A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu um homem que havia sido condenado por tráfico de drogas com base em provas obtidas por policial que se passou por ele ao atender seu celular durante a abordagem. O colegiado entendeu que houve violação do sigilo das comunicações telefônicas e que o autor da ligação – corréu no processo – foi induzido em erro para que se configurasse a prisão em flagrante.
O caso aconteceu em rodovia de Vitória, quando policiais rodoviários deram ordem de parada ao réu, mas nada de ilícito foi encontrado em seu veículo. Desconfiados de que ele seria um batedor do tráfico, os agentes o levaram ao interior da base, momento em que seu celular tocou. Um dos policiais atendeu a ligação, passando-se pelo dono do aparelho. Do outro lado da linha estava o corréu, que dirigia o carro com drogas e pretendia saber se era seguro prosseguir. Ainda fingindo, o policial respondeu afirmativamente e, em seguida, determinou a abordagem do veículo.
Condenado, o réu teve a apelação negada pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), que rechaçou a possível nulidade das provas apontada pela defesa. Para a corte estadual, o procedimento do policial foi o meio encontrado para garantir o interesse público em detrimento do direito individual à intimidade. A decisão ainda apontou que seria aplicável ao caso a teoria da descoberta inevitável, tendo em vista que o curso natural dos acontecimentos levaria, de qualquer modo, à apreensão das drogas.
Em habeas corpus requerido ao STJ, a defesa alegou coação ilegal e pediu a absolvição do réu com base na ilicitude das provas colhidas na abordagem e das provas derivadas.
Sem respaldo da lei que regula interceptação telefônica, provas são ilícitas
Segundo o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a conduta do policial foi ilícita, pois não havia prisão em flagrante no momento do telefonema, uma vez que nada de ilegal tinha sido encontrado até então: “Não havia justificativa idônea nem mesmo para apreender o celular do réu, muito menos para o militar atender a ligação e, pior, passar-se por ele de forma ardilosa para induzir o corréu em erro”, afirmou.
O ministro lembrou que a quebra do sigilo de comunicações telefônicas deve ser amparada nas hipóteses previstas na Lei 9.296/1996. Como elas não se aplicam ao caso, o policial teria realizado – nas palavras de Schietti – uma espécie sui generis de “interceptação telefônica ativa”, circunstância que comprometeu as provas obtidas por esse meio e as que delas derivaram.
Em apoio às suas conclusões, o relator citou precedente do STJ (HC 511.484) que reconheceu a ilicitude de provas obtidas diretamente por autoridade policial ao atender o celular de suspeito e conversar com seu interlocutor.
Inevitabilidade dos fatos deve ser clara para se aplicar a teoria citada pelo TJMS
Schietti também dedicou parte do seu voto a afastar a aplicação da teoria da descoberta inevitável. Em seu entendimento, ela deve ser interpretada de forma restritiva, pois representa exceção à regra da exclusão das provas ilícitas e, consequentemente, ao direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal.
Para o ministro, os autos não demonstram que os eventos se sucederiam levando de forma inevitável ao mesmo resultado alcançado de maneira ilícita. Assim, deve prevalecer a solução mais favorável ao réu, em respeito à presunção de inocência e à vedação ao uso de provas ilícitas.
“O desfecho poderia ter sido completamente diverso – fuga, desvio de rota, desfazimento das drogas etc. – se o militar não houvesse atendido a ligação e, fazendo-se passar pelo réu, garantido ao comparsa que ele poderia continuar sem receios por aquele caminho”, concluiu Schietti ao reconhecer a ilicitude das provas e absolver o réu.
O recurso ficou assim ementado:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE. POLICIAL QUE ATENDE O CELULAR DE INVESTIGADO E SE PASSA POR ELE PARA INDUZIR CORRÉU A ERRO E EFETUAR PRISÃO EM FLAGRANTE. SIGILO DAS COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS. VIOLAÇÃO. ILICITUDE DAS PROVAS COLHIDAS. TEORIA DA DESCOBERTA INEVITÁVEL. INAPLICABILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
1. Ao dispor que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”, o art. 5º, XII, da Constituição estabeleceu uma regra geral de proteção ao sigilo das comunicações telefônicas e criou a possibilidade excepcional da sua relativização, na forma da lei. Vale dizer, enquadrar-se nos termos da lei (no caso, a Lei n. 9.296/1996) é um requisito para que a quebra do sigilo de comunicações telefônicas seja válida, como ressalva à regra geral de inviolabilidade, pois é só dentro dos limites legais que se admite a relativização da garantia fundamental. Em contrapartida, violar esse sigilo fora das hipóteses previstas pelo legislador implica a ilicitude da diligência, e não a sua validade.
2. No caso, o paciente foi abordado pela polícia em uma rodovia, mas nada de ilícito foi encontrado no veículo por ele conduzido.
Desconfiados de que o acusado fosse um batedor do tráfico, todavia, os agentes levaram o réu para o interior da base e começaram a questioná-lo, momento em que o celular dele tocou. Um dos agentes, então, pegou o aparelho do acusado, atendeu a ligação e se fez passar pelo paciente. O outro interlocutor era o corréu José Carlos, o qual estava dirigindo o automóvel que transportava as drogas e pretendia saber do acusado se havia fiscalização policial e se era seguro prosseguir. Fingindo ser o paciente, o policial respondeu afirmativamente e determinou a abordagem do veículo dele, onde então foram encontrados os entorpecentes.
