Sexta Turma anula processo a partir de audiência em que juiz inquiriu seis testemunhas sem a presença do MP

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a anulação de um processo a partir da audiência em que o juiz de primeiro grau inquiriu diretamente seis testemunhas, assumindo atribuição que caberia às partes – no caso, o Ministério Público. No entendimento do colegiado, a atitude do magistrado violou o devido processo legal e o sistema acusatório, tendo em vista que as informações apresentadas pelos depoentes foram consideradas na sentença.

O caso envolveu o ex-prefeito de Pinheiro Machado (RS) Luiz Fernando de Ávila Leivas, acusado de desviar recursos públicos em favor de terceiro, com base no Decreto-Lei 201/1967. A ação teria ocorrido por meio da contratação direta de reformas em prédios administrados pela Secretaria Municipal de Educação.

Condenado em primeiro grau, o réu apelou ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que manteve a decisão, mas reduziu a pena imposta. A corte local entendeu que a inquirição feita pelo juiz caracteriza nulidade relativa, dependendo de arguição e demonstração de prejuízo, o que, no caso dos autos, não teria ocorrido.

No recurso especial, entre outras alegações, a defesa apontou a possível nulidade dos depoimentos de testemunhas que não tiveram a presença de representante do MP e foram colhidos diretamente pelo magistrado.

Audiência deveria ser suspensa ou continuar sem perguntas acusatórias

Segundo o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, a ausência do MP na audiência de instrução não permite que a autoridade judicial assuma suas atribuições precípuas.

“Em face da repreensível ausência do Parquet, que, sem qualquer justificativa, acarretou a contaminação do bom andamento do processo, o órgão julgador deveria prosseguir a audiência sem as perguntas acusatórias ou, então, suspender a audiência e marcar uma nova data”, avaliou o ministro.

Ao inquirir diretamente os depoentes – explicou o relator –, o magistrado violou o devido processo legal e o sistema acusatório, o que implica o reconhecimento de nulidade da colheita de provas feita em desacordo com o artigo 212 do Código de Processo Penal, além da necessidade de renovação dos atos processuais contaminados.

Juiz comprometeu o devido processo legal ao inquirir diretamente testemunhas

Durante o julgamento, o ministro Rogerio Schietti Cruz lembrou que, de acordo com a jurisprudência do tribunal, a ausência do membro do MP na audiência de instrução não gera nulidade processual se não houver comprovação de prejuízo. No entanto, ele observou que as circunstâncias devem ser analisadas em cada situação concreta, e, no caso, acompanhou a posição do relator.

“Entendo que o juiz de direito fez as vezes do promotor de Justiça e, mais do que permitir que as pessoas ouvidas contassem o que ocorreu, formulou perguntas, para além daquilo que pode ser admitido a título de esclarecimento ou complementação”, afirmou Schietti.

Para o ministro, a situação analisada é peculiar porque a oitiva de seis testemunhas foi conduzida pelo juiz, configurando “expressiva desobediência de formalidade estabelecida pelo legislador”, mesmo que o advogado do acusado tenha permitido a realização do ato sem apontar nenhum vício.

