Um arquiteto conseguiu na Justiça o direito de ser indenizado pela fabricante de tintas que usou a imagem de uma casa projetada por ele nas latas do produto e em material publicitário, sem sua autorização nem indicação de seu nome como autor do projeto. O uso da imagem havia sido permitido pelo proprietário do imóvel.
Ao analisar o caso, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a criação intelectual “guarda em si aspectos indissociáveis da personalidade de seu criador”, razão pela qual “a mera utilização da obra sem a devida atribuição do crédito autoral representa, por si, violação de um direito da personalidade do autor” e é, portanto, sujeita a indenização, como afirmou o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze.
A fabricante de tintas alegou que foi autorizada pelo proprietário, mediante pagamento de R$ 30 mil, a reproduzir, com fins comerciais e durante 20 anos, a imagem da fachada de sua casa. Sustentou ainda que a imagem havia sido captada em logradouro público, o que é permitido pelo artigo 48 da Lei 9.610/98.
No processo, o arquiteto requereu reparação por danos morais e patrimoniais no montante de 5% sobre a venda das latas de tinta e de 10 % sobre o gasto com o material publicitário que continha a imagem da casa.
Direito exclusivo
O ministro Bellizze explicou que os direitos morais e patrimoniais sobre a obra pertencem exclusivamente ao seu autor e que a proteção ao direito autoral do arquiteto abrange tanto o projeto e o esboço confeccionados, como a obra em si, materializada na construção.
Para ele, a utilização da imagem da casa, “representada, por fotografias, em propagandas e latas de tintas fabricadas pela demandada, encontra-se, inarredavelmente, dentro do espectro de proteção da Lei de Proteção dos Direitos Autorais”.
Segundo o relator, a simples contratação do projeto arquitetônico ou a compra do imóvel construído pelo proprietário “não transfere automaticamente os direitos autorais, salvo disposição expressa em contrário e ressalvado, naturalmente, o modo de utilização intrínseco à finalidade da aquisição”.
Conforme o processo, o contrato firmado entre o arquiteto e o proprietário foi omisso nesse ponto, portanto o proprietário da casa “não incorporou em seu patrimônio jurídico o direito autoral de representá-la por meio de fotografias, com fins comerciais, tampouco o de cedê-la a outrem”, disse o ministro. Assim, acrescentou, “a autorização por ele dada não infirma os direitos do arquiteto”.
Finalidade lucrativa
Com relação à argumentação da fabricante de tintas, de que a fotografia foi captada em logradouro público, Bellizze esclareceu que, em princípio, a representação por meio de pinturas, desenhos ou fotografias de obras situadas permanentemente em logradouros públicos, por qualquer observador, não configura violação de direito autoral, por integrarem o meio ambiente, compondo a paisagem como um todo.
Porém, o caso analisado não é de mera representação da paisagem em que a obra arquitetônica está inserida, “mas sim de representação unicamente da obra arquitetônica, com finalidade lucrativa”. Tal fato, segundo o relator, “refoge, em absoluto, do âmbito de aplicação do artigo 48 da Lei 9.610”, sendo a utilização comercial da obra “direito exclusivo de seu autor”.
Quanto ao valor solicitado pelo arquiteto, o ministro afirmou que os danos materiais devem ser certos e determinados, não sendo adequada a adoção de percentuais que, no caso dos autos, além de não expressar os prejuízos suportados, proporcionariam “indevido enriquecimento sem causa”.
