A decisão leva em conta, entre outros aspectos, a recente Lei Geral de Proteção de Dados
A Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a GPS Logística e Gerenciamento de Riscos S.A. não utilize banco de dados ou preste informações sobre restrições de créditos de candidatos a emprego em transportadoras de carga, a partir da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei 13.709/2018). Para a maioria do colegiado, os cadastros de serviços de proteção ao crédito não devem ser usados como critério para a contratação de motoristas.
“Varredura”
Em ação civil pública ajuizada em 2012, o Ministério Público do Trabalho (MPT) relatou que a GPS, , com sede em Osasco (SP), fazia “verdadeira varredura” na vida pessoal dos motoristas, levantando dados relativos a restrições de crédito (Serasa/SPC), e formava um cadastro que continha, além da qualificação pessoal e profissional, as informações desabonadoras eventualmente obtidas. Posteriormente, esse cadastro era fornecido às transportadoras e seguradoras, por ocasião da contratação.
Inquéritos civis conduzidos pelo MPT demonstraram que as transportadoras deixavam de contratar motoristas com base nesses relatórios ou os impediam de transportar cargas para determinadas regiões em razão de suas restrições creditícias. Para o órgão, a prática, além de violadora do direito à privacidade, é discriminatória em relação aos que apresentem algum tipo de apontamento.
Evitar sinistros
A GPS, em sua defesa, sustentou que todas as informações são públicas e obtidas de forma lícita. Segundo a empresa, o gerenciamento de risco visa equalizar as relações entre os envolvidos e é uma forma de evitar a ocorrência de sinistros e de diminuir o preço dos seguros.
Outro argumento foi o de que, na condição de gerenciadora, não tinha o poder de impedir o transporte da carga nem a contratação dos motoristas, “até porque não tem nenhuma ingerência sobre as empresas de transporte, seguradoras ou embarcadores”.
Livre iniciativa
A pretensão do MPT foi julgada improcedente pelo juízo de primeiro grau, pelo Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (DF-TO) e pela Sétima Turma do TST, que não verificou ilicitude ou irregularidade na atividade da GPS. Segundo a Turma, o uso das informações pelas empresas que as adquirem (no caso, as transportadoras) é que pode caracterizar conduta discriminatória, e condenar a gerenciadora seria impedi-la de desenvolver atividade lícita, o que iria de encontro ao princípio constitucional da livre iniciativa.
Discriminação
O relator dos embargos do MPT à SDI-1, ministro Alberto Bresciani (aposentado), assinalou que a Lei 11.442/2007 proíbe a utilização de informações de proteção ao crédito como mecanismo de vedação de contrato entre o transportador autônomo e a empresa de transporte rodoviário de cargas. Embora seja possível defender que a vedação é dirigida apenas ao empregador, e não à empresa que fornece os dados, ele considera que, ao incluir esse elemento como de risco ao contrato e repassá-lo até mesmo à seguradora, há potencial infração à lei.
De acordo com o relator, cadastros como os do Serasa/SPC destinam-se à proteção do crédito a ser concedido por bancos, particulares e associações comerciais e não devem ser usados para aferição da empregabilidade do motorista ou da probabilidade de que venha a subtrair as mercadorias transportadas. “Se não há condenação por crimes contra o patrimônio, como o estelionato, não há motivos para questionar o caráter do simples devedor, cujas razões para a inadimplência fogem, no mais das vezes, ao seu controle”, afirmou.
Proteção de dados
Outro fundamento adotado pelo relator foi a Lei de Proteção de Dados (LGPD), segundo a qual as atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e princípios como os da finalidade (propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular), da adequação (compatibilidade com as finalidades informadas ao titular), da necessidade (limitação ao mínimo necessário) e da não discriminação (impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos). “Se se está diante de uma manipulação de dados pessoais tendente a gerar uma cadeia de quebra da isonomia e de discriminação, não há que se falar em prevalência do direito fundamental à livre iniciativa”, assinalou.
No caso, o ministro observou que a GPS usa os dados com fim diverso do que motivou sua criação, a fim de indicar ao empregador e à seguradora um maior risco na contratação ou na distribuição de serviços para determinado empregado. “Utilizar ou fazer utilizar o cadastro para qualquer outro fim que não a proteção ao fornecimento de crédito, após a vigência da LGPD, é ilegal”, concluiu.