3. Cabe salientar, de início, que o paciente nem sequer estava preso em flagrante no momento em que teve seu celular atendido pelo policial, uma vez que nada de ilegal foi encontrado após a revista no veículo que conduzia. Na ocasião, portanto, não havia justificativa idônea nem mesmo para apreender o celular do réu, muito menos para o militar atender a ligação e, pior, passar-se por ele de forma ardilosa para induzir o corréu a erro e fazer com que acreditasse estar livre de fiscalização policial a rodovia pela qual trafegava, o que veio a ensejar a abordagem e o encontro das drogas no automóvel do referido comparsa.
4. Ausentes quaisquer das hipóteses que permitissem excepcionar a inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, não poderia o agente de segurança pública ter atendido ligação direcionada ao acusado sem o seu consentimento e, ainda, manipulado o diálogo a fim de enganar o outro interlocutor e levá-lo à prisão em flagrante, em uma espécie sui generis de “interceptação telefônica ativa”. Ao atender o telefone, forjar a sua identidade e mentir para o corréu, o policial assumiu o papel do real destinatário da ligação e teve acesso – de forma sub-reptícia – ao conteúdo privado de comunicação telefônica destinada exclusivamente ao paciente, circunstâncias que impingem nítida mácula às provas por esse meio colhidas e a todas as que delas derivaram.
5. A teoria da descoberta inevitável está prevista em nosso ordenamento no art. 157, § 2º, do CPP, segundo o qual “Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”. Embora confusa a redação do dispositivo, que parece se referir ao § 1º do mesmo artigo, como explicação da teoria da fonte independente, é consolidado na doutrina o entendimento de que se trata de situações diversas.
6. A construção teórica é oriunda dos Estados Unidos (inevitable discovery limitation) e foi adotada pela primeira vez na Suprema Corte daquele país no julgamento do caso Nix x Willians (467 US 431, 1984). Tratava-se de caso em que o investigado havia matado uma criança e escondido o corpo, o que motivou 200 voluntários a iniciarem um processo de busca. Durante a procura, a polícia ilegalmente extraiu uma confissão do acusado quanto à localização do cadáver e o encontrou no local por ele indicado. Na espécie, todavia, apesar da ilicitude da confissão, a Corte considerou que o caminho natural do plano previamente traçado para as buscas, em poucas horas, inevitavelmente passaria pelo lugar em que achado o corpo, razão pela qual a prova foi mantida nos autos.
7. Por consistir em exceção à regra da exclusão das provas ilícitas – e, por consequência, a direito fundamental (art. 5º, LVI, da Constituição) – tal teoria deve ser interpretada restritivamente, até como forma de dar conformidade constitucional ao dispositivo legal, que limita o âmbito de aplicação da norma contida na Carta Magna quanto à exclusão das provas ilícitas.
8. Apesar de se tratar de um juízo hipotético, não basta que se faça um raciocínio vago e abstrato de mera possibilidade de descoberta da prova por outro meio, sob pena de se converter a exceção em regra e, assim, fragilizar sobremaneira a garantia constitucional. É necessário, ao revés, como consectário da interpretação restritiva do dispositivo legal, que ele seja aplicado somente quando demonstrado pela acusação – sobre quem recai o ônus probatório -, com amparo em elementos concretos dos autos, que os fatos naturalmente chegariam ao mesmo desfecho a despeito da ilegalidade na ação policial.
9. É pertinente notar, a respeito, que o texto do art. 157, § 2º, do CPP usa o verbo “seria” – a indicar algo que aconteceria se a ilicitude não houvesse interrompido o caminho natural dos fatos -, e não a locução verbal “poderia ser”, esta representativa de um juízo de mera possibilidade remota. Da mesma forma, cumpre observar que o próprio nome pelo qual se consagrou a teoria é indicativo do rigor com que se deve analisar o hipotético desdobramento causal dos fatos: a descoberta deve ser inevitável – verbete que significa “impossível de evitar, necessário; fatal” -, e não meramente possível.
10. Ainda que seja difícil – em termos epistemológicos – atingir um standard de certeza plena e absoluta sobre o que viria a ocorrer no futuro, por se tratar de raciocínio hipotético sobre o curso causal de fatos que não chegaram efetivamente a acontecer, é preciso que a acusação demonstre, com clareza e amparo concreto em elementos dos autos, no mínimo, a alta probabilidade de que os eventos fatalmente se sucederiam de forma a atingir o mesmo resultado alcançado de maneira ilícita. Presente dúvida razoável sobre esse curso causal hipotético, a solução deve ser favorável ao réu, em respeito às garantias fundamentais da presunção de inocência e da vedação ao uso de provas ilícitas.
11. Na espécie, o fato de os acusados já serem previamente investigados pela polícia, a qual tinha informações de que eles fariam o transporte de entorpecentes, não bastava para assegurar que as drogas seriam apreendidas e eles, presos de qualquer forma. Cabe lembrar, por oportuno, que o objetivo da ligação do corréu José Carlos ao paciente – “interceptada” pelo policial – era justamente o de verificar com ele, que atuava como batedor, se era seguro prosseguir no transporte da droga ou se havia fiscalização policial, a evidenciar que o desfecho poderia ter sido completamente diverso – fuga, desvio de rota, desfazimento das drogas etc – se o militar não houvesse atendido a ligação e, fazendo-se passar pelo réu, garantido ao comparsa que ele poderia continuar sem receios por aquele caminho.
12. Ordem concedida para anular toda as provas colhidas e absolver o paciente.
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