Distribuidora pode repassar custo de emissão de boleto bancário a drogarias e farmácias

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou legal o repasse, por parte de uma distribuidora de medicamentos, da despesa relativa à tarifa de emissão de boletos bancários (ou similares) adotados como forma de pagamento na compra de seus produtos por drogarias e farmácias.

Na origem, um sindicato de empresas varejistas ajuizou ação contra a distribuidora sob a alegação de que as normas do Banco Central vedariam o repasse da despesa de emissão de boletos, inclusive em relações que não são de consumo. O sindicato afirmou ainda que o método de pagamento foi imposto unilateralmente.

A tese foi acolhida na primeira instância e no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), que entenderam que o boleto bancário foi opção unilateral da distribuidora, a qual não ofereceu outras formas de pagamento às varejistas.

Segundo o processo, o contrato firmado entre a distribuidora e o banco estipulava a cobrança do valor médio de R$ 1,55 para cada documento emitido. Desse valor, as empresas varejistas arcariam com R$ 1,39, e a distribuidora pagaria o restante.

Ao recorrer ao STJ, a distribuidora contestou que o método de pagamento tenha sido decidido de forma unilateral, pois a tarifa consta com destaque em todos os títulos e, ao aceitarem a mercadoria com o boleto, as empresas varejistas teriam demonstrado sua concordância.

Contrato empresarial

O relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão, lembrou que a relação jurídica entre a atacadista e as varejistas t​​em natureza de contrato empresarial (mercantil), sendo, portanto, disciplinada pelo direito civil, e não pelas normas protetivas do direito do consumidor, em que seriam exigidos de uma das partes os requisitos de vulnerabilidade técnica, jurídica, econômica ou informacional.

Segundo o ministro, nos termos do artigo 325 do Código Civil, a obrigação das compradoras não se resume a pagar o preço do produto, mas inclui as despesas com a quitação, exceto despesa excepcional decorrente de fato imputável ao credor.

“Penso que não há como negar que, à luz do Código Civil de 2002, a chamada tarifa de emissão de boleto bancário caracteriza despesa decorrente da oferta desse meio de pagamento às varejistas (compradoras), revelando-se razoável que lhes seja imputada”, declarou o magistrado.

Proibição para bancos​

Quanto à alegada vedação do repasse da despesa de emissão de boletos pelo Banco Central, Salomão destacou – com base na Resolução 3.919/2010 do Conselho Monetário Nacional – que a proibição se dirige unicamente às instituições financeiras, “que não podem exigir de seus clientes a remuneração de serviço sem respaldo em prévia contratação nem obter valores, a esse título, diretamente do sacado”.

“Não há que falar, contudo, em limitação à liberdade negocial de sociedades empresárias, que, no âmbito de relação mercantil, convencionem a transferência, para as adquirentes de produtos farmacêuticos (varejistas), do custo suportado pela vendedora (distribuidora) com a oferta de meio de pagamento favorável ao desenvolvimento eficiente das atividades das partes”, avaliou o relator.

Ele afirmou que o mesmo entendimento foi adotado, de forma unânime, pela Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.515.640, quando se estabeleceu que o repasse do custo do boleto pelas distribuidoras de medicamentos não caracteriza abuso do poder econômico.

Boa-fé

No caso analisado, o ministro observou que as compradoras, apesar de alegarem que a forma de pagamento foi imposta pela distribuidora, sem sua autorização formal, pediram que o boleto fosse mantido, mas sem a transferência do custo.

Para o magistrado, em tais circunstâncias, é preciso investigar a intenção das partes à luz da boa-fé objetiva, com a finalidade de resguardar a legítima expectativa ​de cada uma delas e preservar a segurança das transações.

Depois de ressaltar que as varejistas conviveram com essa modalidade de pagamento durante mais de dez anos, sem protestar contra a respectiva tarifa, Salomão concluiu não haver controvérsia sobre o fato de que a comercialização por meio de boletos bancários é prática corriqueira desse segmento empresarial.

“Tendo em vista os usos e costumes da cadeia de distribuição de produtos farmacêuticos e as práticas adotadas, de longa data, pelas partes, penso estarem presentes os requisitos para que o silêncio reiterado das varejistas – sobre a adoção dos boletos bancários e o repasse do respectivo custo – seja considerado manifestação de vontade apta à produção de efeitos jurídicos, vale dizer: seja atestada a existência de consenso em relação à forma de pagamento das mercadorias e à cobrança de tarifa”, afirmou o ministro.