A turma condenou a fabricante de tintas a reparar os danos materiais em R$ 30 mil, com juros moratórios e correção monetária a partir do evento danoso, e manteve a indenização do dano moral, fixada na sentença.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSOS ESPECIAIS. 1. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DE DIREITO MORAL E PATRIMONIAL DO AUTOR DE OBRA ARQUITETÔNICA, REPRODUZIDA EM LATAS DE TINTAS E MATERIAL PUBLICITÁRIO, SEM SUA AUTORIZAÇÃO E INDICAÇÃO DO CRÉDITO AUTORAL. 2. AUTORIZAÇÃO DO PROPRIETÁRIO DA CASA RETRATADA, MEDIANTE CORRELATA REMUNERAÇÃO (CONTRATO DE CESSÃO DE USO DE IMAGEM). IRRELEVÂNCIA. ADQUIRENTE DA OBRA, EM REGRA, NÃO INCORPORA DIREITOS AUTORAIS. 3. ESCUSA DO ART. 48 DA LEI N. 9.610⁄1998 (OBRA SITUADA EM LOGRADOURO PÚBLICO). INAPLICABILIDADE. UTILIZAÇÃO DA OBRA COM FINALIDADE COMERCIAL. 4. SANÇÃO CIVIL. SUBSUNÇÃO DO FATO À NORMA SANCIONADORA. NÃO VERIFICAÇÃO. 5. VIOLAÇÃO DE DIREITO PATRIMONIAL DO AUTOR. RECONHECIMENTO. MENSURAÇÃO CERTA E DETERMINADA DO DANO MATERIAL. NECESSIDADE. 6. VIOLAÇÃO DE DIREITO MORAL DO AUTOR. AUSÊNCIA DO CRÉDITO AUTORAL. SUFICIÊNCIA PARA A CARACTERIZAÇÃO DE DANO MORAL INDENIZÁVEL. 7. RECURSO ESPECIAL DA FABRICANTE DE TINTAS IMPROVIDO; E RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO PELO AUTOR DA OBRA PARCIALMENTE PROVIDO.1. Especificamente em relação às obras arquitetônicas, o projeto e o esboço, elaborados por profissionais legalmente habilitados para tanto, e a edificação são formas de expressão daquelas. A construção consiste no meio físico em que a obra arquitetônica, concebida previamente no respectivo projeto, veio a se plasmar. A utilização (no caso, com finalidade lucrativa) da imagem da obra arquitetônica, representada, por fotografias, em propagandas e latas de tintas fabricadas pela demandada encontra-se, inarredavelmente, dentro do espectro de proteção da Lei de Proteção dos Direitos Autorais.2. A aquisição, em si, de uma obra intelectual não transfere automaticamente os direitos autorais, salvo disposição expressa em contrário e ressalvado, naturalmente, o modo de utilização intrínseco à finalidade da aquisição. Na hipótese dos autos, ante o silêncio do contrato, o proprietário da casa, adquirente da obra arquitetônica, não incorporou em seu patrimônio jurídico o direito autoral de representá-la por meio de fotografias, com fins comerciais, tampouco o de cedê-lo a outrem, já que, em regra, a forma não lhe pertence e o aludido modo de utilização refoge da finalidade de aquisição. Assim, a autorização por ele dada não infirma os direitos do arquiteto, titular do direito sob comento.3. Em razão de as obras situadas permanentemente em logradouros públicos integrarem de modo indissociável o meio ambiente, a compor a paisagem como um todo, sua representação (por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais), por qualquer observador, não configura, em princípio, violação ao direito autoral. A obra arquitetônica, ainda que situada permanentemente em propriedade privada, sendo possível visualizá-la a partir de um local público, integra, de igual modo, o meio ambiente e a paisagem como um todo, a viabilizar, nesse contexto (paisagístico) a sua representação, o que, também, não conduziria à violação do direito do autor. A hipótese, todavia, não é de mera representação da paisagem, em que inserida a obra arquitetônica, mas sim de representação unicamente da obra arquitetônica, com a finalidade lucrativa. Refoge, em absoluto, do âmbito de aplicação do art. 48 da Lei n. 9.610⁄1998, a representação por terceiro de obra arquitetônica com finalidade comercial, que, como detidamente demonstrado, consubstancia direito exclusivo de seu autor.4. O art. 103, da Lei n. 9.610⁄1998, veicula sanção civil específica pela violação de determinado direito autoral (editar fraudulentamente obra sem autorização do titular), e não, propriamente, um parâmetro de reparação pelo dano material percebido pelo autor da obra. Na espécie, não houve edição⁄reprodução da obra, compreendida esta como a confecção de cópia ou exemplar da obra em si, e, muito menos, reprodução fraudulenta da obra, que pressupõe má-fé, ou seja, deliberado propósito de contrafação.5. A mensuração do dano material deve ser certa e determinada, não comportando meras conjecturas. In casu, o autor deve obter a reparação pela violação de direito patrimonial, consistente na remuneração pela representação de sua obra ajustada, devidamente atualizada, nos exatos termos em que se deu a contratação entre a fabricante de tintas, de renome no seguimento, e o suposto titular do direito autoral, os proprietários da casa retratada. Inexiste razão idônea para compreender que esta contratação não observou a praxe mercadológica para a concessão dos direitos de utilização da imagem, com a prática de valores igualmente condizentes com o objeto contratado.6. A criação intelectual é expressão artística do indivíduo; a obra, como criação do espírito, guarda em si aspectos indissociáveis da personalidade de seu criador. Nessa extensão, a defesa e a proteção da autoria e da integridade da obra ressaem como direitos da personalidade do autor, irrenunciáveis e inalienáveis. Por conseguinte, a mera utilização da obra, sem a devida atribuição do crédito autoral representa, por si, violação de um direito da personalidade do autor e, como tal, indenizável.7. Recurso especial da fabricante de tintas improvido; e recurso especial do autor da obra parcialmente provido.
