A 4ª Turma Cível do TJDFT, em decisão do relator, deferiu pedido liminar feito pela Defensoria Pública do Distrito Federal – DPDF, para suspender a prisão de 29 pessoas que deixaram de cumprir com a obrigação de prestar alimentos. A decisão terá efeitos enquanto perdurar a situação de emergência em saúde pública de importância nacional ou o estado de transmissão comunitária do COVID-19, a critério do juízo de primeiro grau.
A DPDF entrou com pedido liminar, em sede de habeas corpus, em favor dos presos recolhidos na carceragem da Polícia Civil que cumprem prisão civil decorrente de dívida alimentar (§3º do art. 528, do Código de Processo Civil). A instituição sustentou que, diante da aglomeração e grande circulação de pessoas no ambiente carcerário, haveria risco de exposição desnecessária ao contágio e disseminação do coronavírus, incrementando risco à saúde dos presos e daqueles à sua volta.
Ao decidir, o magistrado destacou que, embora as condições gerais “sejam boas e suficientes em momento de normalidade, em quadro de pandemia causada por vírus (…) é forçoso reconhecer que, apesar dos esforços e medidas profiláticas adotadas pela DCCP, resta uma margem de risco de contágio e que precisa ser sopesada, considerando a natureza da obrigação e a finalidade da segregação”.
Na decisão, o relator ressaltou ainda que “a prisão civil dos atuais devedores não configura pena, mas tão somente meio coercitivo para o cumprimento de obrigação de natureza alimentar e a fim de garantir o sustento daqueles que dele dependem”. Além disso, o desembargador salientou que “dadas as proporções e magnitude de cada um dos direitos em conflito, o interesse do credor ao pagamento de prestação alimentar não pode se sobrepor à saúde e integridade do devedor”.
Por fim, o magistrado asseverou que “a suspensão dos efeitos das decisões judiciais que decretaram a medida coercitiva e durante o período de recolhimento social é providência que se mostra mais adequada, posto que não impediria ao credor de requerer o seu restabelecimento mais à frente, pelo prazo remanescente (art. 528, §3º, CPC), e após levantada a situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) ou o Estado de Transmissão Comunitária do coronavírus (covid-19), a depender da análise do juízo de origem”.
O recurso ficou assim ementado:
HABEAS CORPUS COLETIVO. PRISÃO CIVIL. DÍVIDA DE NATUREZA ALIMENTAR. SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA EM SAÚDE PÚBLICA DE IMPORTÂNCIA NACIONAL (ESPIN) E ESTADO DE TRANSMISSÃO COMUNITÁRIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19). NECESSIDADE DE ISOLAMENTO SOCIAL PELAS AUTORIDADES DE SAÚDE PÚBLICA. CONDIÇÕES SISTEMA PENITENCIÁRIO QUE NÃO ALCANÇAM A EXCELÊNCIA IMPRESCINDÍVEL PARA PREVENÇÃO DA CONTAMINAÇÃO POR CORONAVÍRUS. NECESSIDADE DE GARANTIR A INCOLUMIDADE DOS SEGREGADOS POR FALTA DE PAGAMENTO DE PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA. APARENTE CONFLITO ENTRE O DIREITO À VIDA, À INTEGRIDADE E À SAÚDE DO ALIMENTANTE E O DIREITO À SUBSISTÊNCIA DO ALIMENTANDO. ORDEM CONCEDIDA PARA SUSPENDER OS DECRETOS DE PRISÃO ENQUANTO PERDURAR A SITUAÇÃO DE TRANSMISSÃO COMUNITÁRIA DO CORONAVÍRUS E A SITUAÇÃO EMERGÊNCIA EM SAÚDE PÚBLICA.
1. O habeas corpus é uma garantia constitucional contra ato ilegal ou abuso do qual resulte restrição à liberdade ou ao direito de locomoção (art. 5º, inciso LXVIII). Portanto, seu objeto é se contrapor ao antijurídico em detrimento de liberdade individual.