O recurso paradigma REsp 1515640 ficou assim ementado:

RECURSOS ESPECIAIS. CIVIL E EMPRESARIAL. AÇÃO AJUIZADA POR SINDICATO DE FARMÁCIAS CONTRA AS DISTRIBUIDORAS DE MEDICAMENTOS VISANDO A PROIBIÇÃO DO REPASSE DA DESPESA RELATIVA AO PAGAMENTO DAS COMPRAS E VENDAS MEDIANTE BOLETO BANCÁRIO. INTERPRETAÇÃO DA RESOLUÇÃO Nº 3.919⁄2010⁄CMN QUE NÃO PODE ULTRAPASSAR O ÂMBITO DE DISCIPLINA DO CONSELHO ALCANÇANDO RELAÇÕES INTEREMPRESARIAIS REGULADAS PELA LEI, PELOS PRINCÍPIOS E COSTUMES MERCANTIS. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA.
1. Ação ordinária movida pelo Sindicato do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos do Estado de São Paulo (SINCOFARMA) contra empresas distribuidoras de medicamentos e produtos farmacêuticos, julgada procedente com determinação de abstenção por parte das demandadas da cobrança ou repasse de despesas referentes à taxa de emissão de boletos bancários ou similares de todas as empresas associadas à entidade sindical.
2. Tratando-se de relação contratual empresarial, mediante a qual farmácias e drogarias adquirem os produtos por excelência do comércio que realizam e, para isso, utilizam determinado método de pagamento, dentre outros possíveis, a imputação, pela vendedora, dos custos relativos aos boletos bancários ao comprador, que assim escolhe a realização do pagamento por boleto bancário, é decorrência da liberdade de contratar, expressão da autonomia privada dos envolvidos, restringindo-se, sobremaneira, o espaço para que o Estado interfira na relação negocial travada e proíba prática que, ademais, é permitida pela legislação disciplinante.
3. Dúvida séria não dimana da redação do art. 325 do CCB, que fora no aresto expressamente prequestionado, no sentido de que se presumem a cargo do devedor as despesas com o pagamento e a quitação.
4. A prática de imputação das despesas com a emissão dos boletos ao comprador, segundo a recorrente, vinha, há muito, sendo levada a efeito junto aos varejistas – registre-se, há mais de 10 anos – revelando-se, pois, expressão da práticas comerciais atinentes à natureza do negócio celebrado entre as distribuidoras e as varejistas.
5. Não viola a boa-fé objetiva ou atenta contra os bons costumes aquilo que a própria lei estabelece como o padrão de conduta a ser tomado em matéria de responsabilidade pelo pagamento de despesas com a quitação de obrigações, sendo expressão do costume do negócio levado a efeito pelos experts que dele participam.
6. O Conselho Monetário Nacional não poderia avançar sobre a liberdade contratual dos empresários na celebração dos seus negócios, proibindo-lhes de proceder ao repasse dos seus custos àqueles que com eles venham a contratar, engessando, assim, a dinâmica distribuição da responsabilidade pelos custos contratuais.
7. Seja à luz do art. 325 do CCB, seja em face dos limites de atuação do Conselho Monetário Nacional, a interpretação do disposto no inciso II do §2º do art. 1º da Res. 3919 exige que se restrinja a referida proibição às hipóteses em que a remuneração do serviço de emissão de boletos não fora previamente contratada entre o cedente e o banco, estando a própria instituição financeira a se remunerar diretamente com o sacado pelos serviços prestados ao seu cliente.
8. RECURSOS ESPECIAIS PROVIDOS.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER AJUIZADA POR SINDICATO DE VAREJISTAS DE PRODUTOS FARMACÊUTICOS CONTRA AS DISTRIBUIDORAS (ATACADISTAS) VISANDO À PROIBIÇÃO DO REPASSE DA DESPESA RELATIVA AO PAGAMENTO DAS COMPRAS E VENDAS MEDIANTE BOLETO BANCÁRIO.

1. A relação jurídica instaurada entre a distribuidora de medicamentos e as farmácias e drogarias tem natureza de contrato empresarial, sendo, portanto, disciplinada pelo Direito Civil, e não pelas normas protetivas do Direito do Consumidor, por não se vislumbrar, ao menos na hipótese, parte em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica, econômica ou informacional.

2. Consoante incontroverso nos autos, era prática usual (e reiterada), no âmbito da cadeia de distribuição de medicamentos, que o pagamento efetuado pelas varejistas para a aquisição dos produtos — a serem revendidos ao consumidor final — ocorresse por meio de boleto bancário, emitido por instituição financeira em favor da comerciante atacadista.

