Protesto indevido de cheque ainda sujeito a cobrança não gera indenização por dano moral ao devedor

Alinhando-se à posição da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Quarta Turma pacificou a jurisprudência da corte ao decidir que o protesto de título de crédito prescrito, embora irregular, não gera direito automático à indenização por dano moral. Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, a ilicitude da conduta não implica o dever de indenizar se não houve dano efetivo ao bem jurídico tutelado.

Com esse entendimento, mesmo determinando o cancelamento do protesto indevido de dois cheques – realizado após o prazo para execução cambial, mas dentro dos cinco anos que possibilitam a cobrança por outras vias –, a Quarta Turma negou o pedido de indenização feito pelo emissor dos títulos.

Relator do recurso julgado, Salomão afirmou que, no caso de protesto irregular, o dano moral está vinculado ao abalo de crédito e à pecha de mau pagador decorrentes do ato. No entanto, se o protesto é irregular por causa da prescrição do título – o que significa que não poderá ser executado, embora restem outras possibilidades de cobrança judicial –, “não há direito da personalidade a ser legitimamente tutelado”, pois não há abalo de crédito.

Quanto ao caso em julgamento – acrescentou o magistrado –, “não só não houve efetivo dano ocasionado, como é certo que o autor não nega que deve, tampouco manifesta qualquer intenção em adimplir o débito”.

Endosso transmite os direitos resultantes do cheque

O recurso teve origem em ação declaratória de prescrição de débito e baixa de protesto com indenização por danos morais, ajuizada pelo devedor após verificar uma restrição em seu CPF, em vista do protesto, em 9 de outubro de 2009, de cheques emitidos em 27 de setembro de 2005, nos valores de R$ 2 mil e R$ 700.

Entre outros pontos, alegou que os cheques foram emitidos para outra pessoa, que os repassou ao portador, com o qual não teve relação jurídica. Argumentou ainda que após a prescrição dos cheques, resta apenas a ação de cobrança ou monitória para o recebimento do crédito, não podendo o credor promover o protesto do título.

O Tribunal de Justiça do Paraná considerou que o protesto foi regular, pois a dívida expressa nos cheques não estava prescrita, já que entre a data da emissão e o protesto não se passaram mais de cinco anos.

O ministro Luis Felipe Salomão verificou que, ainda que não exista negócio entre as partes litigantes, os cheques foram endossados. Ele explicou que o artigo 20 da Lei do Cheque estabelece que o endosso transmite todos os direitos resultantes do cheque, dispondo o artigo 22, caput, que o detentor de cheque “à ordem” é considerado portador legitimado, se provar seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo que o último seja em branco.

Segundo o relator, o cheque endossado confere, em benefício do endossatário, os efeitos de cessão de crédito, não sendo necessária nenhuma outra formalidade para tanto.

Obrigação líquida, certa e exigível

Salomão explicou que o cheque é ordem de pagamento à vista, e a execução pode ser movida dentro de seis meses após o prazo de apresentação (30 ou 60 dias, conforme seja da mesma praça ou de praça diferente).

Transcorrido o prazo de prescrição para a execução, o artigo 61 da Lei do Cheque prevê dois anos para o ajuizamento de ação de locupletamento ilícito, a qual, diante da natureza cambial, prescinde da descrição do negócio subjacente. De acordo com o ministro, expirado o prazo para ajuizamento da ação por enriquecimento sem causa, o artigo 62 do mesmo diploma legal admite o ajuizamento de ação fundada na relação causal.

Ao contrário do entendimento das instâncias ordinárias, Salomão concluiu que, no caso, “o protesto é irregular, pois o artigo 1º da Lei 9.492/1997 estabelece que protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida”. Para ele, “a interpretação mais adequada, inclusive tendo em vista os efeitos do protesto, é a de que o termo ‘dívida’ exprime débito, consistente em obrigação pecuniária, líquida, certa e que é ou se tornou exigível”.

O magistrado lembrou que a Segunda Seção, em julgamento de recurso repetitivo, estabeleceu que o documento hábil para protesto extrajudicial é aquele que caracteriza prova escrita de obrigação pecuniária líquida, certa e exigível (Tema 902). Em relação ao protesto de cheque, a Segunda Seção, também em repetitivo, definiu que “sempre será possível, no prazo para a execução cambial, o protesto cambiário de cheque, com a indicação do emitente como devedor” (Tema 945).

Segundo o relator, é incontroverso nos autos que os cheques foram emitidos em 2005 e apontados a protesto em 2009, quando já havia transcorrido o prazo prescricional de seis meses para a execução cambial. Diante disso, reconhecendo a irregularidade do protesto, a turma julgadora acolheu o pedido de cancelamento do registro.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO, PROTESTO E RESPONSABILIDADE CIVIL. TÍTULO DE CRÉDITO. ENDOSSO. EFEITO, NO INTERESSE DO ENDOSSATÁRIO, DE CESSÃO DE CRÉDITO. CHEQUE. PRAZO PARA PROTESTO. EXECUÇÃO CAMBIAL. INEXISTÊNCIA DE PERDA DA PRETENSÃO CONDENATÓRIA REFERENTE AO NEGÓCIO JURÍDICO SUBJACENTE AO CHEQUE. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR, SEM QUE TENHA HAVIDO DANO INJUSTO. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES DA TERCEIRA TURMA E OVERRULING DESSE COLEGIADO. COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO DA PARTE. CONDUTA ILÍCITA.