Controverte-se no bojo dos recursos especiais em análise se o autor de projeto de obra arquitetônica, devidamente remunerado para tanto, faz jus ao ressarcimento por danos de ordem material e moral em virtude da utilização comercial da imagem da casa (com aquiescência de seu proprietário), reproduzida em propagandas e latas de tintas fabricadas pela demandada (Basf S.A.), sem sua autorização e indicação de autoria.
Debate-se, outrossim, se a autorização do proprietário da casa dada à fabricante de tintas (mediante o correlato pagamento) para reproduzir, com fins comerciais, a imagem da fachada de seu imóvel, captada, segundo alegado, em logradouro público, obsta, ou não, o direito do autor do projeto arquitetônico em obter o ressarcimento perseguido, nos termos da legislação de regência.
Passa-se ao enfrentamento conjunto dos recursos especiais interpostos pelas partes adversas, na medida em que abordam, basicamente, os mesmos temas, naturalmente, com enfoques e reflexos distintos.
De início, releva reconhecer que o projeto, o esboço e a obra arquitetônica, expressos por qualquer meio ou fixados em qualquer suporte tangível ou intangível, consubstanciam obra de criação intelectual e, como tal, seu autor faz jus à proteção que a lei de regência lhe confere.
Nestes exatos termos dispõe o art. 7º, X, da Lei n. 9.610⁄1998:
Das Obras ProtegidasArt. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:[…]X – os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência;Especificamente em relação às obras arquitetônicas, o projeto e o esboço, elaborados por profissionais legalmente habilitados para tanto, e a edificação propriamente construída, são formas de expressão daquelas. Veja-se, pois, que a construção consiste no meio físico em que a obra arquitetônica, concebida previamente no respectivo projeto, veio a se plasmar.
Nos dizeres de José de Oliveira Ascenção:
[…] obra de arquitetura não é a construção na sua materialidade, mas a realidade incorpórea, encarnada ou não na construção. […] No que respeita à obra de arquitetura, ela concretiza-se com a construção. Mas já existe antes desta, no estádio do projeto. […] A construção é o modo típico de utilização duma obra arquitetônica. É uma modalidade de utilização da obra. (Direito Autoral. 2ª Edição. 1997. Rio de Janeiro. p. 416)É de se concluir, por conseguinte, que a proteção ao direito autoral, no caso, do arquiteto, abrange tanto o projeto e o esboço confeccionados por profissional legalmente habilitado, como a obra em si, materializada na construção edificada.
Sem descurar do fato de que a principal forma de utilização e aproveitamento econômico de um projeto arquitetônico é a edificação, a lei de regência, em seu art. 29, estabelece outras modalidades de utilização da obra, sem esgotá-las (numerus apertus), exigindo-se, para tanto, prévia e expressa autorização do seu autor. Afinal, é direito exclusivo do autor a utilização, fruição e disposição de sua obra (art. 28, Lei n. 9.610⁄1998).
Inserem-se, pois, nos modos de utilização da obra arquitetônica, entre outros, a representação por meio de fotografias, pinturas, desenhos e procedimentos audiovisuais e a reprodução do projeto em forma de maquetes, miniaturas, suvenires, etc.
A partir dessas considerações de cunho conceitual, já se pode antever que a utilização (no caso, com finalidade lucrativa) da imagem da obra arquitetônica, representada, por fotografias, em propagandas e latas de tintas fabricadas pela demandada, encontra-se, inarredavelmente, dentro do espectro de proteção da Lei de Proteção dos Direitos Autorais.
