma vez que o pacto ingressou no ordenamento jurídico na qualidade de norma infraconstitucional.
Após a Emenda Constitucional 45, de 2004 – que acrescentou o parágrafo 3° ao inciso LXXVIII do artigo 5º –, foi conferida aos tratados e às convenções de direitos humanos dos quais o Brasil seja signatário e que forem aprovados pelo Congresso Nacional, em votação de dois turnos, por três quintos de seus membros, a equivalência às emendas constitucionais.
Em razão disso, a orientação quanto aos tratados internacionais precisou ser alterada, em especial sobre aqueles que, anteriores à emenda, haviam sido aprovados por maioria simples, como ocorreu com o Pacto de San José.
No julgamento do RE 466.343, com repercussão geral (Tema 60), os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram que os tratados e as convenções internacionais sobre direitos humanos, se não incorporados como emenda constitucional, têm natureza de normas supralegais, paralisando, assim, a eficácia de todo o ordenamento infraconstitucional em sentido contrário.
Segundo a Suprema Corte, o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação infraconstitucional com eles conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.
Depositário infiel
O STF concluiu que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel não foi revogada pela CADH, mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o artigo 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei 911/1969.
Seguindo essa orientação, na sessão de 2 de dezembro de 2009, a Corte Especial do STJ, ao julgar, pelo rito dos recursos repetitivos (Tema 220), o REsp 914.253, de relatoria do ministro Luiz Fux (hoje no STF), adotou o novo entendimento firmado pela Suprema Corte em relação à prisão civil do depositário infiel. O tema também deu origem à Súmula 419 do STJ.
Para o ministro, a nova orientação significa que “toda lei antagônica às normas emanadas de tratados internacionais sobre direitos humanos é destituída de validade”.
No repetitivo, o colegiado decidiu que, “no plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade”.
Desacato
Em 2017, no julgamento do HC 379.269, a maioria dos ministros da Terceira Seção decidiu que desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela continua a ser crime, como previsto no artigo 331 do Código Penal, não havendo afronta à CADH.
Após uma decisão da Quinta Turma de dezembro de 2016 pela descriminalização da conduta, o colegiado afetou o habeas corpus para que a seção (que reúne as duas turmas de direito penal do STJ) pacificasse definitivamente a questão.
Ao fazer o controle de convencionalidade entre a norma legal brasileira e o Pacto de San José, os magistrados entenderam que a manutenção da tipificação do desacato no ordenamento jurídico não implica o descumprimento do artigo 13 da CADH, que trata da liberdade de expressão.
Segundo o ministro Antonio Saldanha Palheiro, autor do voto vencedor, a tipificação do desacato como crime é uma proteção adicional ao agente público contra possíveis “ofensas sem limites”. Para o magistrado, a figura penal do desacato não prejudica a liberdade de expressão, pois não impede o cidadão de se manifestar, “desde que o faça com civilidade e educação”.
Em seu voto, o ministro lembrou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos – instituição judiciária autônoma cujo objetivo é a interpretação e a aplicação da CADH – já se manifestou contrariamente sobre “leis de desacato” de outros países, mas ressaltou que não há precedentes em relação ao Brasil, não havendo, ademais, semelhanças nos casos decididos pela corte com os processos criminais brasileiros.
Saldanha observou ainda que o dispositivo penal brasileiro preenche de forma plena todos os requisitos exigidos pela CADH para que se admita a restrição ao direito de liberdade de expressão, tendo em vista que tal restrição, além de ser “objeto de previsão legal com acepção precisa e clara, é essencial, proporcional e idônea a resguardar a moral pública e, por conseguinte, a própria ordem pública”.
“A CIDH e a Corte Interamericana têm perfilhado o entendimento de que o exercício dos direitos humanos deve ser feito em respeito aos demais direitos, de modo que, no processo de harmonização, o Estado desempenha um papel crucial mediante o estabelecimento das responsabilidades ulteriores necessárias para alcançar tal equilíbrio, exercendo o juízo entre a liberdade de expressão manifestada e o direito eventualmente em conflito”, disse.
Direito ao silêncio
Em 2016, ao julgar o AgRg no REsp 1.497.542, a Primeira Turma negou o pedido de um homem que, após ter confessado a participação em esquema fraudulento de saques do FGTS, alegou que a confissão violaria o artigo 8, item 2, “g”, do Pacto de San José, devendo, portanto, ser desconsiderada como prova.
O dispositivo assegura a toda pessoa o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem de se declarar culpada. Segundo o recorrente, a confissão faria a conexão entre as demais provas, constituindo-se em elemento fundamental para a sua condenação.
O relator do recurso no STJ, ministro Benedito Gonçalves, explicou que o princípio nemo tenetur se detegere (vedação à autoincriminação, ou o direito ao silêncio) veio a ser expressamente reconhecido no Pacto de San José, no qual se resguarda a toda pessoa acusada de um delito o direito de não ser obrigada a depor ou a produzir provas contra si mesma, garantindo que o seu silêncio não seja interpretado em prejuízo da defesa.
Ele lembrou que esse entendimento é pacífico na jurisprudência do STJ, citando como precedente voto do ministro Arnaldo Esteves (aposentado), segundo o qual o pacto americano consagrou a não autoincriminação como direito fundamental.
Contudo, o relator ressaltou que o princípio que protege a pessoa acusada da obrigação de produzir provas contra si “não implica desconsiderar, de forma absoluta, o teor do depoimento feito quando essa mesma pessoa escolhe confessar o ato delituoso cometido, como se deu no caso dos autos, em havendo nos autos outros elementos de convicção quanto aos fatos verificados e à conduta investigada do confesso”.
Ao negar o pedido do acusado, o ministro concluiu que a hipótese não contraria a previsão da CADH, uma vez que a convicção formada pelo juízo na condenação se baseou em diversos elementos probatórios e não exclusivamente na confissão, a qual ocorreu no inquérito e também perante o próprio juízo.
Audiência de custódia
Em agosto de 2019, a Quinta Turma negou provimento ao RHC 115.618, interposto pela defesa de um homem preso em flagrante pela suposta prática de tráfico de drogas. A defesa alegava a ilegalidade da prisão – que foi convertida em preventiva –, especialmente devido à não realização da audiência de custódia.
A audiência de custódia consiste na apresentação do preso ao juízo após o flagrante e está prevista no artigo 7, item 5, da CADH: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”.
Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou, em parceria com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo, o projeto Audiência de Custódia, com o propósito de assegurar a rápida apresentação do preso em flagrante ao magistrado.
A realização das audiências passou a ser obrigatória após o STF, nos autos da ADPF 347, determinar que os juízes e tribunais viabilizassem a sua realização. Por meio da Resolução 213, o CNJ regulamentou o funcionamento dessas audiências e, com isso, passou a monitorar a interiorização da prática em todo o país.
No entanto, ao negar o recurso em análise, o ministro destacou precedentes das turmas criminais do STJ nos quais se definiu que “a não realização de audiência de custódia não acarreta a automática nulidade do processo criminal. Com o decreto da prisão preventiva, a alegação de nulidade fica superada. Isso porque a posterior conversão do flagrante em prisão preventiva constitui novo título a justificar a privação da liberdade, ficando superada a alegação de nulidade decorrente da ausência de apresentação do preso ao juízo de origem”.