3. Mediante a utilização de software eletrônico — que, de forma instantânea,  possibilitava o recebimento de pedidos de compras on-line —, a distribuidora emitia uma “duplicata virtual”, com o preenchimento de formulário disponibilizado pela instituição financeira, que gerava um boleto bancário, posteriormente remetido (acompanhado dos produtos) às farmácias e drogarias para o devido pagamento.

4. Nos boletos, a atacadista figurava como “cedente” (credora da obrigação) e as varejistas como “sacadas”, sendo exigido, destas últimas, o valor de R$ 1,39 (um real e trinta e nove centavos) a título de “tarifa de cobrança”. A distribuidora, portanto, transferia parte do custo convencionado com a instituição financeira para liquidação de cada boleto (R$ 1,55 – um real e cinquenta e cinco centavos), sobejando-lhe a obrigação de arcar com R$ 0,16 (dezesseis centavos) por documento.

5. À luz do disposto no artigo 325 do Código Civil — incidente em relações jurídicas paritárias como a dos autos —, a obrigação das compradoras não se resume ao pagamento do preço, presumindo-se a sua responsabilidade pelas “despesas com o pagamento e a quitação”, salvo em se tratando de despesa excepcional decorrente de fato imputável ao credor.

6. Nesse quadro, a chamada tarifa de emissão de boleto bancário caracteriza despesa decorrente da oferta desse meio de pagamento às varejistas (compradoras), revelando-se razoável que lhes seja imputada. Precedente da Terceira Turma. Superação de julgado anterior (em sentido contrário) no qual não se debateu a citada norma do Codex Civil por falta de prequestionamento.

7. Tal exegese não confronta com resoluções do Conselho Monetário Nacional, cujas normas se dirigem, unicamente, às instituições financeiras, que não podem exigir de seus clientes (pessoas, físicas ou jurídicas, com as quais mantenham vínculo negocial não esporádico) a remuneração de serviço sem respaldo em prévia contratação nem obter valores, a esse título, diretamente do sacado.

8. Outrossim, ressalvada situação flagrante de onerosidade excessiva — não constatada no caso em que a regulação estatal do setor atinge de forma mais intensa a distribuidora —, deve-se prestigiar a liberdade negocial (corolária da autonomia privada) de sociedades empresárias que, no âmbito de relação mercantil, convencionem a transferência, para as adquirentes de produtos farmacêuticos (varejistas), do custo suportado pela vendedora com a oferta de meio de pagamento favorável ao desenvolvimento eficiente das atividades das partes, ambas integrantes da cadeia de distribuição de medicamentos.

9. Na espécie, tendo em vista os usos e costumes do segmento empresarial e as práticas adotadas, de longa data, pelas partes, encontram-se presentes os requisitos para que o silêncio reiterado das varejistas — sobre a adoção dos boletos bancários e o repasse do respectivo custo — seja considerado manifestação de vontade apta a produção de efeitos jurídicos, vale dizer: seja atestada a existência de consenso em relação à forma de pagamento das “mercadorias” e à cobrança de tarifa.

10. Isso porque: (i) configurado o comportamento negativo das farmácias e drogarias, que, por mais de dez anos, pagaram os boletos bancários sem manifestar qualquer insurgência contra tal modalidade de adimplemento e a respectiva tarifa que lhes era cobrada; (ii) inexiste controvérsia sobre o fato de ser prática corriqueira do segmento empresarial a comercialização mediante boletos bancários com o escopo de otimizar a logística de distribuição de medicamentos, cuja relevância pública decorre da Constituição de 1988 e da Portaria 802⁄98 do Ministério da Saúde; (iii) também é incontroversa a habitualidade das negociações celebradas entre a atacadista e as varejistas com a utilização da citada forma de pagamento; (iv) cabia às compradoras — sociedades empresárias cuja vulnerabilidade não se reconheceu nos autos — apresentar resistência contra o modo de adimplemento ofertado durante os longos anos da relação contratual, merecendo destaque o fato de ter sido pleiteada na inicial a manutenção do pagamento via boleto bancário, havendo apenas objeção acerca do repasse da tarifa; e (v) revela-se evidente a convicção da atacadista sobre a adesão das varejistas quanto às cobranças efetuadas, na medida em que beneficiadas com a agilidade da forma de pagamento e a consequente pronta entrega dos produtos, entre outras facilidades que lhes eram ofertadas.

11. Em resumo, portanto, não há falar em abuso de poder econômico da atacadista — cuja margem de lucro é bem inferior à das varejistas, sobre as quais não recai obrigação excessivamente onerosa — nem violação à cláusula geral de boa-fé objetiva.

12. Recurso especial provido para julgar improcedente a pretensão deduzida na inicial.

Leia o acórdão.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1580446

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