Em julgamento realizado hoje (11/9), o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) manteve a anulação da portaria 498/2011 do Ministério da Justiça que reconhecia como terra indígena a área de Passo Grande do Rio Forquilha, localizada entre os municípios gaúchos de Cacique Doble e Sananduva.
A área tem cerca de 1.900 hectares e era ocupada por grupo indígena da etnia Kaingang e produtores rurais assentados pelo estado do Rio Grande do Sul. No entendimento da 3ª Turma da corte, os índios não estariam na terra quando foi promulgada a Constituição de 1988, requisito fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar o caso da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, o que ficou conhecido com “marco temporal”. A decisão ressaltou ainda ausência de esbulho por parte dos não-índios.
As terras são alvo de disputa judicial desde 2012, quando um morador de Sananduva ajuizou ação popular na 2ª Vara Federal de Erechim (RS) contra a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e os ocupantes do local requerendo a anulação da Portaria n.º 498/2011. A União e a Funai defendiam a legitimidade da portaria que, conforme os réus, teria sido embasada em evidências históricas, antropológicas e etnográficas.
Após o juízo de primeira instância julgar a ação procedente e anular a portaria, os réus apelaram ao tribunal requerendo a reconsideração da decisão. Eles argumentavam que a tradicionalidade indígena das terras deveria ser analisada através de laudo antropológico legalmente capacitado e habilitado.
No julgamento realizado com Turma ampliada, o colegiado decidiu por maioria negar provimento à apelação e confirmar a sentença.
A desembargadora federal Marga Inge Barth Tessler afirmou que os laudos não comprovaram a presença de indígenas no Passo Grande do Rio Forquilha em outubro de 1988, e que “o marco temporal é um referencial insubstituível para o reconhecimento aos índios da pretendida terra”.
“Não havia sobre as áreas pretendidas indígenas habitando no marco temporal. Tampouco existiam conflitos ou ameaças pela posse das colônias ou lotes. As terras em disputa já haviam sido tituladas pelo estado do Rio Grande do Sul a pequenos agricultores nas décadas de 1960/1970. Não havia posse indígena e tampouco conflito ou ameaças aos indígenas no local, quando eventualmente ali transitavam vindos de suas terras bastante próximas, terras indígenas Ligeiro, Carreteiro e Cacique Doble, demarcadas em 1910/1920”, analisou a magistrada. Marga acrescentou que na área reivindicada, os ocupantes não-índios são agricultores com títulos antigos cujo tempo de propriedade varia entre 45 e 70 anos.
O recurso ficou assim ementado:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. AÇÃO POPULAR. NULIDADE DE PORTARIA DECLARATÓRIA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 231 A CF.
A Portaria n° 498, de 25 de abril de 2011, do Ministro de Estado da Justiça, acolhendo proposta de delimitação da FUNAI nos autos do processo administrativo FUNAI/BSB/nº08620.001643/2006, declarou como de posse permanente do grupo indígena Kaigang a denominada “Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha”, com superfície aproximada de 1.916 hectares e perímetro também aproximado de 29 km, área situada no interior dos Municípios de Sananduva/RS e Cacique Doble/RS.
A controvérsia existente nestes autos não envolve, portanto, o termo inicial da recente movimentação/reivindicação indígena, mas sim o conceito que deve prevalecer acerca do que seja ocupação tradicional indígena, ou seja, as suas implicações com a ocupação passada da área e/ou a existência de esbulho renitente por parte de não-índios (e neste caso o seu conceito, existência no caso concreto e até quando teria perdurado).
Destaca-se citação realizada pelo antropólogo Robson Cândido da Silva extraída de estudo realizado pela antropóloga Maria Helena Amorim Pinheiro, em 2003, segundo a qual os índios ocupavam as duas margens do Rio Forquilha no período de 1928 a 1980 (evento 278, ANEXO4, fl. 39). A evidência de que a saída dos indígenas antecedeu a 1980 foi igualmente salientada no Estudo de Fundamentação Antropológica realizado em novembro de 2005, pela antropóloga Juracilda da Veiga, designada pela Portaria nº 1136, de 29 de setembro de 2005.
Deve ser observado o marco temporal da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988) conforme o precedente do STF (Pet. 3.388/RR), sendo incontroverso que não existia ocupação à época, já que o acampamento de retomada foi erigido apenas no ano de 2004, após mais de duas décadas da desocupação.
Fixadas essas premissas e tendo em conta os parâmetros interpretativos do art. 231 da Constituição Federal firmados pelo STF no caso “Raposa Serra do Sol” resta a análise se, ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988), se faz presente a ressalva fixada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que “A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios” (Pet. 3.388/RR).
A partir dos relatos e documentos identificados ao longo do processo de delimitação da terra indígena, bem como os registros de propriedade outorgados aos agricultores, cujas matrículas acompanham a inicial e o evento 302, é possível concluir que a alienação das terras pelo Estado do Rio Grande do Sul aos colonos coincidiu, em boa parte, com a retirada dos indígenas da área.
Os relatos prestados pelos indígenas, a exemplo dos já transcritos, demonstram que a desocupação ocorrida até meados da década de 70 configurou efetivo esbulho por parte de não-índios, o qual se deu de forma gradual, ainda que alguns indígenas possam ter sido removidos pacificamente, convencidos pelo cacique Pedro Silveira, o qual teria vendido a terra “a troco de porco” (inobstante haja narrativa de que ele atropelou todo mundo inclusive os filhos dele – Sebastiao Ferreira Doble, evento 120, INF6, fl. 2). Fato é que não olvidaram esforços para que os indígenas se evadissem das terras, como relatou o senhor Olívio Orlando, morador de Sananduva/RS (evento 120, INF6, fls. 6-7).
Não há, porém, no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação elaborado no ano de 2008 a indicação de quaisquer elementos concretos que indiquem a persistência de disputa pela área entre os índios e não-índios em período contemporâneo à promulgação da Constituição Federal (05/10/1988), conflito que deve se materializar por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por procedimentos administrativos ou judiciais de disputa pela área, considerando que apenas em 2004 (mais de 15 anos depois) é que houve a montagem de um acampamento de retomada.
No caso concreto não se verifica ocupação tradicional dos índios kaigangs na região de Passo Grande da Forquilha ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988), sempre devendo ser salientado que o STF não compreende a palavra “tradicionalmente” como posse imemorial (RE 219.983, Pet. 3.388, RMS 29.087 e ARE 803.462).
Do mesmo modo, não configurado esbulho renitente por parte de não-índios quando da promulgação da Constituição Federal tendo em vista que ocupação remota ou desocupação forçada, ocorrida no passado, não o configura, considerando a necessidade para tanto da existência de situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual a ser considerado (05/10/1988), conflito esse que deve materializar-se em circunstâncias de fato ou controvérsia possessória judicializada, situações inocorrentes no caso concreto uma vez que o acampamento de retomada (quanto, então, efetivamente reinicia-se o conflito possessório) somente foi erigido em 2004, quase 15 (quinze) anos depois da promulgação da atual Constituição.
Logo, não preenchidos os requisitos do art. 231 da Constituição Federal de rigor a procedência da ação para anular a Portaria Declaratória n° 498, de 25 de abril de 2011, do Ministério da Justiça que declarou como de ocupação tradicional do grupo indígena kaigang a área com superfície aproximada de 1.916 hectares e perímetro de aproximados 29 km, no interior dos Municípios de Sananduva/RS e Cacique Doble/RS, denominada na Portaria como “Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha”.