Dados do Boa Vista Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) mostram que o número de pedidos de recuperação judicial e de falência segue em crescimento no Brasil, agravado pela crise econômica associada à pandemia da Covid-19. De julho de 2019 a julho de 2020, o número de pedidos de falência aumentou 28,3%. Nos últimos três meses, os decretos de falência praticamente dobraram.
A segunda matéria da série De portas fechadas traz entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o momento de recuperação dos créditos no processo de falência. O que entra na massa, qual a classificação do crédito, quem recebe primeiro – são questões frequentes nos recursos julgados pelos colegiados de direito privado do tribunal.
A ordem de recebimento dos créditos está disposta desta forma no artigo 83 da Lei de Recuperação e Falência – LRF (Lei 11.101/2005):
Além das discussões relativas à ordem dos pagamentos ou à submissão dos créditos ao concurso, a jurisprudência do STJ sobre o tema aborda questões como a incidência de juros e correção monetária para atualização do crédito, a venda de ativos da empresa e a recuperação de valores depositados em bancos falidos, entre muitas outras.
Mesmo o dinheiro em espécie pode ser de difícil recuperação para o credor: de acordo com a Terceira Turma, os Certificados de Depósito Bancário (CDBs) se submetem aos efeitos da falência, pois o depósito bancário não se equipara às hipóteses em que o devedor ostenta a condição de mero detentor ou custodiante do bem – situações cobertas pelo artigo 85 da LRF.
“Nos contratos de depósito bancário, ocorre a transferência da propriedade do bem para a instituição financeira, ocupando o depositante a posição de credor dos valores correspondentes”, afirmou a relatora do Recurso Especial 1.801.031, ministra Nancy Andrighi.
No caso analisado pelos ministros, uma empresa tentou resgatar oito CDBs, no valor de R$ 20 milhões, antes da decretação de intervenção na instituição financeira, que acabou falindo.
A empresa defendeu a tese de que a solicitação do resgate da quantia depositada, acompanhada da anuência da instituição depositária, teria força para alterar a natureza jurídica da relação entre as partes, ou seja, como os contratos teriam sido extintos, o montante correlato estaria indevidamente em posse do banco, motivo pelo qual a medida de restituição seria impositiva.
Nancy Andrighi lembrou que, nessas hipóteses, a instituição financeira tem disposição dos valores depositados, ao passo que o depositante dos CDBs assume a condição de credor.
“Assim, como a instituição financeira tem em sua disponibilidade os valores depositados, não se poderia equiparar a situação dos autos às hipóteses em que o devedor ostenta a condição de mero detentor ou custodiante do bem arrecado, hipóteses fáticas que atrairiam a incidência do artigo 85 da lei”, concluiu.
Contrato de trust
Para a Terceira Turma, também não cabe a restituição de dinheiro no caso de valores depositados na conta-corrente de um banco falido, em razão de contrato de trust.
Uma concessionária de rodovias tinha um financiamento do BNDES vinculado à receita das praças de pedágio. O banco que entrou em processo de falência era administrador de uma conta para gerenciar as receitas, com o propósito de pagar o financiamento – avença formalizada em um contrato de trust.
Com a falência do banco, a concessionária buscou reaver os valores depositados, invocando a Súmula 417 do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual pode ser objeto de restituição dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual ele não tenha a disponibilidade, por força de lei ou contrato.
Segundo o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator do recurso especial da concessionária, foi correta a interpretação do tribunal estadual que negou o pedido de restituição dos valores depositados na conta de trust, uma vez que esse tipo de contrato não está previsto como um dos protegidos da falência, segundo o artigo 119 da Lei 11.101/2005.
“Esse entendimento do tribunal de origem sobre a taxatividade dos patrimônios de afetação está em sintonia com a melhor doutrina sobre o tema, pois a regra no direito pátrio é que o devedor responda com todo o seu patrimônio pelo cumprimento de suas obrigações”, explicou o ministro, ressaltando que as exceções à regra devem ser estabelecidas em lei.