Além de condenar a empresa a se abster de utilizar banco de dados e de prestar informações sobre os candidatos a partir da vigência da LGPD (14/8/2020), a SDI-1 impôs multa de R$10 mil, por candidato, em caso de descumprimento e estabeleceu indenização por dano moral coletivo, em valor a ser apurado na execução. Ficaram vencidos a ministra Maria Cristina Peduzzi e os ministros Caputo Bastos e Alexandre Ramos e, em relação à indenização, parcialmente, os ministros Lelio Bentes Corrêa e José Roberto Pimenta, que propunham a fixação do valor de R$ 400 mil.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO DE EMBARGOS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EMPRESA DE GERENCIAMENTO DE RISCOS. 1. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. ABSTENÇÃO DE UTILIZAR BANCO DE DADOS, DE PRESTAR E/OU BUSCAR INFORMAÇÕES SOBRE RESTRIÇÕES CREDITÍCIAS RELATIVAS A MOTORISTAS DE CARGAS, CANDIDATOS A EMPREGO. 1.1. A Eg. 7ª Turma não conheceu do recurso de revista do Ministério Público do Trabalho. Concluiu que “a atividade de gerenciamento de riscos, amplamente considerada, tem lugar no mercado, com respaldo do ordenamento jurídico, o que reforça a impossibilidade de ser inviabilizada ou restringida pelo uso que se fará das informações prestadas”. 1.2. A Constituição consagra o princípio da livre iniciativa (art. 170, parágrafo único, da CF), ressalvados os limites impostos pela ordem jurídica. Quanto ao tema, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que as informações de cadastro de serviços de proteção ao crédito não podem ser exigidas de empregados e candidatos a emprego, por caracterizar vedada discriminação (art. 1º da Lei 9.029/95). 1.3. No que tange aos motoristas de transporte de cargas, dispõe o art. 13-A da Lei 11.442/2007, incluído pela Lei 13.103/2015, que “é vedada a utilização de informações de bancos de dados de proteção ao crédito como mecanismo de vedação de contrato com o TAC [transportador autônomo de cargas] e a ETC [empresa de transporte rodoviário de cargas] devidamente regulares para o exercício da atividade do Transporte Rodoviário de Cargas”. 1.4. Poder-se-ia defender que a vedação é dirigida apenas ao empregador a quem se destina a informação prestada pela ré. Não obstante, ao incluir esse elemento como de risco ao contrato e repassá-lo inclusive à seguradora, há potencial infração à Lei. 1.5. Destaque-se que se discute tutela inibitória, de natureza preventiva, e que tem por escopo evitar a prática, repetição ou continuação do ilícito, do qual, potencialmente, surgirá o dano a direitos fundamentais. Aqui, examina-se a probabilidade de ilícito. O certo é que a “ratio” que inspira a jurisprudência, e agora a Lei, é que referido cadastro, ainda que público, destina-se à proteção do crédito a ser concedido por bancos, particulares e associações comerciais. Não deve ser usado para aferição da empregabilidade do motorista ou da probabilidade de que venha a subtrair as mercadorias transportadas. Se não há condenação por crimes contra o patrimônio (v.g. estelionato), não há motivos para questionar o caráter do simples devedor, cujas razões para a inadimplência fogem, no mais das vezes, ao seu controle. 1.6. Embora recente, e em bom momento, a Lei de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), em seu art. 6º, dispõe sobre as diretrizes para o tratamento de dados pessoais. “In verbis”: “As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios: I – finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades; II – adequação: compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento; III – necessidade: limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados; […] IX – não discriminação: impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos;”. 1.7. Se se está diante de uma manipulação de dados pessoais tendente a gerar uma cadeia de quebra da isonomia e de discriminação (já repudiada no art. 1º da Lei 9.029/1995 e pela Convenção 111 da OIT), não há que se falar em prevalência do direito fundamental à livre iniciativa. No caso, a ré usa dado com fim diverso daquele para o qual foi criado, a fim de indicar ao empregador e à seguradora um maior risco na contratação ou na distribuição de serviços para determinado empregado. Culpar o empregador que acate o relatório como se ele fosse, sozinho, o violador da ordem constitucional é uma ficção. 1.8. Destarte, utilizar ou fazer utilizar o cadastro para qualquer outro fim que não a proteção ao fornecimento de crédito, salvo autorização em Lei, após a vigência da LGPD, é ilegal. Recurso de embargos conhecido e parcialmente provido. 2. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. Tratando-se de lesão que viola bens jurídicos indiscutivelmente caros a toda a sociedade, surge o dever de indenizar, sendo cabível a reparação por dano moral coletivo (arts. 186 e 927 do CC e 3° e 13 da LACP). Recurso de embargos conhecido e parcialmente provido.
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Processo: E-RR-933-49.2012.5.10.0001