Para a 3ª Turma, houve transferência indevida de responsabilidade à empregada
A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou recurso da Companhia Brasileira de Distribuição (rede Pão de Açúcar) contra decisão que a condenou a indenizar uma gerente que chegou a ser presa após a fiscalização encontrar produtos vencidos no supermercado que ela coordenava, no Alto de Pinheiros, em São Paulo (SP). Para o colegiado, a empresa não poderia transferir à empregada os riscos do empreendimento.
Prisão em flagrante
O episódio ocorreu em maio de 2010, quando a polícia decretou a prisão em flagrante da gerente por crime contra as relações de consumo. Ela foi liberada no mesmo dia, após pagamento de fiança pela empresa. Segundo ela, os advogados da rede a apresentaram como responsável pelo crime, por ser gerente da loja.
Liberdade de locomoção
Na ação, ela informou que, em decorrência da ação penal, sofreu cerceio à liberdade de locomoção. Em 2016, o processo foi suspenso por dois anos, desde que ela aceitasse algumas condições, como a proibição de frequentar alguns lugares e de se ausentar da comarca onde reside por mais de oito dias sem autorização judicial, e a obrigação de comparecer trimestralmente a juízo, para informar e justificar suas atividades.
Manutenção do contrato
O pedido de indenização foi deferido pelo juízo de primeiro grau, no valor de R$ 50 mil. Ao confirmar a sentença, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) observou que, apesar de ter atribuído a responsabilidade pelo crime à gerente, o contrato de trabalho foi mantido por mais de cinco anos, o que anula o argumento da culpa pela presença de produtos vencidos.
O TRT destacou, também, a possibilidade de falha humana na conferência dos cerca de 2.500 produtos da loja. O controle da data de validade era apenas visual, e não informatizado, e a aquisição de programa informatizado para essa finalidade não estaria inserido nos poderes de gestão da gerente.
Negligência
O relator do agravo da Companhia Brasileira de Distribuição, ministro Mauricio Godinho Delgado, assinalou a conduta negligente da empresa, de grande porte no setor de hipermercados. “Ao deixar de adotar medidas eficazes de verificação da validade dos produtos, a rede transferiu para a trabalhadora a obrigação que não estava exclusivamente na sua esfera pessoal de controle, causando-lhe inegável sofrimento”, afirmou.
Na avaliação do relator, os fatos transcritos pelo TRT não demonstram a negligência direta da gerente na verificação da validade dos produtos, pois a vistoria dependeria de um sistema mais complexo de monitoramento e não poderia ser feita de modo individual e pessoal.
O recurso ficou assim ementado:
A) AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DAS LEIS 13.015/2014 E 13.467/2017 . DECISÃO QUE NEGA SEGUIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RAZÃO DE DESERÇÃO DO RECURSO DE REVISTA. SEGURO GARANTIA PARA SUBSTITUIÇÃO DE DEPÓSITO RECURSAL. INAPLICABILIDADE DA EXIGÊNCIA DE RECOLHIMENTO DO ACRÉSCIMO DE 30 % SOBRE O VALOR DA APÓLICE, EFETUADO ANTERIORMENTE AO ADVENTO DO ATO CONJUNTO Nº 1/TST.CSJT.CGJT, DE 16 DE OUTUBRO DE 2019. DESERÇÃO NÃO CONFIGURADA. A Lei 13.467/2017 possibilitou, com a introdução do § 11 ao artigo 899 da CLT, a substituição do depósito recursal em dinheiro pela fiança bancária ou seguro garantia judicial. Por sua vez, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio do Ato Conjunto TST.CSJT.CGJT nº 1/2019, dispôs sobre o uso do seguro garantia judicial e da fiança bancária em substituição ao depósito recursal, fixando os requisitos para sua aceitação, entre eles: a efetivação do acréscimo de, no mínimo, 30% sobre o valor do depósito recursal, regulamentação que passou a vigorar a partir de 16.10.2019 . Na hipótese , verifica-se que o recurso de revista foi interposto pela Reclamada em 25.10.2018 , na vigência da Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista), momento em que a Parte apresentou apólice de seguro garantia , no valor de R$19.026,32 , coincidente com a importância fixada pelo ATO.SEGJUD.GP. nº 329/2018 para a interposição do recurso de revista. Assim, constata-se que o seguro garantia judicial foi oferecido em substituição ao depósito recursal, relativo ao recurso de revista interposto em outubro de 2018, em data anterior à vigência do Ato Conjunto TST.CSJT.CGJT nº 1/2019, razão pela qual os requisitos nele previstos não podem ser aplicados de forma retroativa, de modo a alcançar ato processual já praticado. Considerando-se a regularidade quanto ao depósito recursal, efetivado por meio de apólice de seguro garantia judicial, faz-se o juízo de retratação próprio do agravo para, ultrapassado tal óbice, dar-lhe provimento para conhecer e julgar o agravo de instrumento. Agravo provido.
B) AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017 . 1. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONDUTA NEGLIGENTE DA RECLAMADA. EMPRESA DE GRANDE PORTE DO SETOR DE SUPERMERCADOS. AUSÊNCIA DE MEDIDAS EFICAZES DE VERIFICAÇÃO DA VALIDADE DOS PRODUTOS EM COMERCIALIZAÇÃO. TRANSFERÊNCIA INDEVIDA DA RESPONSABILIDADE À EMPREGADA. PRISÃO EM FLAGRANTE DA RECLAMANTE. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO CRIMINAL. DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA INVIOLABILIDADE PSÍQUICA (ALÉM DA FÍSICA) DA PESSOA HUMANA, DO BEM-ESTAR INDIVIDUAL (ALÉM DO SOCIAL) DO SER HUMANO, TODOS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO MORAL DA PESSOA FÍSICA. 2. VALOR ARBITRADO À INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SÚMULA 297/TST. A conquista e afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, naturalmente, também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural – o que se faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego. O direito à indenização por dano moral encontra amparo no art. 5º, V e X, da Constituição da República; e no art. 186 do CCB/2002, bem como nos princípios basilares da nova ordem constitucional, mormente naqueles que dizem respeito à proteção da dignidade humana, da inviolabilidade (física e psíquica) do direito à vida, do bem-estar individual (e social), da segurança física e psíquica do indivíduo, além da valorização do trabalho humano. O patrimônio moral da pessoa humana envolve todos esses bens imateriais, consubstanciados, pela Constituição, em princípios fundamentais. Afrontado esse patrimônio moral, em seu conjunto ou em parte relevante, cabe aindenizaçãopor dano moral deflagrada pela Constituição de 1988. Para a caracterização do dano moral, é preciso a conjugação de três requisitos: a comprovação do dano; nexo de causalidade entre a conduta do empregador e o dano sofrido; e a culpa (tendo o art. 927 do Código Civil introduzido, excepcionalmente, a responsabilidade objetiva, sem culpa, nas situações mais raras aventadas por aquela regra legal). Na hipótese dos autos , foi evidenciada a conduta negligente da Reclamada, empresa de grande porte no setor de hipermercados, que, ao deixar de adotar medidas eficazes de verificação da validade dos produtos em comercialização, transferiu para a obreira obrigação que não estava exclusivamente na sua esfera pessoal de controle, impingindo-lhe inegável sofrimento – pois, da conduta que foi atribuída à empregada, decorreu sua prisão em flagrante, angústia que, segundo o TRT, “tem perdurado ao longo dos anos, ao figurar como Ré em processo criminal, evento ensejador de mácula à idoneidade moral, com inegável constrangimento e prejuízos no meio familiar, social e profissional, e cuja delonga na tramitação do processo criminal, tampouco lhe propicia a superação desse fato marcante e prejudicial, bastante para afetar intensamente o comportamento e o bem estar psíquicos” . Asseverou o Tribunal Regional ainda que, “a despeito da imputação patronal de responsabilidade à reclamante, por ser a autoridade máxima da loja, atuando como longa manus do empregador, certo é que a empregadora manteve o contrato de trabalho por mais de cinco anos, considerando que a dispensa sem justa causa ocorreu em 10.4.2015 (fls. 17), o que infirma a tese defensiva de poder ser atribuída à Reclamante a culpa pela presença de produtos em comercialização com data de validade vencida”. Dos dados fáticos transcritos pelo Tribunal Regional, verifica-se que não ficou demonstrada a negligência direta da obreira na verificação da validade dos produtos comercializados na Reclamada, pois tal vistoria dependeria de um sistema mais complexo de monitoramento, escapando à possibilidade de inspeção individual e pessoal das mercadorias. Não poderia a empresa transferir à Reclamante os riscos do empreendimento (art. 2º, caput , da CLT), imputando-lhe um ato falho grave de responsabilidade do próprio ente patronal, que não respeitou regras básicas de avaliação da higidez dos produtos postos à venda. Assim, diante da submissão da Reclamante a situação que atentou contra a sua dignidade, a sua integridade psíquica e o seu bem-estar individual – bens imateriais que compõem seu patrimônio moral protegido pela Constituição -, impõe-se a manutenção da condenação da Reclamada ao pagamento de indenização por danos morais, conforme autorizam o inciso X do art. 5º da Constituição Federal e os arts. 186 e 927, caput , do CCB/2002. Ademais, diante do quadro fático delineado no acórdão regional, qualquer conclusão em sentido diverso dependeria do revolvimento de fatos e provas, procedimento vedado nesta instância recursal, conforme o disposto na Súmula 126/TST. Agravo de instrumento desprovido.
A decisão foi unânime.
Processo: AIRR-1000602-37.2017.5.02.0053