2. No caso presente, não se investe contra eventual ilegalidade das decisões que determinaram a prisão dos devedores de alimentos, à luz do artigo LXVII e art. 528, §3º do CPC. Pelo contrário, sua impetração tem fundamento humanitário e, só reflexamente, em benefício da integridade dos desobedientes civis. Nesse mesmo sentido, a jurisprudência da Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça, pela concessão da ordem por razão humanitária e em prol da salvaguarda do direito de cuidado e amamentação de mulheres presas (HC 143.641, HC 83.358/SP e HC 516519, respectivamente).
4. A situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, decorrente da transmissão comunitária do coronavírus (covid-19), vivenciada desde a impetração deste mandamus, se qualifica como fato notório, o que dispensa provas, exceto com relação as questões individuais invocadas e daquelas que guardariam correlação entre si.
5. Embora as condições gerais do sistema carcerário no Distrito Federal seja diferenciada e excelência, em particular no que toca à segregação dos presos por descumprimento de dívida civil, mas diante do quadro de pandemia causada por vírus, cujos meios de transmissão e tempo de sobrevida fora do abrigo do corpo humano estão ainda por se descobrir, atrelado à inexistência de vacina e meios de tratamento e cura, todos pendentes de estudos, é forçoso reconhecer que, apesar dos esforços e medidas profiláticas adotadas pela Polícia Civil, resta uma margem de risco de contágio e que precisa ser sopesada, considerando a natureza da obrigação e a finalidade da segregação.
6. Inevitável o reconhecimento de que as condições em que se encontrariam os reclusos por dívida alimentar não atendem aos pressupostos mínimos para a prevenção do contágio e disseminação da COVID-19, não havendo razão para deixar de afastar os riscos desnecessários e já tão elevados neste estado de pandemia, não só em prol da saúde individual dos pacientes, como também da repercussão de uma eventual contaminação e sobrecarga no sistema público de saúde.
7. Em que pese a eventual colisão de interesses legítimos e igualmente protegidos pela ordem constitucional – o direito à vida, saúde e integridade física do indivíduo, mesmo quando privado da liberdade – e de outro o interesse legítimo do filho – a paternidade responsável, a percepção da prestação alimentícia como recurso mínimo necessário à garantia de sua subsistência e dignidade – deve-se, dentro do juízo de ponderação, primar pela proteção do direito básico à vida e à saúde, até porque restarão assegurados igualmente os interesses dos alimentandos, seja quanto à fonte de custeio para sua sobrevivência, como o crédito já constituído não sofrerá qualquer abalo no que se refere à sua existência e exigibilidade.
8. A prisão civil dos devedores de alimentos não configura pena, mas tão somente meio coercitivo para o cumprimento de obrigação de natureza alimentar e a fim de garantir o sustento daqueles que dele dependem. Daí mais uma razão para se separar o joio do trigo, pois a medida coercitiva não deve acarretar ou causar mal além do necessário para compelir o cumprimento da prestação civil.
9. Dadas as proporções e magnitude de cada um dos direitos em conflito, o interesse do credor ao pagamento de prestação alimentar não pode se sobrepor à saúde e integridade do devedor, com mais razão se considerado o risco eventual de irreversibilidade do dano, na hipótese de contaminação dos presos e o desenvolvimento do quadro infeccioso mais grave.
10. A seu turno, o credor não ficará desamparado, ante a possibilidade de se buscar a satisfação do crédito por outros meios, ou seja, expropriação patrimonial ou desconto de parcela na folha de pagamento.
11. Neste quadro excepcional, revela-se justa e razoável a concessão da ordem liberatória para aqueles que se encontram reclusos em razão de dívidas alimentícias, bem como para prevenir novos encarceramentos de mesma natureza enquanto perdurar a situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, decorrente da transmissão comunitária do coronavírus (covid-19).
12. HABEAS CORPUS COLETIVO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA.
A decisão ordenou a expedição dos respectivos alvarás de soltura e, ao todo, beneficia 29 presos detidos na carceragem da PCDF.
PJe2: HC 0706777-90.2020.8.07.0000