A propósito, o direito autoral preocupa-se basicamente com a forma em que determinada idéia é explicitada⁄exteriorizada, e não, propriamente, como a ideia é concebida, que é objeto de proteção do direito industrial, como bem distingue Fábio Ulhoa Coelho (in Curso de Direito Comercial. Volume I. Editora Saraiva. 18ª Edição. 2014. p. 214).
Há que se inferir, nesse passo, se o contrato celebrado entre o arquiteto, autor do projeto, e o encomendante do projeto arquitetônico, proprietário do edifício em que a obra veio a se plasmar, tem o condão de transmitir a este, por si, os direitos do autor, ou parte deles.
Como visto, uma das teses aventadas pelo demandada Basf S.A, ora recorrente, é justamente o argumento de que obteve, mediante o pagamento de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), a autorização do proprietário da casa para representar a imagem desta em seus produtos e materiais publicitários, por vinte anos, pessoa que, em sua compreensão, seria o detentor do aludido direito autoral (do direito de representação da imagem da obra arquitetônica, com finalidade lucrativa).
Tal argumentação, entretanto, não tem respaldo na lei de regência.
Os direitos morais e patrimoniais sobre a obra pertencem exclusivamente ao seu autor. A Lei n. 9.610⁄1998, em seu art. 27, reputa, inclusive, serem inalienáveis e irrenunciáveis os direitos morais sobre a obra. Permite-se, assim, a transferência apenas dos direitos autorais de natureza patrimonial, em sua totalidade ou em parte, e a título singular ou universal (ou seja, para determinada modalidade de utilização da obra ou para todas aquelas previstas no art. 29), a depender dos expressos termos avençados.
Desse modo, a extensão dos direitos autorais (de natureza patrimonial) a serem transferidos deverá estar devidamente delimitada no contrato de licenciamento, concessão, cessão ou outro admitido em lei, adotando-se, como norte hermenêutico, sempre uma interpretação restritiva (art. 4º) e, via de consequência, favorável ao criador da obra intelectual.
Com essa diretriz, dispõe a lei de regência que, ao adquirente de uma obra, no caso arquitetônica (que, como visto, abrange o projeto e o esboço confeccionados por profissional legalmente habilitado, como a obra em si, materializada na construção edificada), não é transmitido nenhum dos direitos do autor, salvo expressa disposição em contrário.
O art. 37 da Lei n. 9.610⁄1998 é claro nesse sentido:
Art. 37. A aquisição do original de uma obra, ou de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário entre as partes e os casos previstos nesta Lei.Todavia, este dispositivo legal deve ser interpretado com razoabilidade.
Releva assentar, no ponto, que a aquisição, em si, de uma obra intelectual, não transfere automaticamente os direitos autorais, salvo disposição expressa em contrário e ressalvado, naturalmente, o modo de utilização intrínseco à finalidade da aquisição.
Não se pode, por óbvio, negar àquele que encomenda a confecção de um projeto arquitetônico, mediante a correspondente remuneração, vindo a adquirir a obra, o direito de materializar a criação intelectual em uma construção edificada. A edificação da construção, independente de qualquer estipulação contratual, consubstancia a própria finalidade da aquisição do projeto arquitetônico, inquestionavelmente. Logo, o adquirente do projeto arquitetônico, implicitamente, incorpora o direito de materializar a obra arquitetônica em uma construção.
Na mesma linha de raciocínio, uma vez edificada a construção (forma de expressão da obra arquitetônica), o adquirente da obra não incorpora em seu patrimônio jurídico qualquer outro direito autoral cujo modo de utilização não seja intrínseco à finalidade da aquisição.
É dizer: se o modo de utilização da obra for inerente à finalidade de sua aquisição, o adquirente poderá dele se valer sem necessitar de qualquer autorização do autor. Do contrário, o direito é do autor intelectual e, como tal, outras modalidades de utilização da obra que não intrínsecas à finalidade de aquisição dependerão, necessariamente, de sua autorização.
Esta análise deve ser feita casuisticamente.
Com esse norte, verifica-se que o proprietário da edificação, na qual se plasma a obra arquitetônica, não incorpora, pela simples aquisição, o direito autoral de representá-la para fins comerciais. Há que se reconhecer, também, que a utilização da imagem da obra arquitetônica, representada por fotografias, com finalidade lucrativa, desborda inequivocamente da finalidade da aquisição do projeto arquitetônico (da obra, em si).