Sanseverino destacou que não há previsão no ordenamento jurídico nacional para o contrato de trust e, portanto, não há amparo legal para a afetação patrimonial pactuada no caso julgado.
“As receitas das praças de pedágio, por estarem na titularidade do banco por força de contrato de depósito em conta-corrente, passaram a integrar o patrimônio deste, sendo correta, portanto, a arrecadação em favor da massa falida”, concluiu o ministro (REsp 1.438.142).
Juros e correção
Para fins de atualização do crédito a ser recebido da empresa falida, a Terceira Turma decidiu em 2017 que o marco temporal é a data de decretação da falência, e não a data da publicação da decisão de quebra da pessoa jurídica.
De acordo com a legislação, é a partir desse marco que o falido fica inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial e administrar os seus bens.
No caso analisado, o credor alegou que a data que deveria ser considerada era a da publicação, com base no princípio da publicidade das decisões, sob pena de ofensa a outros princípios, como os da razoabilidade e da justa indenização.
A relatora do REsp 1.660.198, ministra Nancy Andrighi, explicou que a legislação não condicionou os efeitos da falência à publicação da sentença de quebra. O motivo, segundo ela, é a própria natureza jurídica declaratória da sentença de falência: após a sua edição, a pessoa, os bens, os atos jurídicos e os credores do empresário falido são submetidos a regime específico, diferente do regime geral de obrigações.
A ministra destacou que, havendo situação específica a ser regulada de modo diverso, a lei dispõe expressamente quando o termo inicial será a publicação do ato – por exemplo, a regra prevista no artigo 53 para o plano de recuperação judicial.
Prédio inacabado
No julgamento do REsp 1.185.336, a Quarta Turma afirmou que, quando o comprador de um imóvel residencial – em razão da impossibilidade de conclusão da obra por parte da incorporadora, ante a decretação de sua falência – assume despesas para terminar o prédio, os valores desembolsados devem ser inscritos no processo falimentar como créditos quirografários.
No caso julgado, os consumidores ajuizaram habilitação retardatária de crédito na massa falida de uma construtora, ao argumento de que eram possuidores de créditos privilegiados, decorrentes da assunção de gastos para concluir a construção do prédio no qual adquiriram uma unidade. O tribunal estadual reconheceu os créditos, mas os habilitou na falência como quirografários.
Ao analisar o recurso especial, o ministro Luis Felipe Salomão, relator, disse que o crédito dos compradores não se insere em nenhuma das hipóteses previstas nos parágrafos 2º e 3º do artigo 102 da antiga Lei de Falência, o Decreto-Lei 7.661/1945. Segundo ele, a atribuição de privilégio por lei civil ou comercial – no caso, o inciso III do artigo 43 da Lei 4.591/1964 (Lei das Incorporações Imobiliárias) – refere-se tão somente aos créditos decorrentes dos valores pagos à incorporadora pela aquisição das unidades autônomas, e não das despesas com construção.
Salomão lembrou que, se a regra é a igualdade de tratamento, o privilégio não se presume, e se interpreta de forma estrita, nos limites do que prevê a lei.
“Imperioso notar que se interpretam restritivamente as disposições derrogatórias do direito comum, ou, de forma juridicamente mais coloquial, interpretam-se restritivamente as normas excepcionais que afastam a incidência da regra geral” – concluiu o ministro ao manter a classificação dos créditos como quirografários.
Usucapião
Em 2017, a Terceira Turma analisou a situação de uma família que ajuizou pedido de usucapião do imóvel que ocupava, pertencente a uma empresa. No curso do processo, a empresa faliu, e o juízo decretou a interrupção do curso da prescrição aquisitiva.
A família contestou a suspensão do prazo de usucapião pela decretação da falência, alegando que havia cumprido a exigência legal de 20 anos estabelecida no Código Civil de 1916 e que, por isso, faziam jus à propriedade.
