Falta de demonstração de vínculo permanente afasta condenação por associação para o tráfico

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus para absolver três homens que haviam sido condenados no Rio de Janeiro por associação para o tráfico de drogas, por entender que, para o reconhecimento desse crime, é necessária a demonstração de vínculo estável e permanente entre os envolvidos.

O colegiado aplicou a jurisprudência da corte, que exige provas robustas da estabilidade do vínculo entre os agentes para caracterizar a associação. Apesar da absolvição, a turma manteve a condenação referente ao crime de tráfico de drogas.

O caso dos autos teve origem em operação policial que aconteceu na Comunidade Nova Holanda, na cidade do Rio. Três homens foram presos e, no local, foi encontrado mais de um quilo de cocaína, além de materiais utilizados para fracionar e embalar a droga.

Condenação foi mantida em segundo grau

Em primeira instância, os autores foram condenados pela prática de tráfico de drogas e por associação para o tráfico. Conforme os autos, o juiz apontou a quantidade significativa de entorpecente, os materiais apreendidos, o local em que foi realizada a prisão (comunidade carioca com atuação de facção criminosa) e os depoimentos dos policiais para sustentar o enquadramento no crime de associação.

A condenação foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sob a justificativa de que as provas apresentadas assegurariam a autoria e a materialidade dos crimes.

No recurso ao STJ, a Defensoria Pública sustentou a atipicidade da conduta quanto ao crime de associação para o tráfico, com o argumento de que não foram demonstradas a estabilidade e a permanência de vínculos necessárias para a caracterização do delito.

Ônus da prova não pode ser atribuído ao acusado

A relatora, ministra Laurita Vaz, destacou que, no processo, não foram comprovadas circunstâncias que demonstrassem a vontade dos agentes de se associarem de forma estável para a prática do tráfico, como exigido no tipo penal, assim como não se indicou o prazo ao longo do qual os réus estariam associados, nem quais seriam as suas funções no grupo.

A magistrada afirmou que não pode haver condenação por associação embasada apenas no que foi apontado pelo juízo de primeiro grau. Segundo explicou, a obrigação de demonstrar a presença dos elementos capazes de caracterizar a associação para o tráfico é de quem acusa, mas, mantida a situação do processo, haveria uma inversão desse ônus, impondo-se aos acusados a tarefa de comprovar sua inocência.

“Concluo, dessa forma, que foi demonstrada tão somente a configuração do delito de tráfico de drogas, deixando a jurisdição ordinária de descrever objetivamente fatos que demonstrassem o dolo e a existência objetiva de vínculo estável e permanente entre os agentes”, declarou a relatora.

O recurso ficou assim ementado:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. TIPO PENAL DO ART. 35 DA LEI N. 11.343⁄2006. JURISDIÇÃO LOCAL QUE NÃO DECLINOU OBJETIVA E CONCRETAMENTE A ESTABILIDADE E PERMANÊNCIA DOS AGENTES PARA A PRÁTICA DA NARCOTRAFICÂNCIA. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO DURADOURO. INIDONEIDADE DA PRESUNÇÃO DE QUE OS RÉUS ERAM ASSOCIADOS À FACÇÃO QUE COMANDA O TRÁFICO DE DROGAS NA LOCALIDADE. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO NÃO COMPROVADO. ÔNUS QUE SE IMPÕE NO SISTEMA ACUSATÓRIO. ABSOLVIÇÃO DE RIGOR. PLEITO DE DECOTE DA MAJORANTE PREJUDICADO. CORRÉU: EXTENSÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO E POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA MINORANTE DO TRÁFICO PRIVILEGIADO COM O CONSEQUENTE REDIMENSIONAMENTO DAS PENAS E A FIXAÇÃO DO REGIME INICIAL SEMIABERTO. ORDEM CONCEDIDA, INCLUSIVE COM EXTENSÃO DA ORDEM, NO PONTO, AO CORRÉU.
1. No caso, os elementos relativos à estabilidade e à permanência foram deduzidos da apreensão de significativa quantidade de drogas e de petrechos comuns na prática da narcotraficância, quando da realização de operação na localidade, além dos depoimentos policiais atestando que “é notória a existência da facção denominada ‘Comando Vermelho (CV)’ na Comunidade Nova Holanda” e que “não era possível que os acusados estivessem ali sem prévia associação com os demais traficantes integrantes da referida facção” (fl. 31).
2. Ocorre que, ao que consta, não houve investigação prévia ou qualquer elemento de prova capaz de apontar que os Pacientes estavam associados, de forma estável (sólida) e permanente (duradoura), entre si ou a outrem. Não foi indicada a existência de alvos específicos na citada operação policial nem sequer mencionado o lapso temporal durante o qual os agentes supostamente estavam associados ou quais seriam as suas funções no grupo.
3. Não se pode referendar uma condenação por associação para o tráfico pautada apenas em ilações a respeito do local em que apreendidas as drogas etiquetadas e os petrechos comumente utilizados na endolação de entorpecentes, pois isso equivaleria a validar a adoção de uma seleção criminalizante norteada pelo critério espacial, em que as vilas e favelas são mais frequentemente percebidas como “lugares de tráfico”, em razão das representações desses espaços territoriais como necessariamente associados ao comércio varejista de drogas (KONZEN, Lucas P.; GOLDANI, Julia M. “Lugares de tráfico”: a geografia jurídica das abordagens policiais em Porto Alegre. Revista Direito GV [online]. 2021, v. 17, n. 3.). Admitir-se que o simples fato de o flagrante ter ocorrido em comunidade dominada por facção criminosa – e não em outros locais da cidade – comprove, ipso facto, a prática do crime em comento significa, em última instância, inverter o ônus probatório e atribuir prova diabólica de fato negativo à Defesa, pois exige-se, de certo modo, que o Acusado comprove que não está envolvido com facção criminosa.
4. Desse modo, de rigor a absolvição dos Pacientes pelo delito de associação para o tráfico. E, uma vez afastada a condenação em tela, fica prejudicado o pedido de decote da majorante prevista no art. 40, inciso IV, da Lei n. 11.343⁄06, aplicada pelas instâncias ordinárias apenas na dosimetria da pena do crime de associação para o tráfico.
5. O Corréu WALMIR TAVARES DA SILVA, no que diz respeito ao crime de associação para o tráfico, encontra-se na mesma situação fático-processual dos Pacientes, razão pela qual devem ser estendidos a ele os efeitos do julgamento desta impetração, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal. Todavia, diferentemente dos Pacientes, o Corréu é primário e sem antecedentes desabonadores, de forma que faz jus à minorante prevista no art. 33, § 4.º, da Lei n. 11.343⁄2006, na fração de 1⁄3 (um terço) – em razão da quantidade e natureza das drogas apreendidas, que não foram valoradas na fixação da pena-base – e ao regime inicial semiaberto.
6. Ordem de habeas corpus concedida para absolver os Pacientes do delito de associação para o tráfico (art. 35 da Lei n. 11.343⁄2006), mantidos os demais termos dos éditos condenatórios. Determinada a extensão da ordem, no ponto, ao Corréu WALMIR TAVARES DA SILVA e, apenas com relação a ele, redimensionadas também as penas do crime de tráfico de drogas, por força da aplicação da minorante do tráfico privilegiado e fixado o regime inicial semiaberto.
 

Leia o acórdão no HC 739.951.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): HC 739951

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