Com essa compreensão, especializada doutrina, valendo-se de renomados autores na matéria, anota:
Encomendante de um projeto arquitetônico é aquele que requisita a elaboração de um projeto com, geralmente, a finalidade de materializá-lo com a construção. No contrato de encomenda, “a obra nasce ‘por iniciativa’ de outrem (que solicita, orienta, sugere, reproduz, divulga, etc., tudo conforme o contrato)” na explicação de Edmir Araújo (1999, p. 54)[…]Para o saudoso Walter Moraes (177, p. 52), o proprietário “não pode reproduzir (vender, explorar) a obra arquitetônica pela repetição, pelas miniaturas ou por imagem, pois a forma estética não lhe pertence”. “Mesmo que o proprietário tenha ficado com as plantas, não ficou com o direito do autor”, como bem observou José de Oliveira Ascensão (1997, p. 417).[…]Outro grande estudioso, Carlos Alberto Bittar (2003, p. 41), também externou pensamento semelhante:Se um projeto arquitetônico foi encomendado para sede de um edifício, somente a esse fim se resumirá o direito do encomendante. […] permanecendo, pois, no acervo patrimonial do autor outras modalidades de aproveitamento não contratadas (por exemplo a repetição do projeto em outros prédios) […] Não pode o encomendante, pois, fazer qualquer outra utilização, sem prévia consulta ao autor e a consequente remuneração específica, sob pena de violação.Vale ressaltar que o pagamento do valor requerido pelo autor para a elaboração de um projeto encomendado não implica a transferência total da titularidade dos direitos autorais patrimoniais […]. Pelo contrário, pois a regra geral é que nenhum direito autoral é transferido pelos simples pagamento. […]A esta regra cabe uma exceção, pois, no silêncio contratual, não havendo especificação quanto à modalidade de utilização, o contrato será interpretado restritivamente, entendendo-se como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do mesmo.O autor do projeto só cede o que está expresso no contrato, ou no silêncio deste, transfere os direitos a uma modalidade de utilização que seja indispensável ao contratante. Todos os demais direitos a formas de utilização de sua obra permanecem no patrimônio do autor.Aduz Eduardo Pimenta (2005, p. 133) que:O arquiteto, quando contratado para criar um projeto, implicitamente já autorizou a edificação do projeto (o que implica em reproduzi-la nos termos lançados no papel e por consequência em executá-la), mas o proprietário não está autorizado à reprodução, quer em nova edificação, quer em fotografia.Portanto, não pode o encomendante do projeto arquitetônico ou de engenharia utilizar o mesmo para outra finalidade senão aquela estritamente autorizada pelo autor do projeto. No silêncio contratual, presume-se que o autor transferiu os direitos autorais para a construção de uma única edificação. Em situações como essa, o proprietário não pode, sem anuência do autor, utilizar o mesmo projeto, ou parte dele, em outra edificação. (Flôres. Leandro Vanderlei Nascimento. Arquitetura e Engenharia com Direitos Autorais. Editora Pillares. 2ª Edição. 2013. São Paulo. p. 110-112)Na hipótese dos autos, ante o silêncio do contrato, o proprietário da casa, adquirente da obra arquitetônica, não incorporou em seu patrimônio jurídico o direito autoral de representá-la por meio de fotografias, com fins comerciais, tampouco o de cedê-lo a outrem, já que, em regra, a forma não lhe pertence e o aludido modo de utilização refoge da finalidade de aquisição. Assim, a autorização por ele dada não infirma os direitos do arquiteto, titular do direito sob comento.
Superada esta questão, a insurgente Basf S.A., em suas razões recursais, rechaça, ainda, a conclusão do Tribunal de origem que reconheceu os direitos morais do autor da obra, sob o argumento de que a imagem da fachada da casa foi captada e reproduzida em suas latas de tinta e propagandas publicitárias, que se encontra situada em logradouro público, a incidir a escusa do artigo 48 da Lei n. 9.610⁄1998.
Razão, todavia, não lhe assiste.
O aludido dispositivo legal dispõe:
Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.Em razão de as obras situadas permanentemente em logradouros públicos integrarem de modo indissociável o meio ambiente, a compor a paisagem como um todo, sua representação (por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais), por qualquer observador, não configura, em princípio, violação ao direito autoral.