A relatora do REsp 1.680.357, ministra Nancy Andrighi, no entanto, ressaltou que os ocupantes, que viviam na propriedade desde 1971, não completaram o prazo exigido, pois, com a decretação de falência em 1987, o curso da prescrição aquisitiva foi interrompido no 16º ano.
“O curso da prescrição aquisitiva da propriedade de bem que compõe a massa falida é interrompido com a decretação da falência, pois o possuidor (seja ele o falido ou terceiros) perde a posse pela incursão do Estado na sua esfera jurídica”, explicou a ministra.
Os ocupantes alegaram que a suspensão do prazo não deveria prejudicar o processo de usucapião, pois a decretação de falência impossibilita o falido de dispor de seus bens, mas não afeta os terceiros que adquiriram o direito por meio da prescrição aquisitiva.
Nancy Andrighi, porém, lembrou que a sentença declaratória da falência produz efeitos imediatos e, devido à formação da massa falida objetiva, a prescrição aquisitiva da propriedade por usucapião é interrompida no momento em que houver o decreto falimentar.
Benefício legal
Para a Quarta Turma, serão considerados extraconcursais os créditos decorrentes de obrigações contraídas pelo devedor entre a data em que se defere o processamento da recuperação judicial e a data da decretação da falência – inclusive aqueles relativos a despesas com fornecedores de bens ou serviços e contratos de mútuo.
No recurso, o colegiado discutiu se o benefício instituído no artigo 67 da Lei 11.101/2005 alcança apenas os débitos contraídos durante o cumprimento da recuperação judicial concedida (artigo 58), ou se também abarca as transações da empresa após o deferimento do processamento do pedido de recuperação (artigo 52). A dúvida foi suscitada pela expressão “durante a recuperação judicial”.
O ministro Antonio Carlos Ferreira, relator para o acórdão, destacou que o objetivo da lei é dar primazia à recuperação da empresa. “Em razão dessa proposição, a determinação do significado de eventuais ambiguidades do texto legal não pode perder de vista que o procedimento deve visar, em primeiro plano, o restabelecimento da força econômica e produtiva da pessoa jurídica em convalescença”, comentou.
O ministro lembrou que o titular de créditos quirografários vinculados à recuperação que continua provendo bens e serviços após o pedido recuperacional tem os seus créditos alçados à categoria daqueles com privilégio geral, até o limite dos bens ou serviços fornecidos durante esse período.
“Ou seja, em prevalecendo a interpretação de que a regra do caput do artigo 67 só tem incidência para créditos constituídos após a decisão do artigo 58, o resultado prático seria que os valores decorrentes de operações praticadas no lapso temporal que vai do pedido até a decisão concessória não gozariam do mesmo privilégio que aqueles relativos a operações anteriores, o que se mostra discrepante do objetivo da lei”, concluiu (REsp 1.399.853).
Venda de ativos
Em 2015, a Terceira Turma estabeleceu no REsp 1.356.809 que, na hipótese de venda extraordinária de ativo da empresa falida, não é necessária a prévia publicação de edital em jornal de grande circulação, como exigido pelo parágrafo 1° do artigo 142 da Lei 11.101/2005.
Segundo o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator, a publicação prevista no dispositivo se refere à alienação ordinária, “pois a necessidade de edital prévio praticamente eliminaria a diferença entre a alienação ordinária e a extraordinária”.
Crédito previdenciário
O STJ já analisou diversas questões envolvendo o pagamento de tributos por empresas falidas e a habilitação da Fazenda Nacional nesses processos. No caso de créditos previdenciários, é desnecessária a apresentação de Certidão de Dívida Ativa (CDA) para a habilitação no processo de falência, caso esses créditos sejam resultantes de decisão judicial trabalhista. A decisão foi tomada pela Quarta Turma em 2013, no julgamento do REsp 1.170.750.