“A atuação do juiz foi grave a ponto de comprometer o devido processo legal, sendo evidente e intuitivo o prejuízo ao réu, na medida em que foi condenado sem a intervenção de um dos sujeitos do processo (órgão acusador) e com base em provas não produzidas sob o crivo do contraditório”, comentou.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE RESPONSABILIDADE. ART. 1º, II, DO DECRETO-LEI 201/67. ALEGAÇÃO DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL DEFICIENTE EM SEDE DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INOCORRÊNCIA. TESE DE NULIDADE. INÉPCIA DA PEÇA ACUSATÓRIA. INOCORRÊNCIA. DENÚNCIA QUE PREENCHE OS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. SUPORTE NO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ALTERAÇÃO. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. TESE DE NULIDADE POR OFENSA AO ART. 212 DO CPP. INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS PELO JUIZ, DIANTE DA AUSÊNCIA DO MEMBRO DO PARQUET EM AUDIÊNCIA. PREJUÍZO DEMONSTRADO. DETERMINADO O RETORNO DOS AUTOS PARA PROSSEGUIMENTO DO FEITO. PREJUDICADA A ANÁLISE DOS DEMAIS PLEITOS DEFENSIVOS.
1. Não prospera o argumento de prestação jurisdicional deficiente, porquanto as controvérsias suscitadas pelo embargante foram analisadas pela instância ordinária, em que pese o seu descontentamento com o resultado do julgado.
2. […] a teor da jurisprudência desta Corte Superior, os embargos declaratórios não se prestam para forçar o ingresso na instância extraordinária se não houver omissão a ser suprida no acórdão nem fica o juiz obrigado a responder a todas as alegações das partes quando já encontrou motivo suficiente para fundar a decisão (AgRg no Ag n. 372.041/SC, Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, DJ 4/2/2002), de forma que não há falar em negativa de prestação jurisdicional apenas porque o Tribunal local não acatou a pretensão deduzida pela parte (AgRg no REsp n. 1.220.895/SP, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 10/9/2013).
3. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul dispôs que a alegação de inépcia, por suposta imprecisão da data e descrição dos fatos praticados, não vinga. A inicial acusatória atende satisfatoriamente – mais ainda porque amparada em vastos elementos extraídos da investigação, aos quais o acusado teve acesso – ao conteúdo do art. 41 do CPP. A conduta remanescente, apontada no 2° fato da inicial acusatória, aponta que o acusado, entre fevereiro de 2010 e outubro de 2011, utilizou-se indevidamente, em proveito alheio, de bens e serviços do Município de Pinheiro Machado para beneficiar terceiro, quem seja, Luís Eduardo Nunes Pinto Lemos. Destaca, ainda, a participação de Bernadete Paz, Secretária Municipal e também companheira do suposto beneficiado, violando-se as regras insculpidas na Lei de Licitações. A descrição da suposta infração apontou mínima e suficientemente os elementos que compunham a acusação, tanto que permitiu ao acusado a ampla defesa, o que se evidencia claramente a partir do material produzido em autodefesa e também por sua defesa técnica. Em suma, sabia do que estava sendo acusado (fls. 1.513/1.514).
4. O Tribunal a quo, a partir da análise de elementos de cunho fático-probatório, definiu como presente a demonstração da tipicidade entre as condutas imputadas e o quanto disposto na denúncia, demonstrando assim, a presença de justa causa para a ação penal. Não há falar em inépcia da denúncia, bem como cerceamento de defesa, por conta da imprecisão das datas dos atos delitivos.
5. Para rever a conclusão da Corte de origem, na forma pretendida na presente insurgência, há necessidade de reexame do contexto fático-probatório dos autos, o que é vedado em sede de recurso especial (Súmula 7/STJ).
6. Se a denúncia descreve a conduta do acusado que pode se amoldar ao delito imputado, de forma que torna plausível a imputação e possibilita o exercício da ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes e sob o crivo do contraditório, não há falar em violação ao disposto no art. 41 do CPP. […] O exame das alegações de inépcia da inicial acusatória por ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade do delito ou, ainda, que não existem provas do dolo e da fraude para desconstituir o entendimento das instâncias ordinárias, demandaria o revolvimento do acervo fático-probatório dos autos, providência vedada da via recursal eleita, ante o óbice da Súmula 7 desta Corte (AgRg no AgRg no REsp n. 1.515.946/PR, Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 14/9/2018).
7. O fato de o Ministério Público não ter comparecido à audiência de instrução não dá, à autoridade judicial, a liberdade de assumir a função precípua do Parquet.
8. Em face da repreensível ausência do Parquet, que, sem qualquer justificativa, acarretou a contaminação do bom andamento do processo, o órgão julgador deveria prosseguir a audiência sem as perguntas acusatórias ou, então, suspender a audiência e marcar uma nova data.
9. O Magistrado, no caso concreto, […], agiu em substituição à produção probatória que compete às partes, inquirindo diretamente os depoentes, violando o devido processo legal e o sistema acusatório.
[…] Assim, deve ser reconhecida a nulidade da colheita probatória realizada em desacordo com o art. 212 do Código de Processo Penal, bem como devem ser desentranhados e renovados os atos processuais contaminados, notadamente os interrogatórios dos Réus, meio de defesa realizado ao final da instrução, e as alegações finais, que foram produzidas consoante os elementos probatórios então constantes nos autos […] (AgRg no HC n. 708.908/RS, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe de 3/10/2022).
10. Resta evidenciado o prejuízo, pois a sentença considerou fundamentos extraídos da referida audiência ao lastrear o édito condenatório.
11. Na hipótese em exame, inexistem as omissões indicadas nos embargos de declaração; o que há é decisão contrária aos interesses da parte, visto que foi explicitamente afirmado que a Juíza, ao iniciar os questionamentos e formular a maioria das perguntas, assumiu o protagonismo na inquirição de testemunhas, em patente violação ao art. 212 do CPP, sendo presumido o prejuízo sofrido pela defesa (EDcl no HC n. 741.725/RS, Ministro Sebastião Reis Junior, Sexta Turma, DJe de 27/10/2022).
12. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido para reconhecer a nulidade do art. 212 do Código de Processo Penal, determinando o retorno dos autos à origem para prosseguimento do feito.

Acompanhando o relator, a Sexta Turma anulou a audiência de instrução e todos os atos praticados posteriormente no processo, determinando o retorno dos autos à origem.

Leia o acórdão do REsp 1.846.407.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1846407

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