A interpretação literal do artigo poderia levar, de plano, a rechaçar a tese da recorrente Basf, na medida em que a obra arquitetônica representada, no caso dos autos, encontra-se situada permanentemente em propriedade privada. Todavia, não se pode olvidar que a obra arquitetônica, ainda que situada permanentemente em propriedade privada, sendo possível visualizá-la a partir de um local público, integra, de igual modo, o meio ambiente e a paisagem como um todo, a viabilizar, nesse contexto (paisagístico) a sua representação, o que, também, não conduziria à violação do direito do autor.
A hipótese, todavia, não é de mera representação da paisagem, em que inserida a obra arquitetônica, mas sim de representação unicamente da obra arquitetônica, com finalidade lucrativa. Refoge, em absoluto, do âmbito de aplicação do dispositivo legal sob comento a representação por terceiro de obra arquitetônica com finalidade comercial, que, como detidamente demonstrado, consubstancia direito exclusivo de seu autor.
A propósito, com essa exegese, cita-se julgado da Quarta Turma desta Corte de Justiça:
CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS. DIREITOS AUTORAIS. OBRA EM LOGRADOURO PÚBLICO. REPRODUÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO. CABIMENTO.[…]II. A obra de arte colocada em logradouro da cidade, que integra o patrimônio público, gera direitos morais e materiais para o seu autor quando utilizado indevidamente foto sua para ilustrar produto comercializado por terceiro, que sequer possui vinculação com área turística ou cultural.[…](REsp 951.521⁄MA, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 22⁄03⁄2011, DJe 11⁄05⁄2011)Revelam-se, pois, insubsistentes os fundamentos adotados pelas instâncias ordinárias quanto à aplicação do art. 48 da Lei n. 9.610⁄1998 e à idoneidade da autorização dada pelo proprietário da obra representada, para afastar a pretensão indenizatória pela violação dos direitos patrimoniais do autor da obra.
Há que se reconhecer, nessa toada, que o autor da obra arquitetônica faz jus, sim, à indenização decorrente da violação de seu direito patrimonial, consistente na contraprestação pela representação (da obra) nas latas de tinta e no material publicitário da Basf S.A. Não, todavia, nos parâmetros pretendidos pelo demandante, que, para tal propósito, pugna pela fixação dos montantes de 5% sobre a comercialização das latas de tinta e de 10% sobre gasto com o material publicitário contendo a imagem da casa, invocando a aplicação analógica do art. 103 da Lei n. 9.610⁄1998.
O danos materiais devem ser certos e determinados, não se afigurando adequado, para sua mensuração, a adoção de percentuais que, no caso dos autos, longe de expressar os prejuízos efetivamente suportados (dano emergente e lucros cessantes), propiciam indevido enriquecimento sem causa.
A esse propósito, o art. 103 da Lei n. 9.610⁄1998 não se presta.
O referido dispositivo legal veicula sanção civil específica pela violação de determinado direito autoral (editar fraudulentamente obra sem autorização do titular), e não, propriamente, um parâmetro de reparação pelo prejuízo percebido pelo autor da obra. A distinção é evidenciada, aliás, pela própria possibilidade de coexistência da indenização pelos prejuízos decorrentes da violação do direito patrimonial do autor com a imposição de sanção civil, desde que, nesse último caso, haja estrita subsunção do fato com a norma sancionadora, o que não se tem na espécie.
Pela pertinência, transcrevem-se os seguintes dispositivos legais:
Sanções às Violações dos Direitos AutoraisCapítulo IDisposição PreliminarCapítulo IIDas Sanções CivisArt. 102. O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada, poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível.Art. 103. Quem editar obra literária, artística ou científica, sem autorização do titular, perderá para este os exemplares que se apreenderem e pagar-lhe-á o preço dos que tiver vendido.Parágrafo único. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudulenta, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos.Na espécie, a demandada representou a obra arquitetônica, por meio de fotografia, estampada em suas latas de tinta e material publicitário, com fins comerciais, sem a autorização do autor (e sim do proprietário da construção em que a obra se plasmou).
Não houve edição⁄reprodução da obra, compreendida esta como a confecção de cópia ou exemplar da obra em si, e, muito menos, reprodução fraudulenta da obra, que pressupõe má-fé, ou seja, deliberado propósito de contrafação.