1. Por um lado, embora o título de crédito, com a sua emissão, liberte-se da relação fundamental, em vista do princípio da incorporação, o adimplemento da obrigação cambial tem por consequência extinguir a obrigação subjacente que ensejou a sua emissão, sendo, em regra, pro solvendo. Desse modo, salvo pactuação em contrário, só extingue a dívida, isto é, a obrigação que o título visa satisfazer, consubstanciada em pagamento de importância em dinheiro, com o seu efetivo pagamento. Por outro lado, malgrado a inexistência de negócio entabulado entre as partes litigantes – emissor do cheque e endossatário -, os cheques foram endossados ao réu, que apontou os títulos a protesto. Como o título de crédito foi endossado – meio cambiário próprio para transferência dos direitos do título de crédito -,  desvincula-se da sua causa, conferindo os efeitos de cessão de crédito em benefício do endossatário, a par das sensíveis vantagens advindas dos princípios inerentes aos títulos de crédito.

2. À luz do entendimento consolidado no âmbito do STJ, o protesto é irregular, pois, de fato, o art. 1º da Lei n. 9.492⁄1997, estabelece que protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida, isto é, débito consistente em obrigação pecuniária, líquida, certa e que é ou tornou-se exigível. Nessa linha de intelecção, a Segunda Seção, em recurso repetitivo, firmou o entendimento de que “sempre será possível, no prazo para a execução cambial, o protesto cambiário de cheque, com a indicação do emitente como devedor” (REsp n. 1.423.464⁄SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 27⁄4⁄2016, DJe 27⁄5⁄2016).

3. O art. 186 do CC estabelece que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem comete ato ilícito. O art. 927, parágrafo único, do mesmo Diploma orienta que aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Já o art. 944 do CC dispõe que a indenização mede-se pela extensão do dano. Assim, para caracterizar obrigação de indenizar, não é decisiva a questão da ilicitude da conduta, mas sim a constatação efetiva do dano a bem jurídico tutelado, não sendo suficiente tão somente a prática de um fato contra legem ou contra jus ou que contrarie o padrão jurídico das condutas.

4. Os cheques foram protestados sem que tenha sido suplantado o período de 5 anos a contar da data de emissão das cártulas, isto é, quando, conforme juízo sufragado em recurso repetitivo, seria ainda possível o ajuizamento de ação monitória, pois “o prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de cheque sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte à data de emissão estampada na cártula” (REsp n. 1.101.412⁄SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 11⁄12⁄2013, DJe 3⁄2⁄2014). Com efeito, em vista da existência de pretensão referente à obrigação causal (negócio jurídico subjacente à emissão dos títulos de crédito), não há falar em abalo de crédito, na medida em que o emitente permanece na condição de devedor e o dano moral decorrente de protesto irregular está atrelado à ideia de indevido abalo do crédito pela pecha de “mau pagador”. Precedentes da Terceira Turma.

5. O autor permanece inadimplente e tenta valer-se de irregularidade do protesto para obter compensação de alegados “danos” morais; todavia, por ocasião do apontamento a protesto, ainda remanescia  incontroverso débito e a possibilidade de o credor se valer de uma possível sentença condenatória em ação de cobrança dos cheques, inclusive para igualmente promover um futuro apontamento do nome do devedor a protesto. Ainda, se o protesto tivesse sido realizado no prazo para execução cambial do cheque, permaneceria hígido a igualmente ocasionar o alegado “dano moral”, sem que se pudesse cogitar no seu cancelamento, considerando-se também que o art. 27 da Lei n. 9.492⁄1997 dispõe que o tabelião de protesto expedirá certidões “que abrangerão o período mínimo dos cinco anos anteriores, contados da data do pedido”.

6. Não só não houve efetivo dano ocasionado, como é certo que o autor não nega que deve, tampouco manifesta intenção de adimplir o débito. Sendo assim, o art. 187 do Código Civil estabelece que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

7. Como anota a doutrina, a constatação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) deve orientar-se para a análise global ou integrada do fenômeno fático-jurídico consistente no comportamento lesivo à boa-fé. Isso porque: a) o comportamento contraditório reveste-se de aparente licitude; b) prima facie, sugere estrita observância a regras jurídicas, estando em aparente conformidade com o direito positivo; c) destacando-se o comportamento contraditório da conduta que precede e esquecendo-se do enlace entre ambos que justifica sua adjetivação, ele seria um ato lícito; d) o que faz dele um comportamento contrário ao Direito é sua relação com os atos anteriores que revela uma contradição ao sentido objetivo ou ao projeto de atuação anunciado pela conduta inicial lesiva à boa-fé e à confiança depositada por terceiros na seriedade desse agir; e) a aplicação da teoria destina-se aos comportamentos aparentemente lícitos carecedores de regras específicas de regulação proibitivas e que, para isso, dificultam sua identificação como contrários ao Direito, exsurgindo daí a necessidade de uma construção teórica voltada à concretização da pauta dos princípios da boa-fé e da confiança.

8. Recurso especial parcialmente provido, apenas para determinar o cancelamento do protesto irregular.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1536035

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