Dois anos depois, ao julgar o REsp 1.591.141, a Terceira Turma seguiu essa linha para afirmar que a sentença da Justiça do Trabalho, ao condenar o empregador a uma certa obrigação, tem por consequência o reconhecimento da existência do fato gerador da obrigação tributária, consubstanciando o título executivo judicial que fundamenta o crédito previdenciário da Fazenda Pública.
Créditos fiscais vencidos
A Corte Especial do STJ decidiu, em embargos de divergência, que os créditos fiscais vencidos antes da falência processada sob as regras do DL 7.661/1945 têm preferência sobre os encargos da massa falida e, até mesmo, frente aos créditos fiscais posteriores à quebra, na redação original dos artigos 186 a 188 do Código Tributário Nacional (CTN).
No acórdão embargado, da Terceira Turma, decidiu-se que as cotas condominiais vencidas após a decretação da quebra, embora possuam inegável natureza de encargos da massa, somente devem ser pagas – nas falências regidas pelo DL 7.661/1945 – após a satisfação dos créditos de natureza trabalhista e fiscal.
A turma julgadora considerou que os créditos fiscais vencidos antes da falência, em vista da redação original daqueles dispositivos do CTN, tinham preferência em relação aos encargos da massa falida e também aos créditos fiscais posteriores à quebra.
Nos acórdãos paradigmas levados à Corte Especial, contudo, a Primeira e a Segunda Turma consignaram que os encargos da massa – como custas e despesas processuais geradas no curso do processo de falência ou a remuneração do síndico – deveriam ser pagos com preferência sobre os créditos tributários.
Segundo o ministro Humberto Martins, relator dos embargos de divergência, o entendimento da Terceira Turma espelhava a melhor interpretação do sistema de preferência traçado nos artigos 124 do DL 7.661/1945 e nos artigos 186 a 188 do CTN.
“Deve prevalecer, pois, a conclusão contida no acórdão embargado, de que os encargos da massa, nos quais se incluem as despesas condominiais vencidas após a decretação da quebra, não preferem os créditos tributários nas falências processadas sob a égide do DL 7.661/1945”, concluiu o relator (EREsp 1.162.964).
Encargo da execução fiscal
A Primeira Seção, no julgamento do Tema 969 dos recursos repetitivos, entendeu que o encargo constante do Decreto-Lei 1.025/1969 possui preferências iguais à do crédito tributário e, como tal, deve ser classificado, em caso de falência, na ordem de créditos tributários, independentemente de sua natureza e do tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias.
“Não considero possível o enquadramento do encargo do DL 1.025/1969 no conceito de penalidade administrativa, uma vez que a sua incidência na cobrança de créditos tributários não é imposta em razão do cometimento de ato ilícito por parte do contribuinte”, avaliou o ministro Gurgel de Faria, relator para o acórdão.
Se os créditos relativos ao encargo legal instituído pelo artigo 1º do DL 1.025/1969 fossem considerados de natureza tributária, seriam inseridos no item III do rol de credores; sendo classificados como quirografários, figurariam no item VI.
Segundo o ministro, o encargo em questão é crédito não tributário destinado à recomposição das despesas necessárias à arrecadação, à modernização e ao custeio de diversas outras despesas relativas à atuação judicial da Fazenda Nacional. “Não obstante, considero ser adequado o seu enquadramento no inciso III do artigo 83 da atual Lei de Falência.”
O ministro lembrou que a legislação confere ao crédito não tributário inscrito em dívida ativa a preferência dada ao credito tributário (REsp 1.521.999).
Bibliografias Selecionadas
A publicação Bibliografias Selecionadas, da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, traz, periodicamente, referências de livros, artigos de periódicos, legislação, notícias de portais especializados e outras mídias sobre temas relevantes para o STJ e para a sociedade – muitos deles com texto integral.
Leia a edição sobre Falência e Recuperação Judicial, publicada em setembro de 2019.
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