Logo, a sanção prevista no art. 103 impõe-se ao contrafator que vem a explorar economicamente a cópia ou o exemplar da obra em si, fraudulentamente reproduzida, o que, a toda evidência, não se deu na hipótese dos autos. Aliás, a sanção para tal conduta é justamente o perdimento, em favor do autor, das cópias e exemplares encontrados da obra indevidamente reproduzida, bem como de todos os valores auferidos com a sua venda, consectários in totum inaplicáveis à hipótese dos autos.
É certo, ainda, que as instâncias ordinárias, de modo uníssono, reconheceram o proceder probo da demandada de buscar a autorização do proprietário de imóvel, por duas oportunidades, despendendo, em contrapartida, considerável remuneração para utilizar a imagem da casa em seus produtos e materiais publicitários, tanto é assim que reputaram a autorização do proprietário da casa, agregada à escusa do art. 48 da Lei n. 9.610⁄1998, suficiente para reconhecer a ausência de violação ao direito patrimonial do autor.
Tal compreensão merece reparo, mas não na extensão pretendida pelo demandante, que aponta percentuais, sem qualquer respaldo legal e absolutamente distantes do dano patrimonial efetivamente sofrido.
In casu, o autor deve obter a reparação pela violação de direito patrimonial, consistente na remuneração pela representação de sua obra ajustada, devidamente atualizada, nos exatos termos em que se deu a contratação entre a fabricante de tintas, de renome no seguimento, e o suposto titular do direito autoral, os proprietários da casa retratada.
Ressalta-se que, na oportunidade (em 17⁄1⁄2005), a contratação levou em conta, inclusive, o fato de a Basf, anteriormente (em 25⁄10⁄2001), ter sido levada a erro ao adquirir, por R$ 3.800,00 (três mil e oitocentos reais), o direito de representar a obra sob comento de pessoa que se intitulou, inveridicamente, proprietária da casa (e-STJ, fls. 38-41 e 123).
Em 17⁄1⁄2005, os verdadeiros proprietários da edificação em que se plasmou a obra arquitetônica, embora também não titularizassem o direito autoral de representação daquela, licenciaram-no por R$ 30.000,00 (trinta mil reais), por vinte anos. Em tal ajuste, não houve nenhuma estipulação de percentuais sobre a venda ou sobre o material de publicidade, em favor do suposto titular do direito autoral.
Como se vê, a demandada Basf, antes mesmo do ajuizamento da presente ação, por duas oportunidades, pagou pelo direito de utilizar a obra sob comento (na modalidade representação) de pessoas que não detinham, efetivamente, a titularidade do direito autoral. Esse fato não a escusa de pagar a quem de direito (ao autor da obra), mas denota inequívoca boa-fé em tornar legítimo, desde o seu início, o uso da imagem da obra.
Inexiste razão idônea para compreender que esta contratação (datada de 17⁄1⁄2005) não observou a praxe mercadológica para a concessão dos direitos de utilização da imagem, com a prática de valores igualmente condizentes com o objeto contratado.
Não se olvida que o titular do direito autoral poderia influir nas condições contratuais. Por outro lado, poderia se cogitar que, outras condições, tais como as ora perseguidas pelo demandante (percentuais sobre a venda e sobre o material publicitário), também não seriam aceitas pela fabricante de tintas. A mensuração do dano material deve ser certa e determinada, não comportando meras conjecturas. Daí a prevalência, para tal propósito, dos termos efetivamente ajustados (em 17⁄1⁄2005), sobre os quais não pairam discussões quanto à observância dos padrões de mercado, em contratos dessa natureza.
Por fim, controvertem as partes litigantes sobre o cabimento da indenização pela violação dos direitos morais do autor, notadamente em virtude da ausência de atribuição da obra representada ao seu criador.
No ponto, afastadas as demais teses expendidas pela demandada Basf S.A (idoneidade de autorização do proprietário e aplicação do art. 48 da Lei n. 9.610⁄98), resta sopesar a alegação de que a omissão pura e simples do crédito autoral não implicaria, ao seu juízo, o surgimento de dano de ordem moral, notadamente quando o demandante não faz qualquer prova de que sofreu abalo psicológico expressivo ou desprestígio pela omissão. Subsidiariamente, pugna pena redução da verba, a esse título, arbitrada na origem.
Razão, mais uma vez, não lhe assiste.
A criação intelectual é expressão artística do indivíduo; a obra, como criação do espírito, guarda em si aspectos indissociáveis da personalidade de seu criador. Nessa extensão, a defesa e a proteção da autoria e da integridade da obra ressaem como direitos da personalidade do autor, irrenunciáveis e inalienáveis.
Consubstanciam, assim, direitos morais do autor da obra intelectual, entre outros, o de ter “seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra”, bem como “o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra” (art. 24, I e II, da Lei n. 9.610⁄1998).
Por conseguinte, a mera utilização da obra, sem a devida atribuição do crédito autoral representa, por si, violação de um direito da personalidade do autor e, como tal, indenizável. Diversamente do que sustenta a demandada, o dano moral não é caracterizado pela dor, abalo psíquico, sofrimento, humilhação, consequências do dano, que podem ou não se fazerem presentes. É, portanto, a violação a um direito da personalidade que gera dano moral, no caso inegavelmente configurado.
O art. 108 da Lei n. 9.610⁄1998 é explícito nesse sentido:
Art. 108. Quem, na utilização, por qualquer modalidade, de obra intelectual, deixar de indicar ou de anunciar, como tal, o nome, pseudônimo ou sinal convencional do autor e do intérprete, além de responder por danos morais, está obrigado a divulgar-lhes a identidade da seguinte forma:I – tratando-se de empresa de radiodifusão, no mesmo horário em que tiver ocorrido a infração, por três dias consecutivos;II – tratando-se de publicação gráfica ou fonográfica, mediante inclusão de errata nos exemplares ainda não distribuídos, sem prejuízo de comunicação, com destaque, por três vezes consecutivas em jornal de grande circulação, dos domicílios do autor, do intérprete e do editor ou produtor;III – tratando-se de outra forma de utilização, por intermédio da imprensa, na forma a que se refere o inciso anterior.Caracterizado, assim, o dano moral indenizável, o demandante, por sua vez, reputa irrisório o valor de R$ 41.500,00 (quarenta mil e quinhentos reais), correspondente a 100 (cem) salários mínimos quando da fixação (prolação da sentença, em 9⁄5⁄2008), arbitrado pelas instâncias ordinárias. Pretende a majoração do quantum em valor superior a 300 (trezentos salários mínimos), pugnando pela aplicação analógica do art. 109 da Lei n. 9.610⁄98.
Reitera-se a compreensão de que a sanção civil prevista no art. 109 também não serve para balizar o arbitramento do dano moral. Não há nenhuma subsunção dos fatos ora discutidos com a norma sancionatória apontada.
De todo modo, a partir das particularidades do caso, e, atento às finalidades propedêuticas da reparação civil, parece-me que o arbitramento da indenização pelos danos morais em cem salários mínimos (à época da fixação) não se revela ínfimo, a autorizar a excepcional intervenção desta Corte de Justiça.
Efetivamente, a fixação de cem salários mínimos (à época do arbitramento — prolação da sentença, em 9⁄5⁄2008) encontra-se dentro de um parâmetro de razoabilidade e tem o condão de reparar, suficientemente, o dano moral suportado pelo demandante decorrente da não indicação da autoria de sua obra, a par da medida adotada na origem de obrigar a demandada a divulgar a identidade do criador, como arquiteto da obra estampada nos produtos que comercializa, com destaque, por três vezes consecutivas em jornal de grande circulação do domicílio do autor.
Ademais, a quantia, tal como fixada, não enseja indevido enriquecimento sem causa ao demandante, afigurando-se adequada à condição econômica da demandada e, principalmente, ao seu comportamento, que, como já destacado, procedeu, desde o início da utilização da obra, imbuído de boa-fé.
Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, nego provimento ao recurso especial da Basf S.A.; e dou parcial provimento ao recurso especial de Luis Afonso Monzillo, para, reconhecida a violação de direitos patrimonial do autor pela representação de sua obra arquitetônica para fins comerciais, sem sua autorização, condenar a demandada Basf S⁄A a reparar os danos materiais no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), com juros moratórios (art. 398 do Código Civil e Enunciado n. 54 da Súmula do STJ — responsabilidade extracontratual) e correção monetária (enunciado n. 43 da Súmula do STJ), a partir do evento danoso (25⁄10⁄2001). Mantida, no mais, a decisão.
Leia o acórdão.